Por Vinícius Segalla, DCM.
O ex-diretor geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF) preso na última quarta-feira (9), Silvinei Vasques, celebrou um acordo de cooperação com uma organização evangélica para transformar a doutrina neopentecostal em filosofia oficial da corporação que comandava.
Sob seu comando, fez-se uso de viaturas policiais para arrecadar, transportar e entregar nacionalmente bíblias e livros “de cunho religioso, proselitista ou devocional” para unidades e postos da PRF em todo país.
No mesmo período, ao longo dos anos de 2021 e 2022, foram utilizados espaços públicos da Polícia Rodoviária Federal, “em todo o Território Nacional, para a prática de atos de proselitismo religioso e palestras devocionais”, contrariando o princípio de laicidade da República Federativa do Brasil, conforme atestou e combateu o Ministério Público Fedral (MPF).
A Igreja Universal do Reino de Deus, comandada pelo bispo Edir Macedo e ligada ao partido Republicanos, do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, é a denominação evangélica que mais se beneficiou da prática contrária à laicidade encampada pelo ex-chefe da PRF.
Além dela, a organização evangélica norte-americana “Ministério do Pão Diário”, fundada em 1938 no estado do Michigan pelo pastor Martin RalphDeHaan, presente hoje em dia em mais de 150 países, estabeleceu acordos de cooperação com a PRF e levou sua doutrina aos mais de 12 mil policiais que compõem a corporação, com atuação ativa e diária em todos os postos da entidade.
Entenda, a partir do que segue abaixo, como isso se deu e foi possível.
A doutrinação evangélica como política oficial de Estado
Em agosto de 2021, o Ministério da Justiça (então sob o comando do ministro Anderson Torres) e a PRF (à época sob a chefia de Vasques) celebraram o Acordo de Cooperação nº 01-/2021/CSS/CGPP-DPSP/SENASP, entre a Secretaria Nacional de Segurança Pública e o “Ministério Pão Diário no Brasil”.
Por meio desse acordo, a entidade religiosa passou a utilizar os espaços públicos da PRF para promover seminários, palestras de “assistência espiritual” e encontros para a leitura da bíblia. Quer dizer: sob as ordens de Silvinei Vasques, conforme denuncia o MPF, as dependências do órgão federal passaram a ser sede de cultos evangélicos promovidos pela organização religiosa dos EUA.
Quem afirma o que se reproduz acima é o MPF. No dia 7 de outubro de 2022, o orgão emitiu a RECOMENDAÇÃO CONJUNTA Nº 19/2022, que pretendia colocar fim na atividade ilegal instaurada por Vasques. Os procuradores federais denunciaram que o então diretor-geral da PRF estava submetendo seus subordinados ao Plano de Trabalho – SEI/PRF – 40391520.
O referido plano previa que o Ministéro do Pão Diário realizasse atividades, ciclos de palestras e “cursos de assistência espiritual voltados a todos os servidores da PRF”. Eram utilizados espaços públicos da Polícia Rodoviária Federal, em todo o Território Nacional, para levar a doutrina da organização evangélica internacional a todos os servidores da corporação.
Além disso, com a devida anuência do acordo cooperativo, a PRF transportou com suas viaturas mais de 5.000 bíblias e mais de 5.000 livros doutrinários do local onde eram produzidos para todos os postos da Polícia Rodoviária Federal no país, para que fossem entregues aos servidores federais da instituição.
As palestras ou cultos evangélicos foram ministrados, pelo menos, ao longo de dois anos nas instalações da PRF de todo país, em 2021 e 2022, e ainda seguem ocorrendo em algumas unidades da federação, como Minas Gerais, São Paulo e Santa Catarina.
No dia 6 de outubro do ano passado, o MPF requereu ao então diretor-geral Silvinei Vasques que deixasse de usar viaturas públicas para transportar bíblias e livros privados para dentro da PRF, como se pode ver abaixo.
Os procuradores federais explicaram, em documento oficial entregue a Vasques por que era ilegal a prática que sua administração submetia à instituição federal:
“A preservação do princípio da laicidade é demonstração de respeito por parte do Estado a todas orientações religiosas, crenças e não crenças, que assim podem ser exercidas em plena igualdade de condições e nos ambientes propícios para isso, sem interferência ou patrocínio estatal“.
“A Constituição obriga o tratamento isonômico por parte do Estado a todas as religiões, estando vedado o favorecimento ou hierarquização de interpretações bíblicas e religiosas de um ou mais grupos em detrimento dos demais”.
A afronta à laicidade estatal chegou ao ponto de Vasques ter inserido nas páginas de internet da PRF o aplicativo do Pão Diário, para que os agentes rodoviários tivessem contato com a doutrina da entidade evangélica por meio da página de seu empregador, a PRF. Tal fato também foi combatido pelo MPF, que determminou a “suspensão de utilização do Aplicativo Pão Diário Segurança Pública, no
âmbito Polícia Rodoviária Federal”.
Em que pese a atuação da associação religiosa norte-americana dentro da PRF continue acontecendo até hoje, conforme apurou o DCM, em novembro de 2022, a entidade então comandada por Vasques afirmou aos procuradores que as atividades ilegais postas em práticas pela corporação estavam sendo interrompidas a partir dali. Era mentira.
Igreja Universal tem livre acesso na PRF e faz eventos com agentes armados e uniformizados
A Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), por meio de seu braço militar, a UFP (Universal nas Forças Policiais), é outra denominação evangélica que ganhou livre acesso à PRF e status de parceira da corporação durante o governo Jair Bolsonaro e a gestão Silvinei Vasques.
No dia 19 de outubro de 2019, por exemplo, o pastor Antônio e os voluntários do UFP realizaram o “momento de reflexão e oração de proteção (PRF)-Polícia Rodoviária Federal”, na sede da corporação em Salvador (BA). Por lá, os representantes da igreja foram recebidos pelo Inspetor Rafael, que recebeu a doação de centenas de exemplares do jornal Folha Universal e da Bíblia Sagrada editada na gráfica da entidade de Edir Macedo.
Tal evento está longe de ser um caso isolado. A Iurd realiza orações diárias em mais de 20 sedes e postos da PRF em todo país, até hoje. Veja, abaixo, imagens de eventos da igreja de Edir Macedo em parceria com a PRF ocorridos durante a gestão Vasques.
Braço militar da Igreja Universal divulga em suas redes evento feito em parceria com a PRF (crédito: reprodução)
Comandante da PRF no Paraná recebe Roni Negreiros, chefe da UFP (crédito: reprodução)
Igreja Universal sedia evento da PRF em Cuiabá (MT)
Superintendência da PRF no Espírito Santo realiza evento de premiação de inspetores da corporação em templo da Igreja Universal (crédito: reprodução)
Entram as igrejas evangélicas, saem os Direitos Humanos
Ao mesmo tempo em que firmou convênios e franqueou acesso às doutrinas e denominações evangélicas na PRF, a gestão Bolsonaro/Vasques interrompeu a política e observação dos Direitos Humanos dentro da corporação.
Em junho do ano passado, o MPF de Goiás instaurou um procedimento para apurar a extinção das Comissões de Direitos Humanos da Polícia Rodoviária Federal. As comissões, que tinham como prerrogativa monitorar processos disciplinares contra agentes e orientá-los sobre o tema, tiveram o funcionamento interrompido por portaria assinada pelo diretor geral, Silvinei Vasques, no dia 3 daquele mês.
A discussão sobre a conduta e procedimentos adotados por agentes da PRF veio à tona após uma abordagem desastrosa que culminou com a morte de um homem de 38 anos, em Sergipe, em 25 de maio do ano passado. Genivaldo de Jesus Santos foi parado em uma blitz por estar conduzindo uma moto sem capacete, na altura de Umbaúba (SE). Acabou sendo imobilizado, amarrado e colocado no porta-malas de uma viatura. Dentro do veículo, os policiais detonaram uma bomba de gás lacrimogêneo. Ele chegou a ser levado ao hospital, mas morreu de asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda, segundo laudo do Instituto Médico Legal (IML).
Amém, pessoal?
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