Democracia aprisionada

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Por Rita Coitinho, para Desacato.info.

Após duas décadas de ditaduras, a América Latina dos anos 1990 parecia entrar em uma nova era, a era das democracias, em que os sufrágios das maiorias definiriam os rumos da política. Essa “abertura democrática” coincidia, não por acaso (como veremos), com a consolidação dos princípios neoliberais: desregulamentação financeira, abertura de mercados, fim das políticas industriais nacionais, privatizações, prioridade dos orçamentos nacionais ao pagamento de dívidas.

Em 1991, a Organização dos Estados Americanos (OEA) realizou um processo de reformas de sua Carta, de onde nasceu o Compromisso de Santiago do Chile com a Democracia e com a Renovação do Sistema Interamericano, um acordo que estabelece a democracia representativa como única forma de governo legítima no continente americano. Para além de ser uma “vacina” contra o reingresso de Cuba na Organização (suspensa desde 1962 em razão de não renunciar aos princípios de sua revolução, mas fundamentalmente por identificar-se com o socialismo soviético em plena Guerra Fria), o Compromisso de Santiago foi idealizado como barreira a mudanças indesejadas de regime, o que foi muito bem recebido por organizações de esquerda e democratas de todo o continente, pois parecia ser também uma proteção contra novas ditaduras militares.

Nas reuniões subsequentes da OEA, passou-se a definir o que essa organização entende por democracia representativa, e a cláusula democrática foi estendida a todos os organismos e acordos regionais, pertencentes ou não ao sistema interamericano e criou-se um mecanismo de fiscalização eleitoral e sanção de “infratores”. Esse processo foi consolidado com a aprovação da Carta Democrática Interamericana, fato que se deu apenas algumas horas depois dos atentados de 11 de setembro ao World Trade Center.  Para Roberto Regalado, em seu livro sobre o Foro de São Paulo, publicado em 2008, todos esses acordos tinham um único objetivo: impor um esquema único de democracia neoliberal, sob a fachada do que ele denomina Governabilidade Democrática.

Segundo Regalado, a Governabilidade Democrática é uma adaptação, muito forçada, por certo, da doutrina da governabilidade, para adequá-la aos requisitos da reforma neoliberal da América Latina, com o propósito específico de sufocar a crise política que logo seria gerada pela concentração de riqueza, principal “efeito colateral” do neoliberalismo. O conceito de “governabilidade” foi formulado pela Comissão Trilateral nos anos 1970 para fazer frente ao que seus membros identificavam como um “excesso de democracia”. Excesso de democracia, em poucas palavras, é quando as mudanças de governo, ocorridas por sufrágio universal ou por outros meios, proporcionam a participação real do povo, o que em geral leva os governos a “desviar” recursos para áreas de interesse das populações – saúde, educação, assistência social, previdência, promoção do desenvolvimento etc.

Nas palavras de Regalado, “a doutrina da governabilidade não foi concebida para preservar direitos de cidadania, mas para restringi-los. É um esquema de controle social que fecha os espaços de contestação abertos pelos movimentos sociais, operários, socialistas e feministas, bem como dos partidos de esquerda, em cena desde o século XIX, que em certos momentos históricos arrancaram à burguesia certas melhorias nas condições de vida. A governabilidade democrática promove o que Hugo Zemelan define como alternância dentro do projeto: um esquema de alternância entre pessoas e partidos que ocupam o governo, porém todos submetidos a um projeto neoliberal único, que não podem substituir nem modificar”.

Assim, o que se viu na América Latina dos anos 1980/90, foi a abertura à alternância de governos, em uma situação em que os novos governantes não poderiam promover a alternância real de projetos, graças às amarras criadas pelas novas estruturas econômicas. Algumas cláusulas pétreas do mercado deveriam ser mantidas, à revelia das mudanças de partidos e blocos sociais que ascendessem aos governos. Assim, grande parte das experiências de esquerda que chegaram aos governos nos anos 2000 não tiveram condições de reverter esquemas muito bem consolidados de apropriação do excedente por parte do sistema financeiro. Enquanto os preceitos do mercado fossem mantidos, as mudanças de governo não seriam temidas ou atacadas.

 Contudo, aqueles governos que ascenderam em condições de ruptura institucional ou que a promoveram (ou tentaram) essa ruptura, transformaram-se imediatamente em “inimigos da democracia”, não importava a quantos sufrágios tenham se submetido. É o caso da Venezuela chavista, onde todos os governos desde 1998 foram eleitos por maioria dos votos, alguns se submeteram a referendos e, ainda assim, são classificados pela mídia monopolista como “ditaduras”.

Em outros países, como na Argentina e no Brasil, os governos de esquerda passaram a sofrer ataques sistemáticos na medida em que ousavam “desviar” recursos para áreas como saúde, educação e assistência social, mesmo que, especialmente no caso brasileiro, não se tenha deixado de garantir os superávits necessários à remuneração da banca financeira internacional. No final da primeira década do século XXI, o próprio “mercado” já havia perdido a confiança na “governabilidade democrática”, percebendo que as amarras criadas nos anos 1990 estavam sob ameaça. O próprio mercado, então, jogou no lixo o Compromisso de Santiago e os resultados dos sufrágios passaram a ser, eles próprios, objetos de ataques. O maior exemplo disso é o recente relatório do FMI, publicado em 25 de janeiro, onde afirma-se que as “instabilidades” causadas pelas eleições, no Brasil, deverão prejudicar a economia.

Vê-se, com isso, que a “democracia”, propagada pelos neoliberais como “valor universal”, pode ser relativizada a qualquer tempo, em nome dos ganhos do rentismo e da continuidade do modelo de concentração de renda. No Brasil a democracia está aprisionada pelo “mercado” desde a constituição de 1988, que nunca impediu o enorme peso do poder econômico sobre as eleições e, quando foi possível uma aliança popular chegar ao governo central, as medidas redistributivas tiveram que ser adequadas às restrições do mercado e, ainda assim, foram consideradas uma afronta ao “livre mercado”.

Retornando ao que diz o texto de Regalado, a implantação da governabilidade democrática implicou numa mudança na forma da política do imperialismo para a região. A mudança consiste em que, historicamente [especialmente nos anos da Guerra Fria], um aspecto essencial dessa política era opor-se a qualquer acesso da esquerda ao governo, enquanto que com a governabilidade democrática aspirava-se a que uma “esquerda prisioneira” compartilhasse os custos da crise capitalista e ajudasse a legitimar o novo sistema de dominação. Na medida em que os governos democráticos e populares, em maior ou menor grau, recusaram-se a seguir arcando com os custos da crise e buscaram reverter alguns dos preceitos essenciais do consenso neoliberal, a esquerda e, juntamente com ela, a democracia, precisa ser urgentemente aprisionada. “Às favas com o Compromisso de Santiago!”, dizem lá em Wall Street os lobos do mercado.

 

Rita Coitinho é socióloga, doutoranda em geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz.

 

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