Crise na Argentina requer atenção redobrada do Brasil. Por José Álvaro Cardoso.

Por José Álvaro Cardoso.

A relação entre Brasil e Argentina é primordial em todos os sentidos: cultural, econômico, político e social. As duas economias se relacionam fortemente. Por exemplo, a corrente de comércio entre os dois países, exportações + importações, alcançou US$ 28,4 bilhões em 2022. Os maiores parceiros comerciais do Brasil atualmente são China, EUA e Argentina, pela ordem. Essa relação entre os dois países só não é mais estreita, por uma série de razões, começando pela política do império norte-americano em manter a região dividida politicamente.

Na votação das PASO (sigla das eleições Primárias, Abertas, Simultâneas, Obrigatórias), em 13 de agosto, foram realizadas as prévias entre todos os partidos, na qual votam todos os cidadãos argentinos. As PASO visam estabelecer um credenciamento dos candidatos, que devem obter pelo menos 1,5% dos votos totais, para poderem concorrer nas eleições nacionais. O grande vencedor das prévias foi Javier Milei, candidato da extrema direita, apoiado por uma coalizão, que reúne 4 partidos (La Liberdad Avanza). Milei obteve mais de 30% dos e venceu em 18 das 23 províncias do país. O governo peronista, com o candidato Sérgio Massa, foi fragorosamente derrotado no pleito, obtendo apenas 21,7% dos votos totais.

A participação eleitoral foi de 69,62%, a menor desde que as PASO foram implementadas em 2011, mesmo sendo obrigatório o voto nas primárias. A juventude, que representa 45% do eleitorado, votou maciçamente em Milei. O candidato da extrema direita propõe transformar o Banco Central argentino (BCRA) em uma espécie de sucursal do Banco Central norte-americano. Uma das principais propostas do candidato é dolarizar completamente a economia argentina e “dinamitar” – palavras suas – o Banco Central. Além disso, Milei tem afirmado que, se eleito, vai acabar com todos os direitos sociais e trabalhistas da população, incluindo aposentadorias e pensões.

O fato de Milei ter obtido 30% dos votos nas prévias eleitorais, mostra o nível de desespero em que se encontra a população argentina, após tantos anos de crise econômica. Como se sabe, o fim do banco central e a completa dolarização da economia transformaria o país em uma província dos EUA, o que iria piorar a situação. A Argentina tem muitos recursos e muitas condições para prosperar. O país compõe, por exemplo, o chamado Triângulo do Lítio, juntamente com Chile e Bolívia, o que significa que está em uma região de importância estratégica para a produção industrial. Calcula-se que a região compreendida pelo Triângulo, concentra de 50% a 80% dos recursos mundiais do lítio, metal que tem uma série de aplicações industriais e é considerado essencial.

A Argentina foi há cerca de um século, um dos países mais prósperos do mundo. Em função de suas extensas e férteis planícies centrais, os chamados “pampas úmidos”, a Argentina se tornou um destacado produtor de alimentos, como soja, milho, trigo, girassol, cevada, carne e laticínios. Além do lítio, o país é rico em zinco, ferro, cobre, urânio e outros. Também contém importantes reservas de petróleo e gás natural. A Argentina possui, ademais, um setor industrial importante e diversificado, com alimentos processados, veículos, bens de consumo, têxteis, produtos químicos e aço, entre outros.

O país vive uma crise permanente nas últimas décadas, seja na batalha contra a hiperinflação (nas décadas de 1980 e 1990), seja contra a recessão ou o desemprego, ou mesmo contra os dois fenômenos simultaneamente. O ex-presidente Carlos Menem, que assumiu em 1989, praticamente arrasou o país, com uma política de linha ultra neoliberal. Menen que tinha construído sua trajetória política no partido peronista, segundo os próprios filiados do partido traiu todas os princípios do movimento peronista. Como presidente da Argentina, desenvolveu uma agenda subserviente aos EUA, alinhada ao Consenso de Washington. Algumas das principais bandeiras do peronismo (mesmo com suas divisões internas) são justamente a soberania política, independência econômica e justiça social.

Pouco depois do fim de seus mandatos, em 2001, a Argentina entrou em uma das maiores crises que já conheceu, com a explosão da dívida pública e do desemprego. Na ocasião, a população, desesperada, saiu às ruas em manifestações massivas e seguidas. Em 2002, em menos de duas semanas, cinco presidentes chegaram a tomar posse, renunciando sistematicamente em função da pressão popular. Em dezembro de 2001, estourou a crise econômica e política mais importante da história recente da Argentina, no meio de uma onda de protestos contra as restrições impostas pelo governo aos saques em bancos, medida que ficou conhecida como “corralito” (cercadinho).

A renúncia de Fernando de La Rúa, em 21 de dezembro de 2001, causou uma crise política inédita e veio com um colapso monstruoso da economia: queda de 4,4% do PIB em 2001 e de 10,9% no ano seguinte. O recuo dramático da produção de riqueza, destruiu o emprego e a renda dos trabalhadores, e da classe média. Quebrando, além disso, setores empresariais mais fragilizados. O país amargou anos de crise, o desemprego explodiu, a indústria foi quase dizimada.

O país parecia ter atingido o fundo do poço em 2003, quando se iniciou um período de recuperação econômica, caracterizado por altas taxas de crescimento. Néstor Kirchner, um presidente de formação peronista, que tinha assumido o governo em 2003, procurou reconstruir a base industrial argentina, com obras e serviços públicos, renegociando o funcionamento dos serviços públicos que tinham privatizados pelo governo anterior. Tanto Nestor, quanto Cristina Kirchner que o sucedeu, fizeram governos mais nacionalistas, focando seus esforços na recuperação da economia e na renda da sociedade.

Durante os governos dos Kirchner a economia cresceu a uma taxa anual média de 8%, em função de política econômica mais adequada, mas também pelas condições internacionais como o chamado “boom” de comodities, ou seja, a expansão da demanda por produtos básicos (agrícolas e minerais), que beneficiou diretamente os países latino-americanos, em geral. A China crescia a 10% ou 12% ao ano e demandava matérias primas no mundo todo, atuando como motor da economia mundial, puxando regiões do mundo ricas em matérias primas agrícolas e minerais.

Nestor Kirchner, aproveitando a onda favorável, manteve uma política soberana e procurou melhorar as condições dos trabalhadores, com aumentos salariais e a extensão de benefícios sociais, como o seguro-desemprego. Cristina Kirchner manteve uma política semelhante ao de seu antecessor, preservando um grau de soberania nacional e defesa dos interesses do país. Porém, mais ou menos lá por 2012, a situação foi mudando, a economia passou a alternar anos de crescimento e quedas moderadas. No período mais recente, desde 2018, o PIB argentino voltou a cair e, em seguida, foi duramente atingido pelas restrições impostas em meio à pandemia da Covid-19 em 2020.

O espectro da inflação, que tanto assombra, historicamente, este subcontinente, retornou com força no país vizinho. O índice anual de inflação atingiu 115,6% em junho último, o maior nível desde agosto de 1991 e a previsão é que o índice alcance 145% no ano. Para controlar a alta nos preços, o Banco Central da República Argentina (BCRA) aumentou em maio a taxa básica de juros, a LELIQ, de 91% para 97% ao ano. O índice está no maior patamar da série histórica, iniciada em dezembro de 2015 (mesmo com toda a crise, é uma taxa de juros negativa, ao contrário do Brasil).

A pobreza na Argentina atinge 38,7% da população, segundo Pesquisa Permanente de Domicílios divulgada pelo Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos). A extrema pobreza está em 8,9% da população. A desvalorização cambial argentina pressiona os preços em função do encarecimento de insumos, que são cotados em dólar. Esse fator pressiona, inclusive, o preço dos alimentos, os quais o governo argentino vem tentando controlar através do programa Preços Justos.

Diferentemente do Brasil, que possui robustas reservas internacionais (hoje estão em 314 bilhões de dólares), a Argentina não dispõe deste recurso. Por conta disso, o país contraiu uma dívida externa de US$ 45 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI), uma herança do governo neoliberal de Maurício Macri, considerado desastroso. Em 2018, Macri negociou com o FMI um contrato de crédito no valor de US$ 57 bilhões como parte de um plano para deter o colapso do peso argentino e acertar as contas do governo. A Argentina recebeu US$ 44 bilhões desse acordo, antes que o atual governo, de Alberto Fernández, cancelasse o programa. Como desgraça pouca é bobagem, o problema dos juros da dívida, se somou a uma das piores secas da história da Argentina, o que comprometeu drasticamente as exportações de alimentos, fundamental para o equilíbrio do balanço de pagamentos.

Segundo informações do governo a seca custou neste ano, mais de US$ 20 bilhões de exportações e acima de US$ 5 bilhões em impostos não recebidos, que incidem sobre as exportações. A crise da Argentina é grave e se insere em um contexto de crise internacional, que afeta de diferentes maneiras os demais países latino-americanos. A evolução dos acontecimentos no país vizinho requer atenção redobrada do Brasil, em função da proximidade e da interdependência das duas economias.

José Álvaro Cardoso é economista, coordenador do DIEESE/SC e colunista no Portal Desacato.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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