Dia do samba: um pouco da história da velha guarda do samba paulistano

Por Camila Rodrigues da Silva, para o Desacato.info.

embaixada cópiaHoje, dia 2 de dezembro, se comemora o Dia do Samba, um dos ritmos mais característicos e simbólicos da cultura brasileira. Há sete anos, eu terminava o trabalho de conclusão da minha graduação em Jornalismo junto a minha amiga Milena Ootuca. Estudamos na capital paulista e fizemos um livro-reportagem sobre a Embaixada do Samba de São Paulo, uma entidade que reunia fundadores de escolas de samba, porta-bandeiras, mestre-salas, compositores, passistas e todos aqueles que ajudaram a construir a história daquela cidade.

Dela, faziam parte figuras como seu Nenê de Vila Matilde, fundador da escola que leva seu nome; seu Carlão, fundador da escola Unidos do Peruche; Toniquinho Batuqueiro, compositor que já trabalhou com o ilustre Geraldo Filme; José Lino dos Reis, apelidado de Manezinho, o primeiro mestre-sala de São Paulo; e Hélio Bagunça, um dos mais antigos passistas da escola Camisa Verde e Branco.

A história daqueles que construíram o carnaval e o samba paulistano é parte da história do povo negro daquela cidade, e por isso as trajetórias individuais têm muitos pontos em comum. A maioria tem origem familiar no interior do Estado. Muitos, quando migraram para a capital, foram para o Centro da cidade e moraram em cortiços. Quase todos contam episódios de perseguição policial de seus blocos de carnaval. Quando jovens, os homens tiveram empregos tipicamente precarizados, como estivadores e engraxates. Quando adultos, homens e mulheres acabaram por migrar para a periferia da cidade, porque foi o local possível de se construir a casa própria. O sincretismo entre o catolicismo e as religiões africanas é regra com poucas exceções.

Com amor e saudade,  gostaria de fazer uma singela homenagem a paulistas, paulistanas e paulistanos que construíram o samba e o carnaval paulistano publicando o texto “Samba de bumbo, onde tudo começou”, meu e de Ootuca.

Samba de bumbo, onde tudo começou

O menino de sete anos de idade não via a hora de o mês de agosto chegar. Era festa de Nossa Senhora do Bom Jesus de Pirapora e seu pai o levaria de São Paulo para a cidade que tem o mesmo nome da santa. No rio Tietê, que ainda não tinha a tóxica espuma branca flutuando em sua superfície, ele ia nadar, pescar cará e lambari com a mão. Aquele calor… Enquanto a cidade estivesse em romaria, iria com o pai ao barracão para aproveitar o samba de bumbo — instrumento de percussão cônico, da altura da cintura de um homem mediano, feito de madeira e coberta de couro, cujo som grave caracterizava a marcação da batida da batucada paulistana. O moleque cresceu e se tornou o mestre de bateria Lagrila.

Outro garoto ia com os pais para essa mesma festa. Mas, ao chegar lá, ele se dirigia ao barracão com o pai, ver e participar do samba “levanta poeira”, enquanto a mãe seguia a romaria de Nossa Senhora.

—Zeca, onde você vai com o menino?

—Já volto.

—Você não vai voltar!

—Já volto, já.

E só aparecia no ?m do dia. Quando cansava, a criança dormia ali mesmo, no meio do batuque e das danças. A?nal, só de madrugada pegava o caminho de volta. Nessas viagens, ele conheceu o samba de partido-alto, composto de refrão e versos de improviso. Mas não lhe pergunte nada sobre a igreja: só a conheceu quando cresceu, depois de casado.

A essa batucada, que o modernista Mário de Andrade chamou de “samba rural”, é atribuída a origem do samba paulistano — e o que o diferencia do ritmo carioca. Morador da região da Barra Funda, o escritor foi até um barracão em Pirapora e contou o que viu:

Um grupo de indivíduos se reúne, na enorme maioria negros e seus descendentes, pra dançarem o samba. Freqüentemente esse ajuntamento mantém uma noção de coletividade, quero dizer, forma realmente um grupo, um rancho, um cordão, uma associação enfim, cuja entidade é definida pela escolha ou imposição dum chefe, o dono-do-samba. Este chefe é quem toma determinações gerais e manda em todos. Manda sem muita força, obedecido sem muita obrigação.

O grupo, formado de indivíduos de ambos os sexos, tem seus instrumentos, sistematicamente de percussão, em que o bumbo domina visivelmente. A sua colocação sempre central na fila dos instrumentistas bem como por ser da decisão dele o início de cada dança (além do seu valor financeiro) lhe indicam francamente a primazia entre os instrumentos. Primazia que se estende ao seu tocador. As mulheres nunca tocam. Os homens, pelo contrário, todos tocam, e indiferentemente qualquer dos instrumentos passando estes de mão em mão.

Está o grupo reunido pra dançar. A pinga circula. Eis justamente uma das atribuições do dono-do-samba. Ele é que de garrafa e copinho vai de um a um dando pinga. Os homens não recusam nunca. As mulheres, vi algumas recusar.  Se é certo que o dono-do-samba procedia à distribuição de pinga, vi dançadores que tomavam por si mesmos a iniciativa de beber no boteco mais próximo, sem que o dono-do-samba interferisse. Neste samba de Pirapora, um dos figurantes trazia mesmo um enorme chifre às costas, que segundo informação dele podia conter dois litros e meio de cachaça.

Enfileirados os instrumentistas, com o bumbo ao centro, todos se aglomeram em torno deste, no geral inclinados pra frente como que escutando uma consulta feita em segredo. No grupo em consulta, um solista propõe um texto-melodia, improvisando.

O seu canto, na infinita maioria das vezes, é uma quadra ou um dístico. O coro responde. O solista canta de novo. O coro torna a responder. E assim, aos poucos, desta dialogação, vai se fixando um texto-melodia qualquer. O bumbo está bem atento.

Quando percebe que a coisa pegou e o grupo, memorizando com facilidade o que lhe propôs o solista, responde unânime e com entusiasmo, dá uma batida forte e entra no ritmo em que estão cantando. Imediatamente à batida mandona do bumbo, os outros instrumentos começam tocando também, e a dança principia. Quando acaso os sambistas não conseguem responder certo ou memorizar bem, ou, por qualquer motivo, não gostam do que lhes propôs o solista, a coisa morre aos poucos. Nunca vi uma recusa coletiva formal. Às vezes é o mesmo solista que, percebendo pouco viável a sua proposta, propõe novo texto-melodia, interrompendo a indecisão em que se está. Às vezes surge outro solista. Desse jeito vão até que uma proposta pegue e toca a sambar.

Assim que os instrumentos principiaram tocando, avançam em fila para a frente. As filas de dançantes que os defrontam recuam. Depois, são estas que avançam enquanto os instrumentos recuam. A visão que se tem é dum bolo humano mais ou menos ordenado em filas, e que, estreitamente  apertado, num áspero movimento de inclinar e erguer de torso, avança e recua em poucos passos. A extensão de terreno que um samba exige é portanto mínimo: um terreno de cinco metros por cinco é suficiente para um samba de trinta pessoas.

Na aparência a coreografia é muito precária. Incerto rebolar de ancas, nenhuma virtuosidade com os pés, nunca vi a umbigada tradicional, nesses quatro sambas que observei. Apenas aquela marcha pesada para a frente e, no recuo, uns como que saltinhos inda mais pesados, apesar de rápidos. Mas aquele inclinar e erguer de torso no avanço traz a nós, dotados do sal civilizado, uma sensação fácil de sensualidade. 

Para o compositor Geraldo Filme, falecido em 1995, deixar as origens rurais de lado seria um risco assumido por muitos compositores e dirigentes de escolas de samba. “O nosso [samba] vem daqueles batuques, daquelas festas que eram dadas aos escravos quando tinham boas colheitas do café, do corte de cana. Conforme o negro foi deixando o campo, trouxe aquilo com ele”.

A origem de alguns dos membros da Embaixada do Samba confirma a hipótese. A embaixatriz-mestre Emília Feliciano Ferreira, conhecida como China, é de Rincão, distrito de Araraquara; João Odair de Oliveira Borba, o Borba, é “caipiracicabano”, como gosta de anunciar, e nasceu na mesma cidade que Toniquinho Batuqueiro; Ideval Anselmo nasceu em Catanduva e foi criado em Votuporanga.

Há ainda aqueles cujos pais migraram do interior. Maria e José eram de Guaratinguetá, mas todo mês de agosto viajavam com o filho Carlos Alberto Caetano, o Carlão do Peruche, para Pirapora. Aquele menino, que acompanhava o pai no barracão enquanto a mãe ia para a procissão…

Grande parte dessa população negra que migrava para a capital se concentrava nas regiões menos valorizadas, situadas ao redor de bairros de classe média e alta. Ou nas escarpas dos morros, como nas regiões da Bela Vista, ou Bexiga, próximo ao morro dos Ingleses e da Avenida Paulista; perto de linhas ou estações de trem, como na Barra Funda, região vizinha aos Campos Elíseos; ou em ruas alagadiças por enchentes de rios ou córregos, como o Lavapés, próximo da baixada do Glicério.

Esses migrantes e seus descendentes moravam em porões, casas de cômodos e cortiços próximos fisicamente das famílias mais abastadas, a quem serviam na condição de empregados domésticos, trabalhadores braçais, marceneiros, pedreiros e comerciantes ambulantes. O embaixador Hélio Bagunça conta que, quando jovem, residia na região da Barra Funda com uma tia, o marido dela e a mãe, que era doméstica nos Campos Elíseos. “A gente não tinha casa própria. Eu morava em cortiço, cujo dono era de um português [provavelmente, algum casarão da antiga classe média cafeeira]. Não tinha negócio de depósito, aluguel, nada disso. Cada vez, ele cobrava um valor diferente”. Nessa época, Hélio trabalhava como carregador no Armazém Santa Rosa. “Eram dois, três sacos na cabeça. Às vezes, saía de lá e ainda ia para obra para carregar tijolo”.

O trabalho braçal em depósitos e armazéns ajudou a reunir um grande número de negros na região do largo da Banana, como era conhecido o espaço onde foi construído o Memorial da América Latina, o complexo arquitetônico de Oscar Niemeyer. Ali era ponto final da Estrada de Ferro Sorocabana, no qual eram descarregadas bananas trazidas de ou-tras regiões. Quitandeiros de bairros distantes, como a Penha, ou mesmo do Alto da Lapa chegavam para comprar lotes de frutas. Quem não vendia todo o carregamento, deixava o que restava no largo. “Aquelas bananas maduravam. Daí, os penetras, como eu e tantos outros, pegavam uma verde, uma madura e comia”, lembra Toniquinho Batuqueiro.

Muitos desses “penetras” eram carregadores que, nas horas vagas entre um trem e outro, formavam rodas de samba e de tiririca — um jogo semelhante à capoeira, cujos movimentos das pernas são mais rasteiros. “Quando terminavam os lotes, tinha um barzinho de madeira e ali a gente metia o samba. Cantava, batia palma, tomava uma cachaça. Estava feita a festa”, relata.

Pratos, colheres, latas de lixo, caixinhas de fósforo e o que mais estivesse à mão era transformado em instrumento de percussão. “Realmente, muito sambista frequentava o largo da Banana. Mas era para matar a fome!”. Toniquinho cita alguns dos ritmistas que conheceu por lá: Germano Mathias, Zeca da Casa Verde, Geraldo Filme, Aluizinho e Falcão, e diz que os sambistas do Rio que chegavam em São Paulo também davam uma passada por lá. “Vieram muitos. Talismã, Adelino Silva, Noite Ilustrada, Zé Louro, Armando da Mangueira… Milhares deles”.

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