Por Douglas Kovaleski, para Desacato. info.
No texto dessa semana irei aprofundar um pouco sobre a possibilidade de ruptura da alienação por meio das associações a partir da teoria de Antônio Gramsci de sociedade civil e da formação política das massas. O associativismo nesse escopo coloca-se como uma possibilidade de emancipação humana a partir da base, dos movimentos sociais e da educação popular.
Para Gramsci, nas massas se localiza a possibilidade de transformação da sociedade, pois é nesse lugar que, ao mesmo tempo, que se ampliam os instrumentos de manipulação e renasce a criatividade popular tomando a possibilidade de escrever sua história com as próprias mãos. E a solução para a dominação e exploração das massas passaria pela construção de um “Estado ético”, capaz de ultrapassar os conflitos da sociedade civil, pautado pela radicalidade da democracia por meio da participação popular, a partir da formação política.
Por meio do desenvolvimento de uma consciência histórica da realidade e de uma ação política voltada a elevar a condição “intelectual e moral” das massas se poderia chegar a uma sociedade “civil” e consciente da sua condição e capaz de se autogovernar. Dessa forma, as pessoas organizadas coletivamente por meio de associações apresentam suas reivindicações, que no seu conjunto constituem uma revolução.
A democracia popular torna, a partir dessa análise orientadora dos espaços dentro dos quais era necessário repensar a política e elaborar os novos termos da hegemonia (na sua concepção gramsciana). Assim, se fez necessário ampliar a concepção de Estado e de sociedade. Por um lado, não era mais possível pensar a sociedade civil com caráter apenas econômico, agindo apartadamente da estrutura do Estado.
A grande preocupação de Gramsci nesse aspecto é evitar os enganos vividos com a experiência da Primeira Guerra Mundial, por exemplo. Para ele, os dois erros maiores seriam cair nos estatismo ou no economicismo. O economicismo separa o Estado da sociedade civil, considerando-a um setor autônomo, regulado por normas da economia de mercado: o liberalismo; deixando a sociedade civil como protagonista da história. O outro extremo que preocupava Gramsci está em grande medida relacionada com o nazismo e facismo, onde o Estado totalitário unifica forçosamente sociedade civil no Estado, tentando controlar toda a vida popular e nacional.
As democracias devem desenvolver uma ampla e dinâmica sociedade civil que permita expressar plenamente as aspirações e a participação dos diferentes setores da vida coletiva. Nessa perspectiva, não é a força do de Estado ou a pujança econômica, mas a criatividade e a articulação entre as variadas associações da sociedade civil, com os indivíduos aprendendo a política, o autogoverno em um meio democrático.
Assim, a função primordial do Estado democrático deve ser ética, em seu sentido educativo e, nas palavras de Gramsci, de “elevação intelectual e moral das massas”. O caráter político de solidariedade e bem viver entra como um olhar transversal. O Estado se torna ético porque promove o crescimento da sociedade civil sem anular os espaços de liberdade dessa, de modo que a sociedade civil, à medida em que amadurece na responsabilidade e na socialização do poder, acaba anulando as intervenções externas e coercitivas do Estado e se transforma em Estado autorregulado.
Há de se considerar o caráter utópico dessa perspectiva, mas se entendemos que que todos são iguais, racionais e morais, pode-se aceitar que, a partir de uma construção histórica que foge da abrupta tomada do poder, é possível a construção de uma sociedade realmente livre e comandada pela vontade das massas organizadas coletivamente em associações. As associações aqui consideradas perfazem todos os coletivos organizados, partidos, agremiações ou grupos que tenham objetivos em comum. Essa perspectiva investe também na socialização coletiva, solidária e fraterna como potencializadora de autonomia e de valores moralmente superiores.
A novidade da noção de sociedade civil esboçada por Gramsci consiste no fato de que não foi pensada em função do Estado, como abordei brevemente no texto da semana passada. Para Gramsci, a sociedade civil é, antes de tudo, o extenso e complexo espaço público não estatal onde se estabelecem as iniciativas dos sujeitos modernos que com sua cultura, com seus valores ético-políticos e suas dinâmicas associativas chegam a formar as variáveis das identidades coletivas. Espaços político onde as classes subalternas são chamadas a desenvolver suas ideias e a lutar para um novo projeto hegemônico democrático e popular de sociedade.
Ao destacar a importância da liberdade, das associações democráticas e do envolvimento ativo das massas, Gramsci exalta a força educativa e mobilizadora da teoria marxista. Essa é uma possibilidade de transformação social que pode iluminar a práxis dos militantes em tempos difíceis como o que vivemos.
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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos socais.