Da saia escocesa à reinvenção da democracia

Escócia-485x272Milhares de escoceses manifestam-se pela independência, a ser decidida em plebiscito. Últimas pesquisas apontam enorme avanço do “sim”, que pode encerrar união do país à Inglaterra, em vigor desde 1707

Por Nuno Ramos de Almeida.

A eventual vitória dos independentistas na Escócia, o referendo marcado pelo governo autônomo da Catalunha para Novembro, para não falar do conflito na Ucrânia, demonstram que as fronteiras políticas no mundo não estão escritas nas estrelas e dependem da variação das questões políticas que estão em discussão e de múltiplas correlações de forças em presença.

O recrudescimento das nações, e até de um certo nacionalismo na Europa, mais que um regresso ao passado é uma reação ao presente.

Há muito que é sabido que as nações e as tradições são construções ideológicas, mas nem por isso são menos reais na vida dos homens que as supostas determinações biológicas para os animais. Os trabalhos de Eric Hobsbawm e Trevor-Roper sobre o papel da invenção das tradições na legitimação do nacionalismo é a esse respeito exemplar: mostra, por exemplo, que a reputada como antiga “parafernália nacionalista”, através da qual os escoceses celebram sua identidade nacional, é na verdade bastante moderna e a própria ideia de que existe uma cultura e uma tradição específicas das Terras Altas não passa de uma invenção retrospectiva. A parte mais divertida das conclusões de Trevor-Roper é a demonstração de que o famoso kilt escocês é uma invenção de um industrial inglês e não a recuperação de uma tradição ancestral: “o kilt é uma vestimenta absolutamente moderna, idealizada e vestida pela primeira vez por um industrial quaker inglês, que não o impôs aos montanheses para preservar o modo de vida tradicional deles, mas para facilitar a transformação deste mesmo modo de vida: para os trazer das urzes para a fábrica”. A sua recuperação pelo nacionalismo foi feita em reação à repressão britânica após os acontecimentos de 1745, que passa a proibir a utilização dos trajes montanheses, que, após 35 anos, pareciam ter-se extinguido.

Tanto o nacionalismo escocês como o basco ou o catalão, mais que uma recuperação de velhas tradições milenares são a afirmação da crescente insatisfação das populações com um modelo político que lhes retirou soberania e capacidade de decisão. Antes de ser nacional, a crise é democrática: o processo de globalização econômica e da construção europeia roubou aos povos da Europa a capacidade de discutir o seu próprio futuro. Hoje as decisões fundamentais da vida das pessoas são tomadas pelos mitológicos “mercados”, que mais não são que a expressão disfarçada dos interesses do grande capital financeiro, e a gestão política do poder é entregue de fato a uma burocracia europeia não eleita.

No atual quadro da União Europeia, tanto as eleições para os parlamentos nacionais como as do parlamento da UE não passam de espetáculos em que as luzes da ribalta e a agitação escondem que as principais decisões estão tomadas independentemente da vontade dos cidadãos. Os parlamentos e os governos nacionais ficaram sobretudo com o poder de tocar o hino e hastear as respectivas bandeiras. E o parlamento de Estrasburgo é apenas uma máquina de produzir fumaça.

Mais que os nacionalismos, aquilo que hoje está em causa na Europa é uma reação soberanista. As pessoas querem espaços políticos em que possam decidir a sua vida e não instrumentos de ilusionismo político que servem para disfarçar que são sempre os mesmos a decidir.

O poder da casta dos negócios sobre a generalidade da população baseia-se também na continuação desta mentira. Cortar com ela é devolver às pessoas a possibilidade de decidirem no seu bairro, no seu trabalho, na sua localidade e no país em que vivem: não é nacionalismo, é simples democracia contra a ditadura dos mercados.

Fonte: Outras Palavras.

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