Por Marina Oliveira, Assessoria de Comunicação do Cimi.
Há um pouco mais de um mês – no dia 21 de setembro –, o placar final do julgamento sobre direitos originários, no Supremo Tribunal Federal (STF), emocionou as pessoas que acompanhavam a sessão por meio de um telão instalado próximo à Praça dos Três Poderes, em Brasília. Olhos marejados, longos abraços, danças e cantos compunham o cenário daquele momento, que entrou para a história dos povos indígenas do país.
Apesar da comemoração, também escutava-se, principalmente do povo Xokleng – centro desse debate –, que a rejeição do marco temporal no STF, por 9 votos a 2, era apenas a continuidade de uma luta que já dura mais de um século.
E os indígenas estavam certos: no dia 27 de setembro, mesma data em que o STF concluía a análise do caso de repercussão geral sobre direitos constitucionais dos povos originários, o Senado Federal aprovou, às pressas, o Projeto de Lei (PL) 2903/2023 – proposição que busca restringir os direitos territoriais garantidos aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988. A aprovação do projeto na Casa também ocorreu praticamente uma semana após a Suprema Corte rejeitar a tese ruralista do marco temporal.
Na última sexta-feira – 20 de outubro –, o PL 2903/2023 passou pelo Poder Executivo: Lula vetou total ou parcialmente 24 de 33 artigos da proposição, perdendo a oportunidade de cumprir com o que prometia antes mesmo de iniciar o mandato, quando dizia ter “obrigação moral” de fazer reparação a povos indígenas.
Os vetos de Lula ainda poderão ser derrubados pelo Congresso Nacional, já que a maioria dos parlamentares vende a ideia de que “a paz no campo” só existirá com a existência de um marco temporal para a demarcação dos territórios indígenas.
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A luta continua
Como se não bastasse toda essa batalha para garantir o que já é assegurado pela própria Constituição Federal, o povo Xokleng ainda foi surpreendido com uma ação do estado de Santa Catarina logo após a derrota sofrida no STF. No dia 7 de outubro, o governo estadual decidiu fechar as duas comportas da Barragem Norte, de José Boiteux (SC), sob alegação de iminente desastre natural que poderia vir a atingir parcela da população do vale do Rio Itajaí e adjacências, colocando em risco a vida dos indígenas e de milhares de outros catarinenses que vivem à jusante da barragem. Em plena época de chuva no estado.
Sob uso de força policial, a decisão foi colocada em prática logo pela manhã do dia 8 de outubro. Nesse episódio, diversos indígenas ficaram feridos devido à ação ilegal da polícia do estado de Santa Catarina.
Apesar de uma das comportas ter sido reaberta, os indígenas seguem ilhados, sem acesso a serviços médicos e Educação. Os Xokleng relatam que a água do rio fechou estradas, inundou casas e desabrigou famílias. Além disso, algumas aldeias continuam sem acesso à internet e sem energia elétrica.
De acordo com uma liderança do povo – que não será identificada por segurança –, outra situação que está causando transtornos à comunidade é a ida, sem qualquer aviso, de representantes do governo – escoltados pela Polícia Federal – à terra indígena para fazer o controle da barragem. Ao Cimi, a liderança indígena disse que gostaria de ser informada sobre as datas e horários dessas visitas ao território, porque a falta de aviso causa apreensão às pessoas que moram no local, principalmente às crianças e anciões.
Reparação
Perante esse contexto, lideranças Xokleng resistem para fazer valer uma decisão transitada em julgado em agosto de 2017, no STF (ARE 943.208), relacionada à ACP nº 5013528-53.2018.4.04.7205, movida pelo Ministério Público Federal (MPF). A decisão judicial condena a União, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o estado de Santa Catarina por não terem cumprido acordos anteriormente firmados com o povo Xokleng, relacionados à construção da Barragem Norte. Além disso, obriga os entes públicos em questão a implementar políticas públicas na TI Ibirama La-Klãnõ.
Tal decisão judicial, até então, não foi cumprida – inclusive, há multa diária, para cada réu, por descumprimento após três anos da decisão. Entre as determinações da Justiça, estão a construção de casas, escolas, pontes, estradas, entre outros.
Posteriormente, o MPF, titular do processo, ingressou com uma ação executória – vinculada à decisão do STF mencionada acima – para que o estado de Santa Catarina, Funai e União cumpram com tais medidas. O processo está, atualmente, em tramitação na Justiça Federal de Blumenau – responsável pelo município de José Boiteux, onde está localizada a Barragem Norte.
Em Brasília, os indígenas pedem o cumprimento dessas medidas, o pagamento da multa – a fim de diminuir o impacto da crise humanitária enfrentada, atualmente, pelos Xokleng – e recursos para mitigar os impactos do fechamento da barragem, até que seja concluída a regularização fundiária da Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnõ.
A barragem
A Barragem Norte foi construída durante o governo militar, na década de 1970, sobre a TI Ibirama La-Klãnõ com o objetivo de conter as enchentes do Rio Itajaí. Mas, apesar de já funcionar há mais de 30 anos – a inauguração ocorreu em 1992 –, ela nunca foi concluída. O Canal Extravasor da barragem, responsável por garantir a segurança das operações, até então não foi construído.
Em entrevista recente ao NSCTotal, o Secretário de estado da Defesa Civil, coronel Armando, disse que desconhece as condições da tubulação e que “seria perigoso fechar as comportas sem a garantia de conseguir abri-las novamente”. Ainda de acordo com o responsável pela pasta, a água poderia verter e a situação sair do controle.
“Seria perigoso fechar as comportas sem a garantia de conseguir abri-las novamente”
Uma matéria publicada pelo Cimi, em 2020, apresenta os impactos da construção da Barragem Norte na vida do povo Xokleng, que perduram até os dias atuais: “reduziu drasticamente as áreas planas e boas para a agricultura, também de moradia, degradando o rio, produzindo cheias no inverno, que inundam uma outra parte importante do território, e impondo estiagem nas outras estações, matando os peixes; a barragem e sua zona de impacto estão dentro dos parcos 14 mil hectares remanescentes de todo o esbulho promovido no decorrer do século XX no território tradicional Xokleng; por fim, os indígenas partiram de uma aldeia formando outras oito, enfraquecendo a agência do povo e sua organização social, sendo levados ao deslocamento interno forçado – e até os dias atuais essa perambulação ainda não acabou”.
ACO 1100
As lideranças Xokleng aguardam, ainda, a conclusão do julgamento da Ação Cível Originária (ACO) 1100, que está paralisado desde junho deste ano, no STF. A interrupção do julgamento adia a conclusão do caso que envolve a disputa possessória da TI Ibirama-Laklãnõ.
O povo Xokleng espera, ansiosamente, há mais de uma década pela decisão dos ministros da Suprema Corte sobre a constitucionalidade da portaria que declara terra indígena o território por eles tradicionalmente ocupado, uma área de 37.108 hectares. A portaria foi emitida em 2003 pelo Ministério da Justiça (MJ).
Não há qualquer impedimento jurídico em relação à conclusão final da regularização do território Xokleng – já existindo, inclusive, Portaria Declaratória. Por isso, os indígenas, mais do que nunca, lutam pela homologação, demarcação e devolução de suas terras para a ocupação das áreas e construção de casas para as famílias desabrigadas e em áreas de risco.
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