Documentos mostram como a ditadura negou o racismo – e o mesmo argumento é usado até hoje

Nos anos 1970, Tony Tornado, os bailes soul e a luta antirracista entraram na mira não apenas dos militares, mas também de parte da esquerda.

Foto: Arquivo Nacional

Por Lucas Pedretti, The Intercept.

O Festival Internacional da Canção ocupa espaço importante na cultura popular e musical brasileira. A edição de 1970, no entanto, teve um público particular: naquele ano, os militares também acompanharam de perto o evento, mostram relatórios produzidos pelo Exército. Quem estava na mira do regime, contudo, não era Chico Buarque ou Geraldo Vandré. Era Tony Tornado.

Para a ditadura, o cantor vinha atuando para disseminar uma “infame calúnia”: a da existência de uma “suposta discriminação racial” no Brasil. Por isso, militares se mobilizaram para impedir que ele fizesse “o gesto-símbolo do ‘poder negro’, representado pelo punho direito cerrado, braço estendido para o alto”.

Assuntos ‘ultrapassados’: era assim que a ditadura se referia à luta antirracista

Longe de ser algo isolado, os documentos que revelam a perseguição a Tornado fazem parte de um universo muito amplo, composto por milhares de páginas produzidas pelas agências repressivas do regime. Muitos deles são identificados pelo título “Racismo Negro no Brasil”.

A partir de fins dos anos 1960, a despeito da intensa censura, as influências da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e das revoluções anticoloniais na África chegaram ao Brasil, formando as bases para a reconstrução do Movimento Negro por aqui. Surgiram grupos, associações e movimentos dos mais diversos, com o intuito de questionar as estruturas racistas do país e de afirmar a identidade negra.

Um dos espaços mais importantes para essa celebração da negritude foram os bailes de música soul. Quando, em julho de 1976, o Jornal do Brasil publicou uma matéria sobre esse universo, a repercussão foi enorme. Foi então que um delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro escreveu para o DOPS cobrando ações:

É mister lembrar que em nosso país sempre houve harmonia entre brasileiros, independente de raça e religião. A miscigenação de nosso povo – branco, preto, índio – segundo Gylberto Freire, em ‘Casa Grande e Senzala’, é um privilégio”, afirmava o policial, colocando então algumas questões que, julgava ele, seriam fundamentais de serem investigadas pela polícia política.

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“Quem financiaria estes bailes de música ‘SOUL’, inclusive a vinda de cantores americanos pretos para o Brasil, sabidamente exigentes em termos de contrato de trabalho e cuja ideologia não conhecemos?”, inquiriu ele. A pergunta sobre o financiamento norte-americano foi feita diretamente a Dom Filó, líder da equipe de som Soul Grand Prix. “Cadê o dinheiro da CIA?”, questionavam os militares no DOI-CODI, para onde ele foi levado, encapuzado, após ser sequestrado por agentes do regime no final de um baile.

A base ideológica da ditadura era a Doutrina de Segurança Nacional. Ela tinha como um dos seus núcleos fundamentais o mito da democracia racial – ou seja, a ideia de que o Brasil seria um país sem racismo. Isso fica evidente no documento em que o policial defende o “privilégio” da “miscigenação” e da “harmonia entre os brasileiros”.

Na lógica da ditadura, se somos um país sem racismo, então o surgimento de mobilizações antirracistas ou de formas de celebração da identidade negra significava que estaria em curso a “criação” ou a “importação” de um “problema racial”. Ao tematizar a questão racial, o movimento negro seria o verdadeiro responsável por trazer o racismo para país. Por isso, a ditadura inventou o termo “racismo negro no Brasil”.

É claro que, na concepção da ditadura, tudo isso só poderia ser fruto de manipulação externa. Em um dos documentos sobre Tony Tornado, os agentes do regime deixam claro quem poderia estar por trás dessa conspiração. “A discriminação racial ajudaria a compor a imagem de um Governo Brasileiro fascista. E o Movimento Comunista Internacional colheria mais um fruto”.

Acontece que a incapacidade de enxergar agência e autonomia por parte dos negros e negras não era uma exclusividade dos militares e da direita. Parte significativa das esquerdas não havia compreendido também o que acontecia naquela década. Exemplo disso é o título da matéria do Jornal do Brasil sobre o soul que mobilizou o delegado a enviar um ofício ao DOPS: “Black Rio – O orgulho (importado) de ser negro no Brasil”. O parêntese servia para sugerir que havia algo de exógeno naquele fenômeno.

Nomes como Aldir Blanc e Ferreira Gullar se manifestaram sobre os bailes, em tom semelhante. Em entrevista para o mesmo JB, Gullar, àquela altura filiado ao Partido Comunista Brasileiro, o PCB, afirmou: “Claro que isto é um fenômeno de alta alienação. Do ponto de vista sociológico e psicológico, posso compreendê-lo. Mas a verdade é que o cara está buscando identificar-se com alguma coisa que não lhe pertence, que não é ele”.

A ideia era de que o soul não era autenticamente brasileiro – ao contrário do samba, por exemplo. Enquanto esse traria as marcas de uma superação dos conflitos raciais por meio de uma leitura positiva da mestiçagem, aquele, fruto do contexto racial norte-americano, seria responsável por um tipo de afirmação da negritude que não deveria ter espaço em nosso país.

Inspirado por um tipo de nacionalismo típico daquele período, o poeta vocalizava uma leitura corrente na esquerda, que, no fundo, compartilhava da ideia de que havia algo de positivo na forma que as relações raciais haviam se desenvolvido historicamente no Brasil.

A negação do racismo que persiste 

“Para mim, no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil”. Foi essa a declaração do então vice-presidente da República, general Hamilton Mourão Filho, quando, em novembro de 2020, Beto Freitas, um homem negro, foi assassinado por seguranças de um supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre. Outro nome forte do governo Bolsonaro, o também General Augusto Heleno, por sua vez, ficaria mais célebre ao acusar os indígenas de serem manipulados por organizações internacionais para lutar pela Amazônia.

Como sabemos, pela ausência de uma justiça de transição no país, as Forças Armadas jamais se submeteram a qualquer processo de revisão de suas posições, doutrinas e currículos. Não se adequaram, portanto, ao regime democrático de 1988. Não é à toa que as ideias de que o Brasil é um país sem racismo, em que os movimentos sociais só poderiam estar a serviço de potências estrangeiras, explicitadas por Mourão e Heleno, são absolutamente idênticas àquelas presentes no relatórios de 1970.

Aparentemente, no entanto, alguns setores da esquerda parecem tão apegados ao passado quanto nossos militares. A discussão sobre a necessidade de indicação de uma ministra negra ao Supremo Tribunal Federal fez com que muitos supostos progressistas perdessem o pudor de sugerir que essa demanda seria obra de uma grande conspiração internacional, cujo objetivo último seria importar um problema racial para o país.

No fim dos anos 1970, com o avanço da abertura política, todo o acúmulo de mobilizações e discussões sobre a questão racial no país se desdobrou na criação do Movimento Negro Unificado, fundado em 1978. Era também um momento de reorganização das esquerdas, após a derrota da experiência da guerrilha. Naquele contexto, foi criada a ideia de que haveria uma luta “geral” – a de classe – e lutas “específicas” – ligadas à questão racial, à ascensão do feminismo, ao surgimento do então chamado “movimento gay”.

Essa dicotomia serviu para invisibilizar e diminuir importantes demandas. Talvez, se as esquerdas tivessem sido capazes de incorporar tais agendas com a centralidade necessária desde aquele momento, poderíamos ter acelerado importantes transformações estruturais, que atacam o núcleo duro das desigualdades no Brasil – como, por exemplo, a questão das cotas.

Hoje, a questão se reatualiza pelo estabelecimento de um falso binômio entre uma luta “econômica” e lutas ditas “identitárias”. Os que advogam o “erro” das “pressões identitárias” parecem incapazes de compreender que o racismo, o machismo, a LGBTQIA+fobia e a questão indígena são estruturantes e constitutivas dos problemas brasileiros.

Nisso, se parecem demais com Mourão, com Heleno e com o delegado que, ao ver jovens celebrando sua negritude e questionando o racismo, só consegue pensar de onde vem o dinheiro que financia essa grande ameaça à segurança nacional.

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