Documentos apontam violação de direitos de povos indígenas no RS durante a ditadura

Fila para o “panelão” em terra indígena de Nonoai, na década de 1970. “Índios, Memória de uma CPI”, de Hermano Penna (Reprodução/Youtube)

Por Marco Weissheimer.

Fórum Justiça no Rio Grande do Sul encaminhou nesta segunda-feira (15) ao Ministério Público Federal documentos sobre violações de direitos sofridas por integrantes de povos indígenas no Estado, durante o período da ditadura civil-militar instaurada no País com o golpe de 1964. Fazem parte dos documentos juntados ao procedimento já aberto no MPF para apurar essas violações, o Relatório Final da CPI de 1977 do Congresso Nacional, documentos do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) de 1974 e 1975 e entrevistas realizadas com missionários indigenistas que acompanharam os fatos denunciados.

O Fórum Justiça é uma articulação que envolve movimentos sociais, organizações da sociedade civil, pesquisadores e agentes públicos do sistema de justiça para “discutir coletivamente políticas judiciais com redistribuição e reconhecimento de direitos e participação popular”. Junto com representantes indígenas e organizações indígenas e indigenistas, o Fórum apresentou denúncia ao Ministério Público Federal sobre violações que os povos Kaingang e Guarani sofreram, no Rio Grande do Sul, durante a ditadura civil-militar.
Segundo o advogado Rodrigo de Medeiros, integrante do Fórum Justiça e da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), os documentos encaminhados ao MP Federal retratam um ambiente do cerceamento do direito de ir e vir, do direito de reunião, de impedimento do uso da língua, entre outras violações de direitos. O período em questão, destaca o advogado, foi marcado, entre outras coisas, pela introdução do cultivo de soja em terras indígenas no Rio Grande do Sul, que é causa de conflitos até hoje. “Percebe-se pelos documentos e depoimentos uma semelhança de postura e concepções com o atual governo. O que torna imprescindível a atuação das instituições para que não se repitam ou se perpetuem violações do passado”, afirma ainda Rodrigo de Medeiros.
Após décadas de exploração econômica em suas terras e pela perda da terra para muitas comunidades, realidade dos povos indígenas no RS é marcada por exclusão e pobreza. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Entre outras informações, o Relatório da CPI de 1977 traz declarações do general Ismarth Araújo de Oliveira, à época presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), sobre os ganhos econômicos obtidos nas áreas indígenas do Sul do Brasil, utilizando-se, por diversas vezes, da força de trabalho destes povos. Segundo o general, a FUNAI mantinha projetos econômicos em seis postos indígenas: Chapecó/SC (Projeto Serraria), Mangueirinha/PR (Projeto Serraria), Palmas/PR (Projeto Serraria), Guarapuava/PR (Projeto Serraria), Guarita/RS ( Projetos Serraria e Soja) e Nonoai/RS (Projeto Soja).

Ainda segundo informações fornecidas pelo general, houve ganhos econômicos com desmatamento em outros locais, como o Posto Indígena de Nonoai e o Posto Indígena de Ligeiro, e com a plantação de soja nos postos de Nonoai e da Guarita. Esse processo envolveu, e envolve até hoje, arrendamento de terras com cooptação de lideranças indígenas por meio de vantagens individuais, trazendo prejuízos às coletividades indígenas e conflitos violentos. O então presidente da FUNAI garantiu que esses ganhos econômicos foram revertidos para as próprias comunidades, mas um relatório do CIMI apontou a prática de trabalhos forçados e condições de trabalho análogas a de trabalho escravo.

O Fórum Justiça realizou de, de novembro a dezembro de 2020, uma série de entrevistas com missionários e missionárias indigenistas que testemunharam as violações de direitos cometidas pela ditadura na região Sul do país. Em uma dessas entrevistas, o indigenista Egydio Schwade, um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário, confirma que na década de 70, os governos militares impuseram trabalho análogo a escravo, nas aldeias indígenas da Região Sul e perseguiram missionários que se colocavam ao lado da causa indígena. Na entrevista, Egydio Schwade afirma:

Egydio Schwade, um dos fundadores do CIMI (Fórum Justiça)

“Durante a Ditadura Militar os militares aproveitaram diversas áreas indígenas, principalmente no Sul, a dos Kaingang, para a produção de grãos, tanto pela FUNAI, como por agronegociantes, valendo-se da mão de obra dos índios que acabavam sendo escravizados sobre sua própria terra. Produziam para o órgão oficial e fazendeiros, sem verem jamais o lucro. A FUNAI não atendia às mossas denúncias por isso a gente recorria na época à Imprensa. Os indígenas que resistiam sofriam violência ou eram assassinados. A floresta que restava da depredação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) nas áreas indígenas do Sul, voltou a ser alvo de exploração. Quem se opunha era perseguido ou morto. Foi o caso do líder Ángelo Kretã, de Mangueirinha/Paraná que lutou contra a destruição do último pinhal nativo que ainda restava”.

Jussara Rezende (Fórum Justiça)

Em outra entrevista, a indigenista Jussara Rezende relata como a ditadura instrumentalizou o debate sobre a emancipação dos povos indígenas para extingui-los no plano formal e poder explorar mais livremente os seus territórios. Ela lembra que, durante a segunda metade da década de 1970, o governo Geisel apresentou um anteprojeto de lei que permitiria a “emancipação coletiva de povos indígenas”. O projeto prometia acabar com o paternalismo por meio da integração dos índios à sociedade, desenvolvendo projetos econômicos em suas terras, discurso repetido no presente pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores.

“O que estava por detrás dessa falsa emancipação era despojar os povos indígenas de seus territórios com a intenção de liberar suas terras para os não-índios explorarem, seja para a agricultura familiar ou industrial, mineração, exploração madeireira etc. O objetivo era integrar as terras indígenas dentro do sistema capitalista (tal qual agora)”, afirma ainda Jussara.Em outra entrevista, a indigenista Jussara Rezende relata como a ditadura instrumentalizou o debate sobre a emancipação dos povos indígenas para extingui-los no plano formal e poder explorar mais livremente os seus territórios. Ela lembra que, durante a segunda metade da década de 1970, o governo Geisel apresentou um anteprojeto de lei que permitiria a “emancipação coletiva de povos indígenas”. O projeto prometia acabar com o paternalismo por meio da integração dos índios à sociedade, desenvolvendo projetos econômicos em suas terras, discurso repetido no presente pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores.

Já o professor Wilmar da Rocha D’Angelis, especialista em línguas indígenas, falou sobre a repressão dentro das terras indígenas com a formação de verdadeiras milícias sob o comando dos chefes de posto de cada área. Ele relata:

“É fato bastante conhecido que, durante a Ditadura, uma grande quantidade de militares da reserva (os de maior patente eram capitães) foram empregados como Chefes de Posto, em função de confiança. A admissão nos quadros da FUNAI também não exigia qualquer rito especial, muito menos preparo especializado. Estabelecidos na terra indígena, além de conhecidos casos de abuso sexual contra mulheres indígenas, esses prepostos da ditadura trataram de criar um grupo local de indígenas apoiadores, executores, juntamente com o próprio Chefe de Posto, de política repressiva sobre a comunidade. Nenhum indígena podia sair de sua terra para uma viagem a outra terra indígena, por mais próxima que fosse e qualquer que fosse o seu parentesco lá (onde poderia morar sua mãe, seu pai ou seus irmãos), sem ter uma autorização escrita do Chefe de Posto”.

Relato similar sobre a formação de milícias locais no período da ditadura é feito pela indigenista Juracilda Veiga: “Com a Ditadura Militar as aldeias foram tomadas por coronéis, que criaram um corpo de milicianos indígenas para protegê-lo e para fazer aplicar as leis. As lideranças tradicionais foram desprezadas e lideranças da confiança do “coronel”, Chefe do Posto, foram impostas às comunidades através de indicação do chefe de Posto ou de eleições com voto aberto e, portanto, dirigidas”, conta.

Os indígenas que contestavam, acrescenta Juracilda, “eram perseguidos, presos e torturados na cadeia do Posto e muitas vezes transferidos, perdendo sua pátria, seus bens e ficando em exílio, castigo que atingia toda a família. Um indígena só é cidadão na terra em que nasceu.  Mesmo que chegue à posição de liderança, sempre será apontado pelos demais como “estrangeiro”. Estavam proibidos de receber visitas de agências indigenistas como o Cimi. Alguns indígenas que viajavam a convite do Cimi para reuniões de interesse indígena, ao voltar para a Terra Indígena, eram interrogados e presos”.

A denúncia encaminha ao Ministério Público Federal pede a investigação sobre “o trabalho análogo a escravo nas terras indígenas, caracterizado pelos trabalhos forçados, condições degradantes, sem prejuízo da apuração de outros crimes correlatos, tais como a tortura, cerceamento do direito de ir e vir e a proibição de usarem a própria língua”. Além disso, pede a “aferição das perdas às comunidades indígenas, por estimativa do que foi desmatado e por meio da atualização dos ganhos indicados, inclusive, pelo próprio Presidente da Funai a época, na CPI do Congresso Nacional de 1977, visando uma ação judicial de reparação.”

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