A norte-americana Ava DuVernay apareceu nos tapetes vermelhos, pela primeira vez, há cinco anos, quando o longa-metragem dirigido por ela, Selma: Uma luta pela igualdade, foi um dos indicados ao Oscar de melhor filme. Naquele momento, a cineasta se tornou a primeira diretora negra a ter uma fita nomeada à premiação. Ela quebrou outra barreira com a mesma produção também ao ser indicada ao Globo de Ouro em categoria semelhante. Aclamado pela crítica, Selma retrata a emblemática marcha de Selma a Montgomery, no Alabama, em 1965, pela garantia de direitos iguais dos negros.
Neste ano, a norte-americana apareceu mais uma vez em destaque. Agora, pela minissérie feita em parceria com a Netflix, Olhos que condenam. “Ava Duvernay vem construindo uma carreira bastante sólida e diversificada há mais de uma década, tanto como diretora e como produtora. Desde 2012, quando Middle of nowhere ganhou prêmio de melhor filme em Sundance (Duvernay a primeira cineasta afroamericana a ganhar o prêmio) e depois foi para o Netflix, ela assegurou seu lugar no mainstream da indústria cinematográfica estadunidense”, avalia Janaína Oliveira, pesquisadora, curadora de cinema e coordenadora do Fórum Itinerante de Cinema Negro (Ficine).
Olhos que condenam
A minissérie da Netflix é mais um trabalho ligado às questões da população negra e parece ser uma sequência dos dois projetos mais aclamados da diretora. Ava entrega uma ficção documental sobre a injusta condenação de cinco jovens negros por um estupro ocorrido em abril de 1989 no Central Park, Nova York. A escolha do tema foi justificada pela cineasta no especial When they see us with Oprah Winfrey: “O objetivo era criar algo que doesse o estômago, sem ser comida porcaria. Era criar um catalisador para uma conversa”.
Catalisador que Ava conseguiu criar. Série mais vista da história da Netflix, com audiência de 23 milhões de usuários em duas semanas de disponibilização no catálogo da plataforma e com 16 indicações ao Emmy Awards (entre elas, duas para Ava nas categorias melhor roteiro e melhor direção), Olhos que condenam abriu o debate e deu visibilidade ao caso. “O objetivo era criar algo que realmente movesse as pessoas e as fizessem avaliar o que elas pensam e como elas se comportam no mundo”, completou Ava DuVernay à Oprah Winfrey.
A inspiração para o filme veio de um dos próprios personagens. Em 2015, Raymond Santana, um dos cinco, enviou uma mensagem sugerindo um longa-metragem sobre a história logo após assistir a Selma. “Não foi uma ideia que eu lancei para eles. Foi uma ideia que eles lançaram para mim”, afirmou ao Hollywood Reporter.
Trajetória
Ava DuVernay se tornou diretora em 2008 com o documentário This is the life, que retrata uma história do movimento artístico Good life cafe em Los Angeles. O primeiro longa-metragem é de 2010, I will follow, produção sobre uma mulher em luto que conta com 12 visitantes que a ajudam a seguir em frente. Até fazer Selma, se dividiu entre séries e filmes documentais, curtas e longas-metragens. Também acumulou cargos de roteirista, produtora e atuações variadas em equipes de produções de audiovisuais em geral.
Até Olhos que condenam, esteve envolvida em dois grandes projetos: o videoclipe de Family feud dos cantores Jay-Z e Beyoncé, e o filme da Disney Uma dobra no tempo. Parte do sucesso de Ava DuVernay é atribuído à experiência da cineasta antes do cinema.
Publicitária, ela entendeu desde o início as estruturas de poder dentro de Hollywood. “Eu sempre costumava dizer que não ia bater em portas fechadas. Iria fazer a minha própria porta”, explicou na entrevista publicada no Hollywood Reporter.
Desde 2010, Ava DuVernay está à frente da Array. A iniciativa é uma distribuidora e produtora de filmes independentes, que tem como objetivo amplificar e dar espaço às mulheres e às pessoas de cor. A empresa inclui a produtora Array Filmworks, organização sem fins lucrativos Array Alliance e o braço de distribuição independente Array Releasing.
As três organizações juntas funcionam como uma miniversão dos estúdios de Hollywood, formada em sua maioria por mulheres e pessoas não brancas. Ao todo, já foram produzidos 20 filmes e há 50 pessoas trabalhando em 14 programas de televisão. Atualmente, outro projeto da empresa é a construção de um cinema de 50 lugares em Los Angeles.
“Com a fundação da Array (que inicialmente se chamava AFFRM — African-American Releasing Movement), companhia de distribuição com foco no trabalho de realizadores negras, ela reafirma seu posicionamento político na promoção do cinema negro de um modo geral, e das mulheres negras no cinema de forma específica”, completa a pesquisadora brasileira Janaína Oliveira.
23milhões
Quantidade de usuários que assistiram à série Olhos que condenam
16
Número de indicações de Olhos que condenam ao Emmy Awards
Palavra da especialista
Compromisso de Ava DuVernay
A minissérie não traz uma história estereotipada do sofrimento. Elas traz uma narrativa sobre o sofrimento, uma exposição dura a que jovens negros são submetidos quando enfrentam a polícia, o judiciário, o sistema carcerário e também o julgamento de uma sociedade racista, essa sim perpetuadora de estereótipos negativos das culturas negras. Algumas críticas, inclusive, se relacionam a esse aspecto. Questionando em que medida, a minissérie não corroboraria com essa perpetuação, muito mais do que propriamente a combatendo.
Acho que essa crítica pode ser encaminhada de várias formas, inclusive no diálogo proposto pelo crítico de cultura KC Ifeanyi, que numa das primeiras reações que li falou a impossibilidade de assistir à série, exatamente por não suportar ver, rever e reviver as violências ali representadas, trazia também o questionamento sobre o público a que a obra se destina. IFeanyii comenta o quanto a minissérie se destina, em certo sentido, mais a uma audiência branca. Acho essa uma crítica em relação ao público possível, mas que desconsidera em parte a seriedade e o compromisso de Duvernay com as comunidades negras. Para mim, o que nesse comentário se apresenta como interessante é falarmos sobre essa recusa em assistir relacionado ao trauma das culturas negras, fato que vem inclusive sendo bastante falado no contexto brasileiro.
Lembro-me primeiro de um questionamento de Saidya Hartman, professora de literatura comparada, escritora, feminista, teórica, afro-americana que em seus trabalhos com os arquivos da escravidão nos EUA, quando ela se pergunta: “Como revisitar a cena de submissão sem replicar a gramática da violência?” Acho que esse é um desafio presente para todos que se dedicam trabalhar com os traumas da colonização e do racismo. E não há sucesso garantido na forma. Será sempre difícil e controverso.
Por fim, quero dizer que nesses mesmos regimes racistas de submissão e violência historicamente reprimiram pessoas negras por olhar, como nos lembra bell hooks, em seu brilhante texto O olhar opositivo. Assim, quando as pessoas negras decidem olhar ou optar por não ver, para mim, são gestos revolucionários que dizem respeito às formas contemporâneas de expectorialidade. A minissérie é relevante, pois além da denúncia do racismo na sociedade estadunidense, proporciona também esse tipo de debate, onde podemos pensar em um outro nível sobre as espectadoras e espectadores negros, sobre as imagens que queremos ou não ver. O debate em nada desqualifica a qualidade de Olhos que condenam
e nem questiona a existência da série. Duvernay não é Spielberg em A cor púrpura, é preciso não esquecer as diferenças.
Janaína Oliveira é pesquisadora, curadora de cinema e coordenadora do Fórum Itinerante de Cinema Negro (FICINE)
Entrevista // Janaína Oliveira
A minissérie Olhos que condenam tem feito muito sucesso nos EUA e no Brasil. Como você vê essa repercussão?
Acho que a repercussão nos EUA se relaciona com uma onda de filmes e séries negras nos últimos anos alinhada às lutas contemporâneas das comunidades negras por direitos, sobretudo no combate à violência policial, cristalizada no movimento Black Lives Matter. No Brasil, os jovens negros entre 18 e 25 anos, se não me engano, são as maiores vítimas da violência policial, da violência do Estado. E o trauma dessa violência e de todas as demais que compõem o racismo estrutural da nossa sociedade criam diversos pontos de conexão entre as experiências raciais nos dois países. Ainda que os contextos históricos sejam diferentes, possuindo singularidades que jamais devem ser ignoradas ou invisibilizadas em prol de análises de qualquer tipo, há uma violência e um trauma que nos une. Um trauma próprio da experiência negra no mundo ocidental, infelizmente, onde os processos de e seus desdobramentos históricos seguem causando dor.
Aproveitando esse momento da Ava, como você vê o cenário feminino no cinema, principalmente, na direção e no roteiro? Como você analisa isso especificamente no Brasil?
Bom, cenário feminino na direção e roteiro no mundo ainda que bastante diverso, tem em comum os sistemas de exclusão da indústria cinematográfica que ainda opera num contexto dominado por homens brancos. Então, nas diferentes experiências, há a luta por transformação desse cenário. No Brasil, a estrutura também repete as
desigualdades históricas da nossa sociedade, e as mulheres negras ainda são as mais
excluídas, ou as menos presentes no setor como um todo, como apontaram as
pesquisas realizadas pelo GEMAA, Grupo de Estudos de Ações Afirmativas da UERJ, e
mais recentemente os dados publicados pela ANCINE.
Contudo, é preciso destacar que esses dados também se baseiam na produção de
longas metragem, onde de fato, desde 1984 quando Adelia Sampaio lançou Amor
Maldito, não temos outro filme de ficção de longa metragem dirigido exclusivamente
por uma mulher negra. E é bom dizer que muito em breve essa narrativa será
quebrada, pois Viviane Ferreira vai lançar seu filme feito com o, infelizmente, extinto
edital de ações afirmativas da SAV – Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura.
E outras, jovens cineastas estão desenvolvendo projetos de longa, como a Safira
Moreira, por exemplo. Fiz essa observação pois quando deslocamos o olhar para as outras produções audiovisuais, para os curtas metragens e para as webséries, por exemplo, podemos observar uma grande presença das mulheres negras, produzindo seja através de editais, seja de forma totalmente independente. Há uma produção potente, em docentes regiões do país, filmes trilham carreiras em festivais e mostras no Brasil e no exterior. Nesse sentido, é necessário ir também na contracorrente do mercado e buscar a valorização dessas produções.
Ava é um dos grandes nomes hoje nos EUA. Quais mulheres negras você acha que
estão fazendo isso no Brasil e quebrando barreiras?
Na verdade, todas as mulheres negras que seguem ou decidem trabalhar com cinema, não importando em qual atividade e o grau de visibilidade, ao meu ver estão
quebrando barreiras. É tão revolucionária essa presença que acho injusto destacar
umas em detrimento de outras.