Conexões e mortes entre dois estados com a presença do Comando Vermelho

Como a operação que matou mais de 20 pessoas na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, se conecta com a guerra entre facções no Pará

Foto: Ana Mendes

Texto: Moisés Sarraf | Fotos: Ana Mendes, Agência Pública.

Foi com borrifadas de spray de pimenta e estouro de bombas que as presas do Centro de Reeducação Feminino (CRF), em Ananindeua, região metropolitana de Belém (PA), foram despertadas na madrugada do dia 4 de setembro de 2019. “Vocês vão morrer”, diziam os agentes federais, todos homens, que iniciaram a ação por meio da qual as mulheres foram obrigadas a vestir apenas roupas íntimas ou ficarem totalmente despidas fora das celas. Durante todo o dia, elas estiveram sob “procedimento”, no decorrer de cinco horas, agachadas e amontoadas com as mãos na nuca. Os depoimentos das detentas para um relatório da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre os procedimentos de setembro daquele ano incluem denúncias de violência física e alimentação estragada; algumas delas relataram desmaios diante da situação.

Casos como esse nos corredores do sistema penitenciário paraense não foram isolados, segundo fontes consultadas pela reportagem. Esses episódios teriam dado início a uma guerra entre facções criminosas contra agentes penitenciários que teria culminado, no dia 24 de maio deste ano, na operação policial realizada bem longe do Pará, mais especificamente na Vila Cruzeiro, que faz parte do Complexo da Penha, no Rio de Janeiro.

A ação conjunta que envolveu o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar (PM) do Rio Janeiro, a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF) resultou em mais de 20 mortes, entre as quais quatro homens paraenses, segundo a PM. Esses homens foram apontados pelas polícias como membros da facção Comando Vermelho (CV).

A cidade do Rio de Janeiro se tornou um dos principais destinos para membros da facção oriundos do Pará, segundo fontes consultadas pela reportagem. “Quando os membros do CV são soltos, eles fogem pro Rio de Janeiro. Em Belém é difícil se esconder, eles preferem ir pro Rio. Lá eles assumem cargos, crescem”, diz uma advogada criminalista, que pediu para não se identificar. “Hoje o CV no Pará é muito interligado com o CV do Rio de Janeiro. O segundo estado com mais líderes do CV é o Pará. O Deó [apelido de Mauri Edson Vulcão Costa, morto na Vila Cruzeiro], por exemplo, era de Abaetetuba, uma cidade do interior, mas que foi parar no Rio.”

“É uma forma de se protegerem”, diz uma segunda fonte consultada pela reportagem, que também falou na condição de anonimato. “Eles têm como se proteger no Rio. E não são pegos, inclusive, porque eles devem ter informação privilegiada lá. De fato, os líderes se evadem antes da polícia chegar até eles”, disse, arrematando: “Eles não ficam mais aqui. Em Belém eles não têm essa segurança. No Rio, é bem difícil entrar onde eles ficam”. A fonte diz que a operação na Vila Cruzeiro “foi uma reação à morte dos agentes paraenses, a gente sabe que tinham policiais do Pará no Rio de Janeiro”. A informação, no entanto, não foi confirmada pelo governo do Pará.

Para uma das fontes ouvidas sob anonimato, “tudo isso é por causa da eleição”. Boa parte da propaganda do governador Helder Barbalho (MDB), que vai tentar a reeleição este ano, está baseada na redução da criminalidade no estado. Barbalho comemora a retração dos índices de roubo e assassinatos entre 2019 e 2021. Além disso, o então titular da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) desde 2019, Jarbas Vasconcelos, deixou o cargo para ser candidato a deputado federal. As crises de segurança que tomaram o estado durante os quatro anos da atual gestão, contudo, contrariam a propaganda estatal. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de violência letal caiu em todas as regiões, exceto na Norte, que teve crescimento de 7,9% nas mortes violentas intencionais entre 2020 e 2021. Das 30 cidades brasileiras com maior taxa de mortes violentas, dez estão na região amazônica; sete, no Pará.

No dia seguinte à operação, em 25 de maio, a PM do Rio de Janeiro compartilhou no Twitter uma postagem do presidente Jair Bolsonaro que deu “Parabéns aos guerreiros do BOPE e da @PMRJ que neutralizaram pelo menos 20 marginais ligados ao narcotráfico em confronto, após serem atacados a tiros durante operação contra líderes de facção criminosa. A ação contou com apoio da DRE (@policiafederal) e @PRFBrasil”. Perguntamos à PM do Rio de Janeiro quais vítimas eram membros de facções, mas não obtivemos resposta até a publicação.

Deó, 35 anos, elo do CV 

Desde a ação na Vila Cruzeiro, o sistema de segurança paraense vem conferindo a um dos paraenses mortos, Mauri Edson Vulcão Costa, conhecido como Deó, de 35 anos, o título de liderança do CV no Pará. A Polícia Civil imputou a ele o mando de 20 tentativas de assassinatos de agentes penais neste ano no estado.

Natural de Abaetetuba, município que fica a 125 km de Belém, Deó foi um dos 12 denunciados pelo Ministério Público do Estado do Pará como resultado da Operação Lua Nova, realizada pela Polícia Civil em agosto de 2020. Os autos da ação penal apontam que, conforme inquérito policial baseado em quebra de sigilo telefônico e dados de aparelhos celulares, ficou constatado que os acusados, incluindo Deó, “praticaram reiteradamente crime de tráfico de drogas neste município [Abaetetuba] e, ainda, se associaram de forma estável e duradoura com o fim específico de cometer o referido delito”.

O inquérito policial atribuiu a Deó o título de “grande empresário” no comércio de drogas. Pelas investigações, ele, que ora utilizava seu nome de batismo, ora se apresentava pelo nome falso de Marlon da Silva Costa, foi definido como “um dos indivíduos que orquestra toda a associação criminosa”.

Um ano antes, em denúncia oferecida pela 1ª Promotoria de Justiça Criminal de Abaetetuba, resultado da Operação Preamar, Deó aparece como “um dos principais responsáveis pelo comércio de substâncias entorpecentes não apenas em Abaetetuba – PA, como também, nas cidades circunvizinhas”. Com a análise das transcrições, diz o documento, o acusado “mostrou-se extremamente dedicado à venda e distribuição de drogas e agia, na prática do tráfico, mesmo quando preso, ocasião em que, com bastante habilidade, coordenava todo o comércio ilegal”.

A denúncia do Ministério Público ainda afirma que Deó era “constantemente mencionado em diálogos interceptados, os quais são suficientes para comprovar que a droga era de sua propriedade”. Em determinada conversa, diz o documento, ele “externa seu descontentamento com agentes públicos no combate à criminalidade, em especial no que concerne ao prejuízo causado à atuação de seus parceiros criminosos”.

Apesar das investigações e denúncias, uma advogada ouvida pela reportagem garantiu que “Deó não era um líder, ele era um soldado, que faz a segurança dos que são líderes”. As acusações, para ela, são apenas uma forma de o governo tentar dar uma resposta à sociedade por conta das mortes de agentes penais, mas “não há como dizer exatamente quem manda as execuções”.

“É bem aleatório. Eles vão pra rua, alguém em cada bairro vai lá e diz: ‘Pega tal pessoa’”, afirma ela. A advogada conheceu Deó, mas afirma não ter atuado em seus processos. A profissional defendeu detentos com os quais ele havia tido contato na prisão. “Eles sempre fazem amizades no presídio, eles têm um vínculo de sair e ajudar um ao outro. Ele me pediu para ler os processos de alguns amigos dele. Foi esse tipo de contato que tive”, diz.

Os conflitos envolvendo facções estariam relacionados também ao controle pelo tráfico de drogas na Amazônia, segundo o relatório publicado em fevereiro desde ano, “Cartografia das violências na Região Amazônica”, onde se destaca que “o rio Amazonas é um grande corredor para a fluidez da droga (em especial cocaína e skank) entre polos produtores e consumidores, sejam eles nacionais ou transnacionais”. “No Pará, as rotas constituem uma área de trânsito da droga em direção aos mercados nacionais e internacionais, visto que por meio do rio Amazonas as redes integram a cidade de Santarém, mas o destino da droga é a capital Belém”, aponta o relatório, citando ainda trajetos pelo rio Xingu, em Altamira, e rio Tocantins, nas cidades de Cametá, Abaetetuba, Barcarena, Moju e Igarapé-Miri.

Belém e Barcarena seriam entrepostos importantes de distribuição à Europa. “A intensa presença de facções do crime organizado e as disputas entre elas pelas rotas nacionais e transnacionais de drogas que cruzam a região contribuem com a elevação das taxas de homicídios/mortes violentas intencionais de seus estados, colocando-os acima da média nacional”, conclui o relatório, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com apoio do Instituto Clima e Sociedade e pesquisadores da Universidade do Estado do Pará (Uepa).

O estopim

A matança no Complexo da Penha, a segunda ação policial mais letal na história do Rio, remonta ao dia 29 de outubro de 2019, quando 57 presos foram assassinados no Centro de Recuperação Regional de Altamira (PA), na região do Xingu. Naquele dia, uma rebelião tomou conta da unidade: 16 homens foram decapitados e os demais, asfixiados. Segundo a versão da então Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará (Susipe), internos do bloco A, membros da facção Comando Classe A, invadiram o local conhecido como “anexo”, no qual estavam membros da facção rival Comando Vermelho. A chacina foi a terceira maior da história do sistema carcerário brasileiro, perdendo apenas para o massacre do Carandiru (SP) e para a rebelião do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (AM), segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O episódio foi a justificativa para que o governador Helder Barbalho solicitasse intervenção federal. A resposta do Ministério da Justiça e Segurança Pública foi o envio da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIPE), um grupamento tático criado pelo então ministro Alexandre de Moraes, em 2017, durante o governo Michel Temer. A FTIPE foi estabelecida em meio à crise no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (AM), e no presídio de Alcaçuz, no município de Nísia Floresta (RN). No dia 1º de janeiro daquele ano, na unidade de Manaus, 60 presos foram mortos; 14 dias depois, uma rebelião tomou conta da unidade de Alcaçuz, em que houve outras 26 vítimas. Ao final daquele mês, o ministro da Justiça instituiu a FTIPE, no âmbito da Força Nacional de Segurança Pública, com a função de apoiar “Governos de Estado, para situações extraordinárias de grave crise no sistema penitenciário”.

A chegada da Força-Tarefa ao Pará teria sido o estopim para uma batalha diária nas ruas da região metropolitana de Belém – de um lado, agentes da segurança pública e, do outro, membros de facções. A FTIPE passou a atuar nos presídios paraenses com o objetivo de “retomar” o cárcere. Mas, para familiares e advogados que atuam no sistema penitenciário ouvidos pela reportagem, foi a institucionalização de um conjunto de violações contra os presos.

“A FTIPE entrou e implementou a prática de tortura, prática de violência, que se demonstra com a adoção de procedimentos: uso de gás de pimenta e gás lacrimogêneo como armas de uso comum e banalizado dentro dos presídios”, afirma o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Pará, José Maria Vieira. “O que vejo na Seap [Secretaria de Estado de Administração Penitenciária] é sadismo. Hoje em dia a secretaria age de forma sádica, e isso é terrível para a sociedade.”

Daí em diante, os ataques de faccionados a agentes públicos passaram a ocorrer periodicamente. Em 2020, segundo dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Pará (Segup), seis policiais foram assassinados em serviço; fora do trabalho, morreram 24 policiais. Em 2021, mais uma vez, agentes de segurança se tornaram alvo de atentados: um policial morto em serviço, mas 15 foram assassinados à paisana.

Em julho do ano passado, houve outros oito ataques a agentes em apenas uma semana. A solução encontrada pela Seap foi negociar diretamente com lideranças de facções. A história veio a público em reportagem do Fantástico, da Rede Globo: em uma gravação, um representante da secretaria ouvia os pedidos do líder de uma das organizações. Entre as concessões, estavam a compra de colchões – já que os presos estariam dormindo no chão – e a visita de familiares. Pessoas que mediaram o encontro, porém, dizem que o acordo não foi cumprido pelo governo. Novos embates entre facções e agentes penais se tornariam uma questão de tempo, o que se confirmou em maio, quando os atentados e as mortes recomeçaram.

Atentados a agentes

A recente onda de violência no estado do Pará começou no município de Altamira, na região do Xingu, a cerca de 450 km de Belém. No dia 2 de maio deste ano, Francisco Simão Souza Lima, de 24 anos, foi assassinado nas ruas do bairro Jardim Independente por volta do meio-dia. Dois homens chegaram em uma motocicleta e fizeram os disparos. O padrão se repetiu; o número de mortos cresceu. Até o final daquela semana, mais três homens foram assassinados e, na quinta-feira seguinte, o total de vítimas já chegava a sete. No sábado, dia 14 de maio, mais uma chacina perturbou Altamira. Homens chegaram atirando em uma distribuidora de bebidas: quatro pessoas morreram, sendo três da mesma família. Todos os assassinatos têm características de execução. Foram 12 mortos em 15 dias.

No dia seguinte à chacina, o governador Helder Barbalho desembarcou na cidade “para acompanhar as ações do sistema de segurança pública em Altamira para que possamos esclarecer e prender aqueles que realizaram este lamentável evento nesta madrugada de sábado para domingo”, disse o governador em vídeo postado nas suas redes sociais. A cúpula da segurança, então, deflagrou a terceira fase da Operação Xingu, com o objetivo de coibir a violência e encontrar os responsáveis. Mas as mortes não pararam. E os responsáveis ainda não foram localizados.

Em Belém, no mesmo dia em que a Operação Xingu foi deflagrada, começou uma caçada a agentes de segurança pública. A primeira vítima foi o agente penal Breno Cabral Pinheiro, no dia 5 de maio. Os dados são incertos, nem o sindicato da categoria possui um levantamento de atentados e mortes de agentes. Mas, no decorrer do mês, foram pelo menos 17 atentados a agentes da segurança pública em Belém e região metropolitana, resultando na morte de nove servidores.

O alvo preferencial foram os policiais penais, funcionários que atuam nos presídios do Pará. No fim do mês de maio, um agente penal foi vítima de emboscada em sua casa. Ele escapou ileso, mas um amigo foi morto; o cunhado do agente foi ferido na barriga e o filho de 10 anos levou um tiro na perna. Somando os casos de municípios do interior, no mesmo período, o total de vítimas pode ser ainda maior. A reportagem solicitou ao governo do Pará dados sobre atentados e mortes em todo o estado, mas não houve resposta até a publicação.

Por dentro dos presídios

“Meu marido voltou pra cadeia, e eu não consigo ver ele. Ele está doente, com uma sequela no braço e tuberculose”, conta a esposa de um interno da Cadeia Pública Jovens e Adultos (CPJA), que fica no município de Santa Izabel, região metropolitana da capital paraense, em que se concentra a maior parte das casas penais do estado. A esposa optou por não identificar seu nome nem o do marido, que já havia cumprido pena por roubo, transitando do regime fechado ao aberto. Por ter cometido uma falta grave, ele voltou ao regime fechado há oito meses. O interno foi visitado pela advogada no dia 20 de abril. “Ela [advogada] falou que ele está escarrando sangue, que o corpo dele está horrível. Como eles se falaram no parlatório, ela não sabe dizer se era uma coceira ou reação alérgica”, conta a esposa. “Ele entrou pesando 85 quilos, mas a advogada falou que ele está magro, que perdeu de 15 a 20 quilos.”

Ele é um dos 15.188 presos no sistema penitenciário do estado, sendo 4.254 provisórios e 10.934 condenados, segundo dados da Seap. O número ultrapassa em cerca de 10% o total de 13.543 vagas distribuídas nas 54 casas penais do Pará.

Diante da pandemia de covid-19, a Comissão de Direitos Humanos da OAB no Pará passou a receber denúncias por e-mail sobre a situação dos presídios. A partir de maio de 2020, foram registradas mais de 55 mensagens sobre casas penais de todo o estado. Os relatos incluíam torturas físicas, psicológicas e uso de spray de pimenta, além de presos doentes sem atendimento médico, alimentação estragada, superlotação de celas e disparo de balas de borracha. Há relatos de torturas como a extração de unhas de detentos por meio do uso de alicates. Sessões de espancamento que terminaram com ossos quebrados e celas superlotadas.

O relato que abre esta reportagem e outras 55 denúncias são parte do relatório circunstanciado “Crise no Sistema Carcerário do Estado do Pará – 2019 a 2021”. O documento, organizado pela OAB e por outras 16 instituições que atuam no sistema penitenciário, foi encaminhado para pronunciamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA) e responsável pela promoção e proteção dos direitos humanos nas Américas.

A partir dos casos listados, o relatório pede que sejam enviadas ao Brasil, ao estado do Pará e a instituições competentes recomendações para “cessarem quaisquer procedimentos adotados por agentes da SEAP no Pará que importem em maus tratos, descumprimento da LEP [Lei de Execução Penal] e tortura aos presos” e que as denúncias sejam apuradas. Entre outras recomendações, a petição demanda que o “Estado do Pará seja compelido a tomar providências para conter a violência contra servidores/as do sistema penal”.

Desde agosto de 2019, quando a FTIPE passou a atuar no Pará, o Ministério Público Federal (MPF) também vem recebendo relatos de violações a normas nacionais e internacionais para o tratamento de presos. Naquele período, o MPF recomendou a apuração das denúncias e provimento de atendimento médico aos detentos, além de acesso ao Conselho Penitenciário do Estado do Pará (Copen) e à OAB para a fiscalização do sistema prisional. No mês seguinte, a pedido do MPF, a PF executou mandados de busca e apreensão de imagens de vídeo do Complexo Penitenciário de Americano, em Santa Izabel do Pará, e no Centro Integrado de Operações (Ciop), em Belém. Como as investigações são sigilosas, contudo, o MPF informou não poder dar mais detalhes sobre o assunto.

Prerrogativas negadas

Em outro extremo, visando conter a criminalidade fora dos presídios, a Seap isolou os presos. Entre 2019 e 2021, as audiências virtuais aumentaram de 111 a 4.770, mas o total, que inclui audiências presenciais, caiu, passando de 8.448 para 7.196. Apesar do formato on-line, que poderia facilitar o atendimento jurídico, a redução está associada ao novo modus operandi do governo paraense, avaliam advogados que atuam no estado. Em setembro de 2019, a Seap limitou o contato dos profissionais com seus clientes. Era para ser uma medida temporária, mas as restrições prosseguiram indefinidamente.

“Antes, a Seap ainda tinha consideração de expedir portaria dizendo o período em que ficaria suspenso o atendimento de advogados. Hoje, simplesmente, cancelam com a justificativa de segurança”, denuncia uma advogada criminalista, que preferiu não se identificar. “Se porventura o advogado não tiver uma audiência urgente, ele não consegue se entrevistar com seu cliente. As prerrogativas dos advogados estão sendo violadas”, diz. No dia 1º de junho, a força-tarefa do Ministério Público do Pará cumpriu mandados de prisão contra dois advogados por suposto envolvimento em um plano para assassinar o ex-titular da Seap Jarbas Vasconcelos.

Sobre a prisão dos profissionais, a OAB-PA informou, por meio de nota, que “ainda não recebeu nenhuma notificação ou apresentação de provas, tampouco indícios de autoria e de materialidade a respeito da participação dos profissionais da advocacia em atos dessa natureza”, mas ponderou: “Todos os fatos precisam ser apurados rigorosamente […]. Caso seja comprovado o envolvimento dos dois advogados, a OAB-PA adotará todos os procedimentos disciplinares cabíveis”.

Para garantir o funcionamento da nova política, o Copen, órgão consultivo e fiscalizador da execução penal no Estado do Pará, foi reformulado, conforme a Lei Estadual nº 8.937, meses depois da crise de Altamira. Diminuiu a representação da sociedade civil e o presidente do Copen passou a ser escolhido pelo governador do estado. Helder Barbalho optou pelo então secretário Jarbas Vasconcelos, cuja atribuição seria “inspecionar os estabelecimentos e serviços penais”. Nesse caso, o secretário fiscalizaria a si próprio.

Com as críticas de aparelhamento do conselho, em meio à chegada da FTIPE, as atividades do órgão deixaram de ser realizadas por mais de dois anos, entre dezembro de 2019 e janeiro de 2022.

Manifestação

No final de maio deste ano, o Sindicato dos Policiais Penais do Pará fez manifestação em frente à sede do governo, em Belém, contra as mortes dos agentes. Os atentados seriam uma tentativa de as facções “retroagirem ao cárcere antigo”, argumenta o vice-presidente do sindicato, Demetrius Lemos. “Fomos devagar reestruturando as unidades. O crime perdeu celular, droga, armamento dele, contato externo, perdeu a visita íntima. Tudo isso gera essa questão da revolta do crime contra os policiais penais”, defende o vice-presidente. Ele reconhece que “no início da intervenção houve uma ação um pouco mais enérgica”.

“Quando a cadeia foi tomada, teve que entrar com operações táticas penitenciárias fortes, com bomba, gás, trazendo pra fora na implantação do procedimento. Pra eles [presos], o procedimento é uma tortura”, alega o policial. “Eles estarem sentados na cela com a mão na cabeça, isso é um procedimento de segurança. Entra armado, faz a varredura, depois disso a gente faz a retirada para a enfermaria”, afirma Demetrius, que também é pré-candidato a deputado estadual pelo Podemos.

Nas ruas, os assassinatos; no WhatsApp, mais fogo cruzado entre agentes e facções. Pelo aplicativo, circulam toques de recolher, tanto da polícia quanto das organizações, além de listagem de mortos de ambos os lados. As mensagens distribuem vídeos de pessoas assassinadas, áudios com convocatórias e ultimatos. Em um dos áudios, um suposto policial militar ameaça presos do regime aberto, afirmando que “a gente vai começar a derrubar logo os que estão de pulseira, tá entendendo? Vai cair!”. Segundo dados da Seap, há 3.320 presos utilizando tornozeleiras eletrônicas no estado.

No final da manhã de 18 de maio, um toque de recolher circulou por mensagens. O motivo seria o assassinato de um traficante no bairro Águas Lindas, em Ananindeua. Escolas municipais decidiram liberar seus alunos.

O fim da guerra

A reportagem da Pública conversou também, por telefone, com um membro de uma facção criminosa, sob a condição de anonimato. Ele será chamado pelo pseudônimo de José. A facção da qual ele faz parte atua no interior do Pará. Há cinco anos, José cumpriu pena em diversas unidades penais na região metropolitana de Belém. Hoje ele apenas escuta os relatos de outros presos sobre o tratamento no sistema penitenciário. “O que está acontecendo é que eles [governo do Pará] acreditam que a Seap vai resolver as coisas só oprimindo quem tá preso”, diz. “Os presos vão ficando lá dentro. É que nem um animal que está preso 24 horas por dia, sendo oprimido, maltratado. Até um cachorro tem atitude de se defender de alguma forma por viver oprimido num quadrado”, diz José, que completa: “Já era pra terem enxergado que isso não tá fazendo diferença, não tão ressocializando ninguém.”

Ele revela que acordos entre as facções criminosas e o governo do Pará não são novidade. “Sempre existiu acordo pra amenizar alguma coisa na rua”, diz, referindo-se ao vazamento de áudios em que representantes da Seap negociavam com líderes de facções o fim das mortes de agentes penais em 2021. “Mas o acordo era pra amenizar, pro diretor, pro secretário amenizar a pressão, ter um ventilador, uma televisão. Hoje os presos vivem amontoados, sem energia, sem direito a visita, passam fome. Tentaram conseguir alguma coisa que é pra viver um pouco de forma humana”, denuncia. “De muitos anos que eu tive ali, sempre teve acordo com a direção da cadeia. A alta cúpula sempre soube, mas sempre tem os testas de ferro que são os intermediadores”, conta. Segundo José, o acordo de 2021, contudo, não foi cumprido. E a guerra prossegue.

Diante da crise de segurança, o governo do Pará deflagrou um conjunto de operações policiais em todo o estado, resultando em 287 prisões em flagrante, 89 cumprimentos de mandados de prisão e recapturas e 65 prisões em flagrante por tráfico, segundo balanço de 13 de junho. Também houve mortos, mas os números não foram divulgados. Em 23 de maio, dois homens morreram em uma ação da PM em Altamira. Já no dia 20 de junho, ainda em Altamira, o comerciante Welison Santos de Castro, de 36 anos, foi executado em frente à sua distribuidora de bebidas. A cada dia, circulam novos vídeos e notícias de pessoas mortas com características de execução em Altamira e outros municípios.

Solicitamos à Seap uma posição sobre as denúncias de tortura e o número de servidores públicos assassinados nos últimos anos. À Polícia Civil e à Segup, perguntamos sobre a participação de policiais paraenses na operação da Vila Cruzeiro e se o governo do estado considera que há relação entre as execuções em Altamira e os atentados a agentes penais na região metropolitana de Belém. Até o fechamento desta reportagem, porém, nenhuma das instituições respondeu.

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