Por Guigo Ribeiro, para Desacato.info.
Quando se finca muito ao silêncio
O sangue do outro mata a sede
Quando se finca muito ao silêncio
Se assina a permissão
Cobre a alma num pano e se esconde. Sente que o vento acaricia o pano, dando formas em equivalência à intensidade. E, atrás deste pano, esconde que vive sua vida pleno no dentro, longe do que não é seu. Dentro do que é abrigo, proteção. Dentro do que se faz só e absolutamente seu. E se distancia, permitindo o instante em que a proximidade de um terrível barulho, intruso, ousa adentrar o cômodo e pisar no tapete calçado. Longe do outro e o que esse outro pode ser. Não lhe convém ninguém. Ninguém convém fora da cortina. A cortina é o isolamento revestido de privacidade. Meu lugar trancando. Mesmo que o fora seja acessado, deste lado se faz a barreira pela leveza do pano em contraponto ao peso posto de fora. São pequenas estruturas cotidianas criadas para que sejam delimitados lugares e, sobretudo, o que é importante. A cortina dessa casa é importante! Ela existe como os olhos. Olhos que veem, não veem e que registram informações, entretanto que negligenciam informações dado o interesse. Ouviram gritos em decorrência de mãos pesadas marcando um corpo. Ouviram o estranho estrondo. Ouviram os motivos e o peso da voz em justificativa. O outro foi apresentado. Ouviram os passos apressados em fuga e outros mais apressados ordenando o “pare”. Acolhe o bom dia simpático do dono da mão e a cara constrangida e roxa. Acolhe a passagem dos donos e donas das demais cortinas da rua. Dentre outros eventos e a fatalidade do fato e som, certeza: a cortina se fecha!
Quem sabe é uma imensidão de peixinhos coloridos sorrindo e papeando por mar adentro. Ou frutas colhidas, agora, no pé. Galáxias, estrelas, planetas. Ou, vai saber, um branco, vermelho, azul. Combinação de cores, tons. Claridade e escuridão. Rendas e modos de fechar e abrir. Quem sabe essa cortina não tenha uma estética tão bem construída de modo a distrair sua finalidade moderna.
Quando num exercício de bravura, de coragem e superação dos próprios limites, abre uma frestinha. Pra uma olhadinha rápida. Pra ver ao redor e concluir que não há o porquê da permanência da cortina aberta. Concluir que lá fora está e segue tudo certo tanto quanto aqui dentro. Ou lá dentro. Abre essa fresta que sutilmente grita a própria pré ou disposição ao acesso do exterior e o quão esta é fadada aos breves segundos. Pra entrada de relativa quantidade de sol ou circulação de ar. Só. Esse dentro consola e fixa a certeza de êxito no projeto solidão. Esse dentro é o espaço privado necessário e que afasta da histeria das ruas e suas múltiplas e sempre absurdamente possíveis possibilidades de terror. De medo. Não desliga a televisão. O outro é estranho e sempre será. A fresta mostra. Assim como a fresta é breve para fechar e me esconder do outro. Seja lá o que se passa com esse outro. Não me convém. É o outro e tanto faz já que estou aqui. Feche a cortina! Tenho meus problemas.
Quando se finca muito ao silêncio
A força cresce ainda mais
Quando se finca muito ao silêncio
Se fecha, indiferente, a cortina
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