Ditadura: acordo com a Volks ‘vira uma página em momento trágico do país’, diz ex-metalúrgico

Em acordo firmado com Ministério Público, montadora pagará R$ 36,3 milhões, sendo R$ 16,8 milhões para ex-funcionários perseguidos. Outras empresas podem ser investigadas

Cena de documentário alemão mostrou sinais da participação da empresa no apoio a ações de repressão. Não foi a única. Foto: Reprodução Rede Brasil Atual

Por Vitor Nuzzi.

Ao meio-dia desta quinta-feira (24), ex-trabalhadores da Volkswagen e viúvas de ex-funcionários vão se reunir na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, para decidir os próximos passos após anúncio de acordo entre a montadora e o Ministério Público, sobre reconhecimento de ações de apoio da Volks à ditadura. Com isso, encerram-se três inquéritos civis abertos em setembro de 2015. O processo se originou a partir de pedido feito por várias entidades, como centrais sindicais e o IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), além da advogada Rosa Cardoso, que na Comissão Nacional da Verdade integrava o grupo de trabalho que investigava a relação entre empresas e ditadura.

O caso relativo à Volks era o mais avançado, mas há outras empresas que podem, agora, ser responsabilizadas. “É um marco. Vira uma página importante, especialmente num momento tão trágico que vive o nosso país”, afirma o presidente da Associação Heinrich Plagge, que reúne ex-funcionários da montadora, Tarcísio Tadeu Garcia Pereira. O nome da entidade homenageia um deles, morto em 2018. Para Tarcísio, o acordo “é o reacender uma nova esperança na luta dos trabalhadores brasileiros”.

Cumplicidade com repressão

O acordo, na verdade um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), foi anunciado pelos Ministérios Públicos Federal (MPF), do Estado de São Paulo (MPSP) e do Trabalho (MPT). Pelo acordo extrajudicial, a empresa assume obrigações para não sobre ações judiciais “sobre a cumplicidade da companhia com os órgãos de repressão da ditadura”. Entre outras coisas, a empresa irá destinar R$ 36,3 milhões a ex-trabalhadores – perseguidos ou torturados – e a iniciativas que promovam os direitos humanos.

“Ao longo das apurações, os Ministérios Públicos identificaram a colaboração da Volkswagen com o aparato repressivo do governo militar a partir de milhares de documentos reunidos, informações de testemunhas e relatórios de pesquisadores, um contratado pelo MPF e outro pela própria empresa”, afirmam os MPs em nota conjunta. Do valor total, R$ 16,8 milhões serão doados à associação, para repartir entre ex-trabalhadores e familiares de vítimas. “O dinheiro será repartido entre os ex-funcionários que foram alvo de perseguições por suas orientações políticas, seguindo critérios definidos por um árbitro independente e sob a supervisão do MPT.”

Memorial e ossadas

Outros R$ 10,5 milhões “reforçarão políticas de Justiça de Transição”. Um deles, que terá R$ 6 milhões, é o Memorial da Luta por Justiça, projeto da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) e do Núcleo de Preservação da Memória Política (NPMP). Mais R$ 4,5 milhões serão destinados à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para financiar pesquisas sobre a colaboração de empresas com a ditadura e continuidade da identificação de ossadas encontradas em 1990 em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus., região noroeste de São Paulo.

Bellentani (primeiro à esquerda) e outros ex-trabalhadores. Do lado de dentro da fábrica, a empresa divulgava relatório para se ‘reconciliar’ com o passado

Está previsto ainda o pagamento de R$ 9 milhões aos Fundos Federal e Estadual de Defesa e Reparação de Direitos Difusos. “A empresa também publicará em jornais de grande circulação uma declaração pública a respeito do assunto”, lembra os MPs. A estimativa é de que os desembolsos ocorram em janeiro.

Debilidade democrática

“O ajuste de condutas estabelecido nesta data é inédito na história brasileira e tem enorme importância na promoção da Justiça de Transição, no Brasil e no mundo”, afirmam os procuradores. “O enfrentamento do legado de violações aos direitos humanos praticadas por regimes ditatoriais é um imperativo moral e jurídico. Não se logra virar páginas ignóbeis da história sem plena revelação da verdade, reparação das vítimas, promoção da responsabilidade dos autores de graves violações aos direitos humanos, preservação e divulgação da memória e efetivação de reformas institucionais, sob pena de debilidade democrática e riscos de recorrência”, acrescentam.

Documentário exibido pela TV alemã em 2017 jogou mais luz sobre o assunto e pressionou a empresa. Os responsáveis pelo trabalho, os jornalistas Stefanie Dodt e Thomas Aders, estarão nesta quinta em São Bernardo. Eles contaram a história de Lúcio Bellentani, operário preso em plena fábrica em 1972, com auxílio da empresa, preso e torturado. Bellentani morreu há pouco mais de um ano. Por sinal, Tarcísio, que entrou na Volks em 1969, auge da ditadura, na ferramentaria, foi seu aprendiz – e substituiu o próprio Bellentani na presidência da associação.

Desapreço às instituições

Além disso, ainda em 2017, a própria empresa divulgou relatório, elaborado por um historiador alemão. Reconheceu a participação de alguns funcionários no apoio à repressão, mas não uma participação institucional.

“O Brasil, infelizmente, segue como um caso notável de resistência à promoção ampla dessa agenda (da Justiça de Transição). E, não por acaso, ecoam manifestações de desapreço às suas instituições democráticas”, afirmam os procuradores envolvidos nas negociações. “No mundo, por outro lado, são ainda raros os episódios de empresas que aceitam participar de um processo dessa natureza e rever suas responsabilidades pela colaboração com regimes autoritários.”

Agora, outras empresas continuarão sendo investigadas. A própria associação dos ex-funcionários da Volks deverá se transformar em entidade que reunirá trabalhadores perseguidos pela ditadura na região do ABC.

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