Por Fernanda Canofre.
Uma tarde, Tati chegou da escola, correu para a casa da vizinha e pediu o telefone emprestado para ligar para a vó. “Pelo amor de Deus, vem me buscar?”, disse para Dona Vera. Ela tinha 9 anos, não lembra qual era a época do ano, mas devia fazer frio em Porto Alegre, porque usava uma touca de lã, que ajudava a esconder a cabeça sendo comida por piolhos há dias. Um dia antes, com dores, ela mostrou pra mãe que os bichos haviam feito “um buraco” em seu couro cabeludo. Como resposta, levou uma surra e foi posta de castigo. Em cima da ferida aberta, a mãe jogou azul de metileno. No outro dia, ela teve que ir pra escola, normalmente, apesar da dor.
Dona Vera estava acostumada com as brigas na casa da filha. Mariza, ela conta, quando não usava drogas, “era boa para os filhos”. Mas, a maioria dos dias não eram assim. Ela e o marido fumavam pedra ou cheiravam pó, ele batia nela, ela descontava na filha. A segunda mais velha entre sete crianças, como “mulher”, Tati foi encarregada desde cedo de cuidar dos menores, quando os pais “não estavam bem”. Se deixava um dos irmãos cair do colo ou qualquer outro problema acontecer, apanhava. Assim que encontrou a menina ardendo em febre, com ínguas pelo pescoço devido às feridas na cabeça, dona Vera brigou com a filha e disse que Tatiane já não voltaria para casa. E, de fato, não voltou.
“Dos meus 9 aos meus 18 anos, fui muito feliz morando com os meus avós”, diz ela, sentada em uma sala do Presídio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre, onde está presa desde 2013. Em 27 de setembro de 2017, no mesmo dia em que Tati completou 29 anos, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, analisando recurso, aumentou sua pena para 24 anos, 9 meses e 10 dias de reclusão. Ela foi condenada por omissão e como cúmplice na morte do próprio filho, violentado pelo pai, em casa, enquanto ela trabalhava. Diogo, de um ano e dois meses, morreu no hospital devido aos ferimentos, poucas horas depois de Tati levá-lo para ser socorrido.
“Eu me lembro que quando eu levei o Dioguinho no hospital, ele estava na CTI. O médico me autorizou a entrar, ficar com ele um pouquinho. Eu pedi perdão pra ele por eu ter voltado para o pai dele. Eu falei que eu não sabia de nada, que ele me perdoasse. Ele só mexeu o dedo. O médico não me deu esperança. E eu estava sozinha”, conta com a fala entrecortada.
A morte do filho, o mais novo de quatro, foi o ápice de sete anos de violência física, psicológica, moral e sexual que ela viveu nas mãos do pai da criança. Uma história de crises de ciúme, uso de drogas por parte dele, episódios de cárcere privado, fugas, quatro medidas protetivas garantidas pelo Estado, e que terminou com Tatiane engrossando as estatísticas da população prisional feminina.
Como 67% das 44.721 mulheres presas no Brasil, Tati é negra. Quando foi presa, aos 25 anos, estava dentro da faixa etária de 18 a 29 anos, como 50% da população carcerária feminina. A mesma proporção de presas que, assim como ela, não têm o ensino fundamental completo. De acordo com o Infopen, Tati está entre as 7% que respondem por homicídio e entre as 3% cumprindo penas entre 20 e 30 anos.
Poderia ser uma a mais no sistema. O caso dela, porém, saiu das estatísticas e começou a ganhar atenção no final do ano passado. Depois da confirmação da condenação, um grupo de mulheres, composto por advogadas, estudantes de Direito e apoiadoras em geral, lançou a campanha “Liberdade Para Tatiane”. Para elas, a prisão e condenação de Tati ilustram um sistema racista e machista, com tendência de não ser tão cego quando a ré é uma mulher como ela.
Elas acreditam que Tati foi condenada pelo júri – composto apenas por mulheres – porque, como mãe, não poderia ter deixado o filho sozinho com o homem que o matou. Ainda que ele fosse o pai da criança e que ela estivesse presa em um ciclo de violência doméstica.
A relação de Tati e A. se tornou violenta quando ele ficou desempregado. Dez anos mais velho que ela, os dois se conheciam da vida inteira. A família dele morava perto da casa da vó de Tati, na rua onde ela cresceu. Aos 16 anos, ela se tornou mãe. Teve uma menina, com o primeiro namorado. Quando o relacionamento não deu certo, acabou se envolvendo com A. Quando Tati fez 19, os dois já estavam juntos e ela descobriu a segunda gravidez. Resolveu que era hora de sair da casa de Dona Vera e morar com o pai da criança para dar uma família ao filho.
Tati conta que as brigas e crises de ciúmes começaram quando ela foi trabalhar em uma padaria, onde também atendia ao público. Ainda que o salário dela fosse o único em casa, A. não gostou. Ele adquiriu o hábito de trancar a porta de casa quando não queria que ela saísse. Enquanto as discussões e agressões físicas aumentavam, Tati engravidou pela terceira vez. A rotina foi interrompida por alguns meses, quando A. foi preso por tráfico de drogas. Da prisão, voltou mais viciado e ainda mais violento e paranoico, segundo Tati.
“Aí a Tatiane se estragou. Ela passava aqui com cabelinho amarradinho, bem feia. Perdeu tudo, tudo por causa dele. Eu não conhecia nenhum dos filhos dela, porque ele não deixava ela se aproximar para mostrar as crianças. Fui conhecer depois que eles estavam grandinhos e ele começou a judiar dela. Deixava ela amarrada, deixava ela sem comida, saía com a chave. E ela lá presa, dentro de casa, com as duas crianças. Os vizinhos todos falavam: olha a gritaçada de noite! Era ele dando nela”, lembra Dona Vera.
Na véspera do Natal de 2011, Tati fugiu de casa pela primeira vez. Depois de apanhar mais uma vez de A., ela esperou ele dormir, pegou os dois filhos pequenos – a filha mais velha seguiu morando com Dona Vera – e foi se esconder na casa de uma tia distante, que ele não conhecia, no bairro Rubem Berta. O sossego durou dois dias. A mãe de Tati, segundo ela comprada por uma pedra de crack, levou A. até a filha. Quando ele mostrou que estava armado, Tati voltou para casa.
Três semanas depois, ela fugiu de novo. Dessa vez, para uma Casa Viva Maria, para onde são encaminhadas mulheres com medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Foi lá, em janeiro de 2012, que ela descobriu que estava grávida pela quarta vez. Um susto. Com três filhos e um Bolsa Família que não seria suficiente, decidiu voltar para a casa de A.
Muitas mulheres que desistem das medidas protetivas se dizem esperançosas, confiantes em que, daquela vez, vai ser diferente. Tati não fala sobre o ex e se nega a contar o que sentia por ele. O fato é que a gravidez deixou a relação ainda pior.
A. não acreditava que fosse o pai da criança e descontava isso na mulher. Em abril, Tati conseguiu mais uma medida protetiva contra o companheiro e saiu outra vez de casa. Quinze dias depois, em uma audiência com o juiz, ele mostrou papéis garantindo que estava se tratando e que pararia de usar drogas. Ela decidiu dar outra chance. Logo descobriu que o laudo havia sido falsificado. No último dia de junho, numa noite de chuva, ela entrou em trabalho de parto e foi para o hospital ter o filho sozinha. A. ficou em casa, dizendo que ela estava mentindo sobre as dores. Ele nem chegou a registrar a criança.
Depois do nascimento de Diogo – nome escolhido por A. para a criança -, Tati teve depressão pós-parto. A ideia de se matar e terminar com tudo vinha a toda hora. “Tinha noites que eu não dormia, que eu ia amanhecida para o trabalho. Acho que era Deus naquela hora. Porque eu não tinha força. Eu tentava dar o máximo, mas não conseguia. Minhas colegas perguntavam o que era e eu dizia: não, nada”. Por que ela não contava o que estava acontecendo? “Medo e vergonha. O medo era de chamarem a polícia e eu acabar perdendo os meus filhos”.
Os atendimentos de Tati e dos filhos geraram uma trilha de relatórios e laudos da assistência social no sistema, que mais tarde serviram para condená-la. Apesar de reconhecerem que ela não tinha vícios e se mostrava “atenciosa” e “cuidadosa” com os filhos, um deles, usado na sentença, traz um trecho que diz que Tati aceitava tudo de A. “alegando compatibilidade sexual”. “O histórico dela no serviço conta com quatro acolhimentos. Todos os desligamentos foram feitos com Tatiane organizada junto com o filhos, mas, cedo ou tarde, retornava para o marido e para uma relação onde os papeis já estão definidos de antemão”.
Outro laudo a define com “comportamento masoquista”. “A ideia de que, ainda que vivendo sob violência com A., esta violência não atingiria os filhos, possivelmente se trata de um mecanismo defensivo – desmentida – em relação ao não reconhecimento da realidade da violência e de risco, mecanismo que a mantinha neste relacionamento”. Um terceiro, que destituiu seu direito de mãe das outras duas crianças, depois da morte de Diogo, diz que Tati apresenta “predominância de características narcisistas”, por falar sobre como ela está sofrendo por estar afastada das crianças.
Em uma pesquisa realizada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2014, 63% dos entrevistados disseram concordar que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre membros da família” e 89% que “roupa suja se lava em casa”. Outra pesquisa, do FPA/Sesc de 2010, estima que a cada dois minutos cinco mulheres sejam espancadas no Brasil. 80% delas por maridos, namorados ou ex-companheiros. O Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento apontam em outro estudo que violência doméstica é motivo de uma em cada cinco faltas ao trabalho no mundo. Os dados são citados em um dossiê organizado pela Agência Patrícia Galvão.
O mesmo dossiê fala do porquê é tão difícil para muitas mulheres deixarem uma relação violenta. “A própria dinâmica da violência doméstica, que costuma se repetir e se tornar cada vez mais grave e frequente, pode minar a capacidade de reação da mulher”, diz o texto. Entre outros fatores apontados estão: “colocar os filhos em primeiro lugar”, “ameaças de morte”, “ela acreditar que ele vai melhorar” ou “quando a mulher procura ajuda, ela é desencorajada”.
Para a promotora que construiu a acusação contra Tatiane, Sônia Mensch, “ela nunca foi vítima de violência”, “ela procurou essa violência e não se importou que ela chegasse até as crianças”. Sônia, agora procuradora do Estado, recebeu o Sul21 no final de 2017, em seu novo gabinete.
“Em tese, ela teria sido vítima dele. Só que ela era uma vítima que ia atrás do seu agressor, do seu algoz, então, formalmente, pelos laudos de lesões que ela submetia, ela tinha lesões, ela era vítima. Mas, o que eu quero dizer, é que ela não pode ser considerada uma vítima igual às outras, uma vítima da situação. Ela era muito mais bandida, muito mais criminosa, me parece aqui, do que mesmo vítima. Uma mulher, antes de pensar em si, de querer voltar para um cara que agride, que não agride só ela, mas as crianças também, ela tem que pensar no bem estar dos filhos. Então, eu não conseguia nunca ver a Tatiane como uma vítima. Eu via como uma mulher que, de livre e espontânea vontade, ia atrás dele, trazia ele pra casa, sabia que ele agredia as crianças e não fazia absolutamente nada. Em alguns momentos, chego a pensar que a conduta dela era pior que a dele. Porque ele tinha, de certa forma, um motivo para agredir o Diogo, a vítima, que era a suspeita que ele tinha de que não fosse filho dele [um exame de DNA, anexado ao processo, comprovou a paternidade]. Era uma coisa meio doente, mas pra cabeça dele, era um motivo’’, afirma.
Leva um tempo para que Tatiane consiga falar do que lembra do domingo, 29 de setembro de 2013. E quando começa, ela para diversas vezes antes de prosseguir. A sentença relata que, na sexta, 27, por estar doente, Diogo não foi à creche como de costume e ficou com A. em casa. No dia 23, Tati havia levado o filho ao posto de saúde, porque ele apresentava hematomas e náusea. Foi constatada uma infecção intestinal, mas a creche não queria receber a criança assim. Tati diz que cogitou ficar em casa, mas não poderia abrir mão do dinheiro descontado do salário. Geralmente, quando não tinha com quem deixar os filhos, ela pagava a vizinha para cuidar deles.
Na padaria, ela ganhava pouco mais de R$ 1 mil por mês. Quando trabalhava aos sábados e terças, recebia R$ 60 a mais por dia. O mesmo valor que pagava à vizinha. No final de semana em que Diogo foi assassinado, Tati não chamou a vizinha porque já estava devendo para ela e porque A. disse que poderia cuidar das crianças. Naquele mesmo ano, depois de mais uma audiência, ele disse diante da juíza que queria se aproximar do filho mais novo.
Quando saiu na manhã de domingo, às 6h, para trabalhar, Tati lembra de ter visto os três filhos bem. Quando voltou, às 16h30, encontrou os dois mais velhos assistindo desenho na TV da sala e Diogo na cama, onde parecia estar dormindo. Só mais tarde, quando tentou acordá-lo para dar comida, ela diz ter percebido que algo estava errado. Entre o momento em que pegou o filho nos braços, passando mal, até a hora que recebeu a notícia de sua morte, ela diz ter apenas “flashes” de memória. Lembra de sair pedindo ajuda de vizinhos, que alguém avisasse a avó, de chegar ao hospital. “É como se eu tivesse tido um apagão”, diz.
Segundo a sentença, que a condena por “tortura-meio cruel”, com “recurso que dificultou a defesa do ofendido”, “vítima menor de catorze anos”, crime “contra descendente”, nos períodos entre “as 07h e as 15h do dia 27, entre as 07h e as 15h do dia 28 e entre as 07h e as 15h do dia 29 de setembro de 2013”, ela e A. “agindo mediante acerto de vontades e em somatório de esforços, a socos, tapas, pontapés, empurrões, arremesso da vítima ao solo, praticando o empalamento da vítima – situação na qual introduziram-lhe objeto contundente no ânus -, e, ainda, privando-a da alimentação necessária e de mínimos cuidados com a saúde, mataram o menino DIOGO DA SILVA SANTOS, de apenas um ano de idade”.
A sentença, que condenou A. a 42 anos e dois meses de reclusão, diz que a motivação dele para cometer o crime foi “torpe”, “porque o denunciado desconfiava que a vítima não era seu filho, e porque se comprazia em vê-la sofrer”. O texto, que ainda trata Diogo como “enteado” de A., também salienta que ele “praticou o crime com prevalecimento das relações domésticas, (…) tendo se valido das oportunidades em que permanecia só, em casa, com a criança, a pretexto de cuidá-la, para submetê-la a toda sorte de violência”.
O juiz diz que Tatiane, “na condição de mãe da vítima”, “tinha por lei a obrigação de exercer cuidado, proteção e vigilância sobre ela” e também foi autora do crime ao deixar de levar a criança ao médico, de dar alimentação adequada e “ao permitir que o companheiro, indivíduo sabidamente violento e usuário de entorpecentes, ficasse à sós na companhia” do filho, sabendo que, “nutria por ele sentimentos de aversão e ódio”.
O médico que atendeu a criança diagnosticou Tati em estado de choque. Os vizinhos que prestaram depoimento notaram que não a viram chorar. Nenhum deles a conhecia. Na época em que aconteceu o fato, a família morava em uma casa alugada, no bairro Rubem Berta, para onde tinha se mudado há pouco, devido a problemas de A. com o tráfico de drogas.
Era perto de 1h da manhã da segunda-feira quando Dona Vera recebeu outra ligação que mudou tudo. Dessa vez, não era Tati falando, mas uma moça dizendo que Diogo estava entre a vida e a morte, no Hospital Conceição. As informações, ela diz, eram confusas. Chamou a filha Mariza, que havia se mudado para os fundos da sua casa, e tomaram um táxi. O filho mais novo de Tati havia virado o xodó da mãe com quem ela sempre teve problemas de relacionamento.
“Chegamos lá, ela veio com um pano [nas mãos]. ‘Perdoa, vó, me perdoa’. Eu disse: que foi, Tatiane? ‘Acho que ele abusou do Diogo’”, lembra Dona Vera. A criança estava dentro de uma sala, a poucos metros de distância, sendo atendida, com “os bracinhos pretos”, pela hemorragia interna. Mariza gritava ameaçando Tati. Dona Vera, porém, diz que a neta vivia sobrecarregada. Tinha de trazer comida para as crianças, limpar a casa, deixar tudo sempre arrumado, fazer horas-extras na padaria, onde era conhecida por ser “trabalhadeira”. Além da carga emocional. Era fácil perder os sinais do que poderia estar errado dentro de casa, segundo ela.
Cerca de um mês depois do crime, a Polícia Civil prendeu A., que estava foragido desde que Tati saiu para a rua com o filho nos braços. A inspetora ligou pessoalmente para Dona Vera para avisar que a neta, que estava vivendo num abrigo, também seria presa. Desde o primeiro interrogatório, ela havia avisado para a avó que queria prender Tati.
“Eu não sabia o que fazer. Meu Deus, a Tatiane presa. Aqui até hoje nós não acreditamos que a Tati está numa cadeia. O que a Tatiane era… Ela apanhava com as crianças no braço. Ela pegava pra se defender. ‘Agora ele não dá em mim, porque estou com as crianças’. Mas ele dava igual. Batia nela por cima das crianças”, conta Dona Vera.
Na madrugada e que Diogo morreu, Tati entrou em surto psicológico. Ela conta que passou dias vagando nas ruas até procurar uma vaga no Abrigo Bom Jesus. Um mês e treze dias depois da morte do filho, foi presa. Chegou a ser atendida no Instituto Psiquiátrico Forense, mas o médico não quis interná-la. Ela conta que ainda toma medicação controlada.
“Minha vontade era virar moradora de rua e ficar na rua. Entrar nas drogas, para ver se passava aquele… Uma moça me ofereceu crack, no albergue, mas eu não usei”, diz Tati. Hoje, repensando o que poderia ter sido diferente, ela fala: “Se eu tivesse atendimento psicológico, não teria voltado [para ele]. Era uma paixão cega. Não era doentia. Só cega”. Pergunto quando ela percebeu isso. “Quando nós voltamos pela última vez. Eu voltei por pena, para poder ajudar e tirar ele das drogas. Mas, ajudei, ajudei, ajudei pra ele tirar a vida do meu filho?”.
O aumento da pena de Tati – que inicialmente era de 22 anos e alguns meses – pegou a defensora pública Tatiana Boeira de surpresa. Com 15 anos de experiência no Tribunal do Júri, ela diz que tinha esperanças de reverter e anular o julgamento. Ela questiona, por exemplo, o fato da acusação contra Tati ser toda baseada em uma imputação objetiva.
“Como se ela tivesse como saber que, naquele dia, aquilo iria acontecer. Num contexto em que, pelo que se depreende das provas do processo, até por uma questão de dogmática jurídica é impossível isso. Não se admite imputação objetiva em Direito Penal. Ela teve imputação objetiva, foi processada dessa forma e foi condenada dessa forma”, explica ela.
O julgamento foi tenso. Houve discussão entre a Promotoria e um coletivo de mulheres, estudantes de Direito, que queriam entrar na sessão com uma camiseta em apoio a Tatiane. O juiz teria pedido reiteradas vezes que houvesse silêncio, mesmo quando, segundo as estudantes, não havia barulho. Tati quase não falou, A. pediu para não participar. No fim, segundo a defensora, a tática de ter um júri composto só de mulheres, que ela esperava que fossem ter empatia por Tatiane, virou contra a própria ré.
Outro fato que a defensora pontua como “estranho” é que Tati perdeu o poder pátrio dos outros dois filhos, antes mesmo de ser declarada culpada ou inocente pelo juiz. Ela não vê os filhos, nem por fotos, desde 2013. Dona Vera, que havia ficado com as crianças inicialmente, também teve de abrir mão pela falta de recursos para mantê-las.
Com a publicação da decisão que rejeitou recursos da defesa e aumentou a pena, a nova estratégia da Defensoria é reverter o destino de Tati junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). O julgamento de A., contestado pela acusação de “estupro”, acabou sendo anulado. Isso poderia ajudar a abrir uma porta para que Tati também consiga um novo júri, segundo a advogada.
“A história de vida dela é muito triste, é uma história trágica de vida e esse processo foi a cereja do bolo, em efetivamente traçar um destino para essa moça”, diz a defensora. “O sistema de justiça tem como objetivo manter o status quo. Isso a gente estuda desde os tempos da faculdade. (…) Sei lá quantos anos vai demorar, quantos séculos, o que vai precisar acontecer para que o sistema de justiça se adeque à realidade social”.
Enquanto isso, Tatiane espera. Em quatro anos, ela criou uma rotina dentro do presídio e diz que, apesar de não desejar o que passou para ninguém, “amadureceu” lá dentro. Concluiu o ensino fundamental e ensino médio e planeja fazer um curso técnico de padaria. O sonho dela, para o dia que sair da prisão, além de recuperar a guarda dos filhos, é poder sustentá-los mais uma vez trabalhando como padeira.
O tempo livre ela usa para ganhar dinheiro fazendo as unhas de outras presas (que depois serve para comprar doces para dar à filha mais velha em dia de visita) e fazer estudo bíblico à distância, seguindo a religião da vó, Testemunha de Jeová. Encarregada da limpeza do pátio todas as tardes, ela espera ser colocada na cozinha este ano.
Quando chegou ao Madre Pelletier, Tati foi colocada em uma ala separada, onde ficam as mulheres que cometeram crimes que podem provocar sensibilidade às demais. O assassinato de uma criança é um deles. Com o tempo, porém, as próprias presas teriam se convencido de que ela não teve culpa e diziam que poderia ser transferida para outra ala. Ela não quis. Na B4, tem uma janela que dá para a rua e é onde escuta e vê Dona Vera e outras visitas.
A vó diz que visita quando pode. Da casa dela até o presídio são pouco mais de 2km. Às vezes, porém, ela fica até duas semanas sem ir, porque precisa dividir o tempo e o dinheiro para comida com o irmão de Tati, que está no Presídio Central. Ela diz que quando leva comida de casa para os netos, é como se eles pudessem matar a saudade. “Aquela comida lá de dentro não tem nem sal. Comida branca, sem tempero. Eu levo um monte de galinha fritinha, salsichão, tudo bem frito, bem temperado. Coitada, acostumada a comer à vontade, chega lá e tem que estar comendo aquelas migalhas”.
Com menos de um ano na prisão, Tati também teve de superar a morte da mãe. Antes que Mazisa morresse, devido a complicações por ser soropositiva, ela escreveu uma carta em que a perdoava por tudo o que foi a vida das duas como mãe e filha. A mãe nunca visitou Tati na prisão, mas mandava recados por Dona Vera. Hoje, as cartas que Tati escreve são para a filha mais velha, que está com 13 anos, e segue sendo criada pela bisavó. São as visitas da menina que a motivam a continuar, segundo ela, e que a ajudaram a deixar de ter pesadelos com perseguições de A., para sonhar com os três filhos brincando, às vezes em uma praça, outras num sítio.
As lembranças deles e do filho que morreu estão marcadas na pele. Em cada um dos dedos das mãos, tem a inicial de um filho tatuada, nos punhos, os apelidos. No braço: Jorge e Vera, nomes dos avós que a criaram, e Mariza, a mãe. O “P” de Paulo, mais acima, é uma referência ao pai. Nas costas, Tati gravou “Fé em Deus” e uma estrela, com as letras T e D, as iniciais dela e de Diogo.
Quando houve sobre a mobilização que pede por sua liberdade, Tati se diz surpresa. A campanha ajuda a alimentar seus planos para o futuro. Depois de traçar todos eles, como se estivessem logo ali, bastando abrir a porta de um dos presídios femininos mais antigos do país, ela sorri. Faz poucos minutos que ficou sabendo que sua sentença foi aumentada. “Dois anos para mim não é nada, para quem já está há quatro anos”, diz ela. Na esperança que, da próxima vez que pegarem seu processo, seja diferente.
O caso também virou tema de vários artigos. A colunista do Sul21, Marcelli Cipriani, publicou: “O caso de Tatiane: a mulher cujo marido matou seu filho e está presa por isso”.A ativista Winnie Bueno escreveu: “Você, que de alguma forma crê em direitos humanos, precisa conhecer Tatiane”. Três ativistas da campanha assinam outro texto que afirma, logo no título: “A barbárie veste toga”. Todos questionando o Judiciário sobre o peso do ciclo de violência doméstica para uma vítima.