Demasiada moderação no rechaço à colonização da Palestina por Israel

Por Moara Crivelente*, de Genebra.

Repetimos: a colonização da Palestina por Israel não é um “conflito” com “duas partes” simetricamente responsáveis por “escaladas de violência”. A violência na Palestina ocupada por Israel é estrutural, sistêmica, epistêmica e contínua, embora a atenção global só retorne àquela região e àquele povo resistente quando há mortes. Muitas mortes. Nesta segunda-feira (2), no Conselho de Direitos Humanos da ONU, a “situação na Palestina” merecia mais contundência. E ela não veio do Brasil.

O Brasil, como outros, reconhece que a questão palestina é uma de demanda por libertação do jugo de uma potência ocupante, que é Israel. Tanto é assim que em 2010, durante o Governo Lula, reconheceu o Estado da Palestina, como sabemos, estabelecendo acordos e, ainda que modesta, mas exponencialmente, apoiando agências como a que presta assistência aos cinco milhões de refugiados palestinos espalhados por dezenas de campos nos países vizinhos e na própria Palestina.

Também sempre condenou a construção de colônias israelenses na Palestina ocupada, prática que constitui flagrante violação do direito internacional humanitário e cumpre ainda uma função política: a tentativa de consolidar fatos irreversíveis, colocando em xeque a dita “solução de dois Estados” ao inviabilizar o estabelecimento de um Estado da Palestina livre e soberano, através da colonização do seu território e da expulsão da sua população.

A liderança israelense age com a garantia da impunidade, estruturando um opressivo “regime de emergência” que rege a “normalidade” desde a consolidação do Estado de Israel.

Por isso, não pode haver meias palavras, nem conjunções adversativas. Não se pode rejeitar a “desproporcionalidade do uso da força” por Israel e a contínua construção de colônias “mas” ainda condenar atos violentos da “outra parte”, que é essencialmente o povo oprimido em resistência. Esta não é perspectiva ideológica, é fato discutido na própria ONU, que mais de uma vez reconheceu a legitimidade da resistência à dominação estrangeira, inclusive em casos de ocupação militar e colonização.

Desde o Dia da Terra na Palestina, 30 de março, dia da resistência e da resiliência, sumud – uma persistente teimosia em ficar, não se render ao ambiente de violência pervasiva criado para expulsar a população palestina – os palestinos engajam-se na Grande Marcha de Retorno. Trata-se de um protesto contínuo próximo à zona tampão entre a Faixa de Gaza sitiada e Israel, que a liderança israelense chama de sua fronteira.

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Mulher palestina ergue bandeira durante os protestos, em 27 de abril de 2018. Foto: Ibrahim Abu Mustafa / Reuters

Manifestantes desarmados são alvos e os soldados israelenses recebem ordens de atirar para matar. A liderança daquele regime racista e segregador alega que se trata de uma situação de hostilidade em que os palestinos buscam invadir as “fronteiras” israelenses, são “ameaças securitárias”. Tudo isso já foi amplamente noticiado e é enfadonha a aparente necessidade de tanta repetição.

Mas ainda é preciso reforçar: cerca de 70% da população de dois milhões de habitantes da Faixa de Gaza é composta por refugiados expulsos de seus lares e terras no que se tornou o Estado de Israel em 1948. Há até mesmo quem tenha sido deportado da Cisjordânia para Gaza como medida punitiva por Israel. Há pelo menos 11 anos a Faixa de Gaza não está apenas sitiada por ar, terra e água, mas sua população sobrevive a um espírito de cerco psicológico. É preciso ir a fundo nas consequências de uma política de confinamento, onde até as calorias são contadas na travessia dos suprimentos controlada por Israel.

A atenção mundial voltou-se para o território ocupado e sitiado novamente este ano não porque Israel lançou mais uma das suas devastadoras ofensivas militares – a próxima, acreditam os palestinos, está iminente e será pior, perspectiva que evidencia o espírito de insegurança e terror imposto aos palestinos. Desde 30 de março, a brutalidade da repressão israelense diante da ousadia de manter um protesto há três meses tomou 135 vidas, causou milhares de feridos e destruiu um pouco mais qualquer resto de esperança no compromisso internacional com a solução do “impasse” no dito “processo de paz” ao qual a representação do Brasil e outras se referiram em suas intervenções, no debate de hoje sobre a Palestina no Conselho de Direitos Humanos.

Tal processo, atrasado em seu cumprimento formal por pelo menos duas décadas, há muito é uma miragem. Os palestinos não têm razão para acreditar em qualquer promessa, embora reafirmem seu compromisso com a diplomacia. E é por tal frustração que a liderança israelense e seus aliados continuam responsabilizando os palestinos pela “escalada da violência” ou a “deterioração da situação” que “preocupam gravemente” os governos a ponto de as declarações e resoluções se contarem às centenas.

A saída dos EUA do Conselho de Direitos Humanos, sob a alegação de que o mecanismo é demasiado “anti-Israel”, não passa de uma tática de desvio da atenção, tanto dos crimes de Israel quanto dos próprios crimes da maior potência imperialista do planeta. É simbiótica a relação entre ambos os regimes. A liderança israelense e seus porta-vozes na sociedade civil – o próprio Conselho de Direitos Humanos é palco das mais infames propagandas transmitidas por ditas ONGs – insistem na difamação constante do órgão e dos governos de países que defendem o povo palestino, como Venezuela, Síria, Irã e Cuba. A deslegitimação dos seus oponentes é praxe, inclusive de organismos multilaterais, se houver ali uma rara convergência que garanta um espaço, diferente do Conselho de Segurança, onde não ditem o ritmo da dança as grandes potências. É esta a grande “ameaça”.

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O protesto em Gaza é essencialmente pacífico, não importa a que partidos sejam filiados os manifestantes. A alegação de que se trata de uma hostilidade provocada pelo Hamas é parte da tergiversação de sempre. Usem os métodos que utilizarem, os palestinos serão sempre deslegitimados por Israel e seus parceiros. Estão aí os movimentos de solidariedade internacional, o movimento palestino de Boicote, Desinvestimento e Sanções, os palestinos que se submetem à provação de integrar o Parlamento israelense – sendo os árabes cerca de 20% da população em Israel – e os defensores de direitos humanos, jornalistas, intelectuais e afins para demostrar como serão taxados de ameaças e assim tratados qualquer um e uma que ouse expor os continuados crimes do regime de apartheid israelense.

Não há “partes num conflito”. Há uma ocupação militar prolongada por cinco décadas e a colonização enraizada da Palestina por Israel a ponto de ser crescente a discussão sobre o iminente ponto sem retorno para a “solução de dois Estados”, inclusive entre os que sempre defenderam o direito do povo palestino ao seu Estado ao lado de Israel através de soluções negociadas. A liderança israelense não busca apenas enterrar este compromisso, busca enterrar qualquer confiança dos palestinos na diplomacia que leve a uma solução justa e assim continuar culpando a liderança palestina pelo fracasso do “processo de paz”.

Quaisquer discursos ou proposições que ignorem esta intenção, essa relação assimétrica e a sistematicidade da violência que estrutura o regime israelense de ocupação e colonização da Palestina são falaciosos, por mais recheados de jargões e princípios diplomáticos que se apresentem. Mas que não haja engano: mais importante ainda não serão palavras mais honestas e sim ações concretas, que abrirão o caminho para o fim deste ciclo vicioso sustentado na impunidade e que asfixia a esperança do povo palestino.

*Moara Crivelente, doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos, integra a Direção do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)

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