Desacato entrevista o Prefeito da Comuna de Recoleta, Chile

Daniel Jadue. Foto: Agencia Uno

“A luta pela liberdade, pela democracia, pelos direitos humanos em qualquer parte do mundo onde ela seja necessária.”

Entrevista, tradução e produção audiovisual: Tali Feld Gleiser, para Desacato.info.

Da Juventude Comunista à Comuna

Portal Desacato: Como chegou Daniel Jadue a se tornar prefeito da Comuna de Recoleta?

Daniel Jadue: Foi um processo muito longo. Após sair da universidade, quando passei da Juventude Comunista para o Partido Comunista, o partido me destinou a militar na comuna onde eu nasci. Quando vim para cá, achei uma comuna onde o Partido tinha 2 % dos votos. Acabávamos de ter uma eleição com a companheira Tatiana Zamorano como candidata e após me integrar e fazer as minhas tarefas como militante, decidimos, como partido, fazer um plano estratégico para levar o Partido Comunista ao governo local. Isto foi em 2001. Foi um plano estratégico participativo feito com todas as bases, com participação da comunidade. O nome que escolhemos foi “Recoleta 2012”. Tinha metas, prazos, objetivos estratégicos: tinha imagem-objetivo.  E isso indicou que iniciávamos um processo que devia levar-nos, em 2012, ao governo local. Com esse plano estratégico começamos a trabalhar e, na eleição de 2004, em que eu fui o candidato do Partido, chegamos a 11,2 % dos votos. Na eleição de 2008, alcançamos 17 % e na eleição de 2012, 42 %, num contexto em que as outras forças políticas, algumas devido ao desgaste por fazerem parte do governo nacional e outras, pelo desgaste dos seus próprios erros e a corrupção que tinham instalado porque faziam parte do governo local, o Partido Comunista apresentou-se, finalmente, , também a partir da nossa legitimação na base e a nosso planejamento estratégico, como a alternativa mais válida para que Recoleta voltasse para o lugar que merecia.

P.  D. : Que tipo de comuna é Recoleta?

D.  J.:  A Recoleta é uma comuna muito particular porque é pericentral. É periferia do centro (de Santiago). É periferia da Capital. Está a cinco minutos de La Moneda (Casa de Governo). Porém, trata-se de uma comuna extremamente pobre e muito segregada. 3 % da população possui muitos recursos, não multimilionários, mas com muitos recursos. Tem perto de 10 % de classe média alta e 80 % de classe média baixa e classes populares que são altamente vulneráveis. Mais de 50 % ganha menos de 500 dólares (uns  1.300 reais) por mês.

É uma comuna que  tem muito patrimônio cultural, natural, arquitetônico e urbano. Tem um setor comercial pujante, como o Eixo Sul, que inclui La Vega, Patronato e Bellavista. E tem um setor residencial construído especialmente a partir de políticas de moradias sociais nos últimos 40. 50 anos, que está na Zona Norte da Comuna, chegando à Avenida Vespucio.

P.  D. : Os votos que recebeu o Partido Comunista foi dos setores mais empobrecidos?

D. J. : Não, é muito transversal. De fato, grande parte das pessoas com mais dinheiro votaram no Partido Comunista, cansadas da corrupção da Direita e do mau governo que a Comuna teve durante 12 anos.

Combate contra a corrupção

P.  D. : Que exemplos você pode dar sobre os casos de corrupção que você encontrou quando chegou à prefeitura?

D. J. : Encontramos uma séria corrupção no Departamento de Obras que significou mandar o Diretor de Obras para a cadeia. Ele foi condenado por vários casos de suborno e tem vários processos na Justiça, que continuam até hoje, em relação a projetos emblemáticos feitos foras das normas municipais,  empresas que funcionavam com alvarás falsos. De fato, o caso emblemático é Ceresita (empresa de tintas). Os pegamos num ato de suborno, os condenamos, mas antes fizemos um convênio de reparação. Eles tiveram que investir 2,5 milhões de dólares em melhoramento urbano, , demolir o prédio onde estavam, tiveram que entregar à prefeitura esse terreno onde funcionavam convertido em parque; tiveram que consertar cinco praças, pintar 1.500 casas, consertar muitas calçadas. E foi uma forma de combater a corrupção, um  aceno público porque foi a primeira vez que isso é feito na história do Chile.

Ainda, demos ordem de demolição; tivemos que destituir o Chefe de Emplacamento porque tinha uma série de jeitos de diminuir a renda municipal. Fizemos uma busca e apreensão no Departamento de Tráfego porque vendia carteiras de motorista. A corrupção estava absolutamente institucionalizada e naturalizada porque tinha um grupo que era corrupto e os que não eram só olhavam e não faziam nada porque entendiam que ia desde a liderança do município para baixo.

A mídia monopólica focando a Comuna

P. D. : Como tratou a mídia o combate à corrupção na prefeitura?

D. J. : Após ser uma das prefeituras mais corruptas do Chile, nós, em um ano e oito meses chegamos a ser a quarta mais transparente do Chile. E a mídia não conseguiu silenciar nem ocultar os nossos avanços apesar do bloqueio midiático, num país onde 80 % dos meios são de direita e tem uma posição política que, além do mais, não explicitam, mas efetivamente não conseguiram silenciar e acho que já tem uma imagem diferente da Comuna de Recoleta em relação ao que encontramos quando chegamos.

P. D. : Isso é a relação com os meios hegemônicos, como funciona a área de comunicação da Prefeitura?

D. J. : Temos um departamento de comunicação que é 2.0. Temos redes sociais ativas, página web. Temos uma gestão dos meios através de assessores de imprensa e temos um sistema de comunicação bastante potente que consegue manter a comunidade informada. Temos um jornal que vou te conseguir uma cópia, vou conseguir todas as cópias para que você possa conferir a nossa gestão, dedicado fundamentalmente à comunicação intramunicipal.

O outro aspecto que é preciso reconhecer é que a nossa vitória foi um evento muito midiático em nível nacional e isso perdurou por mais de seis meses, com uma presença na mídia muito forte, que soubemos utilizar com sucesso porque foi muito aguda e pungente. Mas, definitivamente, tem se instalado essa ideia de todas as mudanças que temos feito em gestão, transparência, organização financeira da prefeitura, que recebemos endividada e falida. Hoje em dia a prefeitura tem boa saúde. Houve uma mudança cultural e no clima organizacional. De fato, somos uma das poucas comunas no Chile onde, num contexto em que a educação municipal perde 10 % anual de matrícula, nós aumentamos 27 % a educação municipal no ano passado.

O vínculo com os Movimentos Sociais

P. D. : Qual a relação da prefeitura ou o prefeito com os movimentos sociais, populares, da região?

D. J. : O Partido Comunista tem uma longa história de participação direta nos movimentos sociais. Eu acho que esta divergência ou divórcio que alguns propõem entre partidos políticos e movimentos sociais é um discurso muito interesseiro daqueles partidos que nunca estiveram nos movimentos sociais. O PC não tem essa dicotomia, essa dúvida, esse conflito, porque, até hoje, nem só fazemos parte, mas lideramos grande parte dos movimentos sociais. De fato, no Chile temos a presidenta da CUT que vem aqui com frequência, a presidenta do Conselho de Jornalistas, vários presidentes de federações de estudantes, o presidente do Conselho de Professores em vários níveis. Portanto a relação desse governo com os movimentos sociais, com as organizações de Direitos Humanos, é bastante fluida e muito natural porque eles vêm à prefeitura e se sentem como na sua casa.

Tali Feld Gleiser e Daniel Jadue
Tali Feld Gleiser e Daniel Jadue

Allende e Palestina

P. D. : Como você chegou a escrever  o livro que me deu de presente?

D. J. : O livro sobre Allende?

P. D. : Pode ser, Palestina – Crônica de um assédio, o deixamos para depois.

D. J. : Eu acho que a gestão cultural é uma gestão que deve estar entre os objetivos da prefeitura. Portanto, o livro de Allende, que é um livro de gestão municipal, resgata um valor fundamental num livro de antropologia social que resgata o protagonismo do povo do Chile e o amor a um Presidente, o único com quem isto acontece: deixam presentes para ele, pedidos, botons, lhe deixam sonhos, lhe deixam poesi. E, portanto quisemos reproduzir isto num livro que falasse de como a figura de Allende permanece presente na memória do seu povo.

O outro, Palestina – Crônica de um assédio, é uma experiência pessoal. Eu sou chileno de origem palestina. Sempre estive vinculado com a causa palestina e tive a chance de fazer uma viagem a trabalho político à Palestina, que deu como resultado a necessidade de contar uma experiência que foi bastante traumática e que tem a ver com, através do peso da memória coletiva, entregar para a comunidade e através da experiência vívida de uma viagem onde se vive a repressão, onde se vive tudo o que eu vivi, uma compreensão mais aprofundada do que implica a Ocupação militar. E para mim também foi uma necessidade, porque se a gente pensa na América Latina, o conceito de ditadura é um conceito que todos conhecemos. Falamos em ditadura e a gente pode ser a favor ou contra, você poder ter sofrido ou impulsionado ou desfrutado, mas efetivamente todos sabemos a que nos referimos. Sabemos como opera. E, portanto, é um conceito fácil de digerir no intelectual coletivo. Porém, me parecia que o conceito de Ocupação militar estrangeira é um conceito muito difuso, porque ninguém compreende como ela chega a afetar a vida cotidiana dos seres humanos e queria entregar, através de um livro tipo romance, uma crônica, uma experiência de viagem que é uma viagem exterior, mas também interior porque te permite retornar para onde você nunca esteve destacando o peso da memória coletiva, o peso do imaginário coletivo, o peso da tradição oral que se transmite de geração em geração: um passado e uma história que finalmente você carrega. Me parecia que era uma dívida que eu pagava com dois elementos fundamentais da minha história, como é a data do meu nascimento, que decreta grande parte do que eu sou. Eu nasci em 28 de junho de 1967, o dia em que Israel anexou Jerusalém após a Guerra dos Seis Dias. E, depois, toda uma história de ter me educado num país que me fez sentir do começo que eu não era daqui. Não foi muito diferente quando cheguei lá saber que me diziam o “chileninho”, que também não era muito de lá e que fui virando, com o tempo, um cidadão universal, que acolheu e abraçou a luta pela liberdade, pela democracia, pelos direitos humanos, em qualquer parte do mundo onde ela seja necessária.

Fotos: Tali Feld Gleiser e Maher Musleh.

 

 

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