Por Adriana Brandão, do RFI.
Elas pensavam viver o grande amor, mas ao chegar à França o príncipe virou sapo e o sonho, pesadelo. Lea* conheceu o marido francês durante uma viagem de férias no estrangeiro. No início, eles namoraram à distância: ela no Brasil; ele em Paris. Os dois eram divorciados. Após dois anos, decidiram que ela largaria tudo, emprego, casa e vida estável, e viria para a França com as duas filhas. Lea dependia completamente do marido: do visto de residência à moradia, passando pelo seguro saúde e vida social. Além disso, tinha que administrar os ciúmes excessivos e as cenas de agressividade, que logo começaram. Inicialmente, com visto de visitante, não podia trabalhar e no final de um ano o dinheiro que tinha trazido do Brasil acabou, lembra Lea sem conseguir conter o choro:
“Ele se sentia superior e gostava de sempre falar que eu não era nada sem ele. Engenheiro, diretor de uma empresa, ele ganha bem, mas mesmo assim, não comprava coisas para casa. Eu passei a viver da pensão das minhas filhas, era o dinheiro que sustentava a gente para comer. Era pagar a cantina da escola ou comer em casa! Ele dizia que era minha obrigação viver com a pensão das minhas filhas, que eu estava abusando dele, da família dele!”
Com jornalismo e ficção, o Documento Audiovisual NOVEMBRADA – “QUARENTA, Pra Não Esquecer”, vai contar o que viveram e sentiram os moradores de Florianópolis e Região no fato conhecido como Novembrada que, no dia 30 de novembro, completa 40 anos. Saiba mais em https://www.catarse.me/quarenta
Quando teve autorização para trabalhar, ela descobriu que o MBA brasileiro não valia nada na França e se inscreveu em um Master para ter um diploma francês. As brigas, que ela tentava esconder das filhas, aumentaram. “Eu não sabia que estava sofrendo violência psicológica!” Em março, após uma briga violenta no meio da noite, ela ficou com medo e chamou a polícia pela primeira vez: “O policial que conversou com meu marido, veio gritar comigo, mandou eu calar a boca. (…) Ele disse: você é manipuladora. Você não tem que ficar ligando para a gente. Perguntei: você quer que eu ligue quando então, quando ele me matar? Me senti muito desamparada.”
Foi só quando o marido passou a ser agressivo e machucou também a filha mais velha dela é que Lea pensou realmente em abandonar a relação. Procurou ajuda com uma assistente social e orientação jurídica no consulado do Brasil: “não sabia quais eram meus direitos, os meus deveres.” Saiu de casa, deu finalmente queixa contra o marido na delegacia, foi acolhida por familiares de amigos da filha, conseguiu um emprego e está reconstruindo a vida.
Casal de brasileiros
A história de Olga* é parecida, mas com ingredientes diferentes. Ela já morava no Brasil com o companheiro, mas quando se instalaram na França tudo mudou. Ele veio fazer um Master na Sorbonne e ela resolveu acompanhá-lo. A adaptação à vida francesa foi difícil: “entramos numa bolha. Ele não conseguiu se relacionar muito bem com os franceses, e começou a se fechar e a me fechar. Entramos numa relação abusiva.” Depois de dois anos, Olga decidiu se separar no final do ano passado e sair de casa. O companheiro não aceitou, começou a ameaçá-la de morte e a assediá-la psicologicamente. Ele criou inclusive perfis falsos dela nas redes sociais e utilizou documentos deixados por Olga no apartamento para zerar a conta dela no banco.
“Minhas coisas ficaram todas na casa dele. Ficou insuportável. Fui dormir em um abrigo e comecei a procurar assistência psicológica da universidade onde estudo. Comecei a procurar a polícia também. Foi um terror. O policial foi bem escroto comigo. Disse que não podia fazer nada e que eu tinha que ir lá conversar com meu companheiro. Mas ele quer me matar como é que eu vou lá! Eu chorei pedindo ajuda para o policial e ele simplesmente olhou para minha cara e disse que não podia fazer nada!”
Olga também sentiu que foi discriminada por ser estrangeira: ”Senti preconceito por eu ser latina. Quando eu disse que era brasileira, ele quis olhar logo o meu passaporte. Saber quanto tempo eu estava aqui, se eu estava legal.”
Em outra delegacia também foi tratada com descaso, mas pôde fazer um B.O. de abandono do lar, que não citava a violência doméstica. Com o documento recuperou o dinheiro no banco e conseguiu moradia. Ao tentar pegar seus pertences, foi agredida pelo ex-companheiro que jogou todas as suas coisas pela janela. Nova visita à delegacia e nova cena de indiferença. “A sensação que a gente tem é que o país da gente é ruim, mas a Justiça do Brasil parece ser mais forte do que aqui em relação às mulheres. A forma que eles tratam a gente é desumana. Eles estão tão habituados, que você é só mais uma.”
Ela persistiu, deu queixa e o ex-companheiro, que continua a ameaçando de morte, só agora foi intimado a depor. Olga continua tendo apoio psicológico, tem agora menos medo e até começou um novo namoro. “Hoje eu estou muito orgulhosa de mim por ter superado. Resolvi todos os meus problemas: meu nível de francês melhorou 150%, a minha vida foi para frente, consegui trabalho e estou legal. Não fiquei ilegal como ele disse que eu ficaria e consegui uma pessoa que me respeita.”
Violência contra brasileiras
A violência contra as mulheres apresenta números constantes na França e preocupa as autoridades, que lançaram o debate nacional de três meses para tentar frear o fenômeno, considerado um problema de saúde pública. A cada ano, cerca de 200 mil mulheres são vítimas de agressões e desde janeiro de 2019, mais de 100 feminicídios já foram registrados no país.
Não há estatísticas específicas sobre o número de brasileiras vítimas de violência conjugal na França, mas a ocorrência é significativa, confirma Pedro Gomides, cônsul-adjunto no Consulado Geral do Brasil em Paris, chefe do setor de assistência a brasileiros.
Para atender a demanda da comunidade brasileira no país, atualmente calculada em mais de 110 mil pessoas, o setor criou em abril uma assessoria jurídica e outra psicológica. O serviço atende em média 50 casos por mês e as “mulheres que são vítimas de agressões em ambiente doméstico constituem, seguramente, mais de 60% dos atendimentos feitos pela assessora psicológica”, aponta Gomides.
O cônsul-adjunto diz que o problema atinge todas as classes sociais, tanto casais binacionais, quanto nacionais. Mas, de acordo com a experiência do consulado, “infelizmente é uma situação que acaba acometendo uma parcela que não dispõe de meios financeiros e também com um déficit educacional”. Gomides confirma que o status de imigrante fragiliza as condições das mulheres e por isso ressalta que o consulado se esforça para “tentar conscientizar as pessoas que é preciso migrar com consciência. Essa é uma das principais mensagens que tentamos passar para os consulentes.”
Apoio de associações
O consulado não possui uma estrutura para acolher as vítimas de violência doméstica e conta com o apoio de associações locais. Uma das ONGs que mais ajuda as brasileiras na França é a PASTT (Prevenção, Ação, Saúde e Trabalho para os Transgêneros), fundada pela médica paraibana Camille Cabral. “Não somos subvencionados para ajudar pessoas vítimas de violência conjugal, mas a gente o faz assim mesmo”, conta Camille.
Em 2018, PASTT ajudou 83 mulheres, a maioria vindas do Brasil ou de outros países da América Latina, principalmente para fornecer documentos e auxiliar no direito ao acesso à saúde e assistência social na França. “Este número está em alta”, alerta a médica, que teme que o debate atual lançado pelo governo francês contra a violência doméstica seja mais uma “campanha de midiatização do que uma resposta real” para enfrentar o problema. Esse combate necessita de mais verbas, pede Camille.
A realidade da violência doméstica também fez o núcleo de Paris do grupo de Mulheres do Brasil criar, no início deste ano, um comitê de Combate à Violência contra a Mulher. “Demos suporte legal para pelo menos dez mulheres desde a criação do comitê. Ainda temos uma dificuldade muito grande das mulheres admitirem que sofrem violência, tanto pela vergonha, quanto por medo represálias do companheiro. Estigma muito grande”, explica Jaminny Benício que anima o comitê.
Como Camille Cabral, Jaminny receia que a atual campanha francesa para frear a violência doméstica no país seja “um palanque político ou muito barulho por nada”. A professora de inglês radicada na França, avalia que o país ainda é “muito machista” e as denúncias descreditadas. Ela espera que, na esteira do movimento #Metoo, “se crie uma campanha, uma força mundial que dê voz para a mulher (vítima de violência doméstica) fazer denúncia também”.
O comitê realiza rodas de acolhimento, com a presença de uma terapeuta. As interessadas podem obter informações nas páginas do grupo Facebook ou no perfil @protecaodamulheremparis criado especialmente no Instagram, onde uma cartilha com todos os direitos das mulheres na França pode ser acessada.
*Os nomes foram trocados para garantir o anonimato das entrevistadas