O Ministério Público Federal em São Paulo denunciou à Justiça o médico legista aposentado Abeylard de Queiroz Orsini por três crimes de falsidade ideológica. Segundo a denúncia, quando trabalhava no Instituto Médico Legal de São Paulo, Orsini omitiu informações essenciais e acrescentou dados falsos nos laudos de necropsia de Ana Maria Nacinovic Corrêa, Iuri Xavier Pereira e Marcos Nonato da Fonseca, integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), mortos em São Paulo, em junho de 1972, em ação de agentes do Doi-Codi, sob comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Segundo a versão oficial, Ana Maria, Marcos e Iuri eram procurados há alguns anos devido a ações de guerrilha urbana da qual haviam participado. Denunciados pelo dono de um restaurante na Mooca onde foram almoçar, os três foram cercados na saída do estabelecimento por agentes do Doi-Codi e teriam reagido à prisão à tiros. As forças policiais revidaram e os três teriam morrido no local. Um quarto integrante da ALN, ferido, conseguiu escapar. Dois transeuntes e dois policiais foram feridos por balas perdidas.
Apesar do “tiroteio seguido de morte”, a repressão não realizou perícia no local dos fatos e não há registro dos agentes públicos feridos. Isso deixou várias lacunas na investigação que foram sendo respondidas com o passar dos anos em virtude de iniciativas de advogados, dos familiares dos mortos e desaparecidos, da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), do Ministério Público Federal e da Comissão Nacional da Verdade e comissões estaduais da verdade.
O sobrevivente do tiroteio foi Antonio Carlos Bicalho Lana, morto sob tortura em 1973. Antes de “cair”, Lana foi o primeiro a contar, em relatos para os companheiros de militância, o que ocorreu naquela tarde. Segundo narrou, ele era o único que estava armado e aguardava os companheiros num carro, quando os quatro se tornaram alvo de tiros vindos de todos os lados. Ferido, ele tentou usar a metralhadora que tinha no carro, mas a arma travou.
Anos depois, familiares de mortos e desaparecidos colheram o depoimento de moradores da região, entre eles a família de uma menina ferida na perna no tiroteio, apontaram que os tiros não foram antecedidos de voz de prisão e que as vítimas não atiraram contra os policiais.
MARCAS DE TORTURA E TIROS DE MISERICÓRDIA. O suposto tiroteio teria ocorrido às 14h, mas os corpos de Ana, Marcos e Iuri só chegaram ao IML de São Paulo três horas depois, e despidos. Antes, certamente as três vítimas foram levados ao Doi-Codi. É o que testemunha Francisco Carlos de Andrade, militante da ALN, que estava preso naquele local e viu os corpos dos três companheiros no pátio daquele centro de torturas e morte localizado no bairro do Paraíso, em São Paulo.
Somente depois da passagem no Doi-Codi é que os corpos das vítimas foram levados ao IML de São Paulo. Perícias nas fotografias dos cadáveres e a exumação nos restos mortais de Iuri, realizadas pela CEMDP e pela família Xavier Pereira, respectivamente, coordenadas pelo perito criminal Celso Nenevê e pelo médico-legista Nelson Massini, demonstraram diversas omissões e informações falsas nos três laudos assinados por Orsini em 20 de junho de 1972, seis dias após o crime.
O laudo de Iuri é o que teve mais alterações. A necrópsia assinada por Orsini indicou tiros não existentes. Foi indicado por exemplo, um tiro que perfurou a cabeça, mas o corpo não apresentava hemorragia nos ouvidos, nariz e boca. Não foi feita a abertura do corpo, o que deveria ser o padrão. Há marcas de tortura no rosto e no pescoço de Iuri que não foram assinaladas. A exumação realizada nos anos 90 pela família permitiu identificar que Iuri foi alvo de pelo menos seis tiros, enquanto o laudo indicava apenas três. Dois dos tiros foram de misericórdia, em cima do coração, características de execução. A placa de identificação do corpo encobria estas lesões nas fotos do cadáver localizadas anos depois.
No caso de Ana Maria, os novos laudos realizados nos anos 90 indicam que ela foi morta no Doi-Codi e não no local do tiroteio e que o trabalho de Orsini foi omisso, não indicando, por exemplo, lesões no seio direito e no ouvido direito da vítima, cujo corpo foi fotografado de boca aberta, com a arcada dentária superior aparecendo e lábios contraídos, indicando insuficiência respiratória. O corpo dela também não foi aberto.
Já o laudo de Marcos indicou que ele foi alvo de dois tiros, mas ignorou um terceiro tiro no peito, visível nas fotos do cadáver. O corpo também não foi aberto para exame. Além disso, Marcos foi atingido deitado, outra característica de que tenha sido morto quando estava dominado.
DENÚNCIA. Para a procuradora da República Ana Letícia Absy, autora da denúncia, restou evidente que as três vítimas foram mortas “por agentes dos órgãos de segurança do regime militar” quando já não tinham possibilidade de se defender. “O denunciado, por sua vez, atuando como médico legista oficial no caso, omitiu informações essenciais dos laudos necroscópicos das vítimas, e inseriu dados falsos, não atestando, como era o seu dever legal, as reais circunstâncias das mortes. Assim agindo, o acusado falsificou documentos públicos, com o fim alterar a verdade sobre os crimes”, afirmou.
Para o MPF, Orsini tinha “plena ciência da falsidade das informações constantes nos laudos” e “contribuiu, conscientemente, para o plano de conferir aparência de normalidade às diversas mortes causadas por tortura e execução sumária, por parte de agentes do regime militar. Omitiu, desta forma, nos laudos supracitados não apenas lesões sofridas pelas três vítimas, mas também buscou dar aparência de veracidade à versão oficial, mesmo diante das inúmeras incongruências”.
Orsini trabalhou 31 anos no IML de São Paulo e, segundo processo que respondeu perante o Conselho Regional de Medicina, referendado pelo Conselho Federal de Medicina, teria participado da falsificação de 15 laudos necroscópicos de presos políticos assassinados na ditadura. Ele teve o registro para o exercício da profissão cassado, mas a pena foi anulada pela 22ª Vara Federal Cível de São Paulo.
O médico é uma das 377 pessoas listadas como autores de graves violações de direitos humanos no volume 1 do relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Na denúncia, o MPF pede que Orsini, caso condenado, tenha a aposentadoria ou outro tipo de provento cancelado.
NÃO PRESCREVE. Segundo a cota introdutória da denúncia, os crimes de Orsini de ocultar intencionalmente crimes cometidos pelo regime militar não prescreveram por três motivos: porque os assassinatos foram cometidos num contexto de ataque sistemático à população civil brasileira para manter o poder tomado ilegalmente pelos militares em 1964; porque o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund, cuja sentença aponta que interpretações jurídicas que resultem em impunidade devem ser ignoradas; e porque o direito penal internacional prevê que crimes contra a humanidade não estão sujeitos a regras domésticas de anistia e prescrição.
O caráter sistemático das graves violações de direitos humanos no Brasil durante a ditadura é confirmada pela complexa estrutura de repressão montada pelo regime, da qual o Doi-Codi de São Paulo, comandado por Ustra, morto em outubro de 2015 sem ter sido julgado por seus crimes, foi um dos maiores expoentes. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, entregue em 2014 à Presidência da República, entre 1969 e 1976, somente no Doi-Codi de São Paulo foram mortas 70 pessoas. Muitas delas continuam desaparecidas. Outra prova apontada pelo MPF é que a repressão não matava apenas “guerrilheiros em combate”, mas pessoas que nunca pegaram em armas, cujo caso mais notório é o do deputado Rubens Paiva.
A cota cita também que o Brasil ratificou, em dezembro de 1998, a Convenção Americana de Direitos Humanos, submetendo-se, portanto, à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujas decisões têm força vinculante a todos os poderes do Estado brasileiro. Respeitar a corte, portanto, é decisivo para impedir sanções internacionais ao país.
Em agosto de 2014, em parecer, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, seguiu a mesma linha. Segundo o chefe máximo do MPF, é possível impetrar ações contra decisões judiciais que invoquem a lei de Anista para extinguir a punibilidade de agentes da ditadura que cometeram graves violações de direitos humanos. As graves violações são comprovadas, segundo Janot, pelo fato de que as prisões não visavam instruir processos judiciais, “mas o desmantelamento, a qualquer custo, independentemente das regras jurídicas aplicáveis, das organizações de oposição”.
Por fim, a procuradora cita que a denúncia proposta, nem a decisão da Corte Interamericana, se opõem à decisão do Supremo Tribunal Federal, de 2010, no julgamento da ADPF 153, que julgou constitucional a Lei de Anistia, de 1979, uma vez que o STF não se pronunciou a respeito dos efeitos das decisões de tribunais penais e de direitos humanos internacionais sobre o direito interno.
Processo nº 0008172-31.2016.4.03.6181 , distribuído à 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo. Para consultar, acesse: http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais/
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