Por Thales Schmidt
Estados Unidos, União Europeia e China desejam algo que Taiwan tem: domínio sobre o estado da arte na fabricação de semicondutores. A capacidade de construir os mais avançados chips que podem ser usados para o celular do seu bolso e também para guiar drones letais é um dos ativos mais estratégicos da atualidade.
O fato é que os taiwaneses estão à frente quando falamos desse tipo de tecnologia, com a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC). A companhia foi responsável por 54% do mercado de semicondutores em 2020, enquanto a sul-coreana Samsung ficou em segundo lugar, com menos da metade do que abarca a TSMC, com 17%.
Além de ter a maior parcela do mercado, a empresa de Taiwan domina as tecnologias mais avançadas do setor e consegue fabricar chips de 5 nanômetros — feito que a estadunidense Intel ainda não consegue replicar. Diante da supremacia da TSMC, a Apple abandonou uma parceria de mais de uma década com a Intel e contratou a companhia taiwanesa para fabricar os processadores de seus mais novos MacBooks e iPhones.
Após a Rússia invadir a Ucrânia, a empresa de Taiwan anunciou que seguiria as sanções aplicadas pelo ocidente e deixaria de exportar seus produtos para os russos. A decisão pode ter impactos sérios para a indústria de alta tecnologia de Moscou. A principal empresa russa do setor do país é a Mikron e os chips mais avançados que ela consegue construir são de 65 nanômetros, um padrão alcançado pela indústria em 2006.
A TSMC, localizada em uma ilha que o governo da China classifica como rebelde e cliente militar bilionária dos Estados Unidos, pode, portanto, ajudar a explicar a atual disputa global por hegemonia.
EUA e União Europeia correm atrás
Para não ficar atrás na corrida tecnológica, Estados Unidos e União Europeia coordenam planos que preveem mais de US$ 100 bilhões (R$ 470 bilhões) em investimentos privados e públicos no setor de semicondutores nos próximos anos.
Com o apoio do presidente Joe Biden, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei que prevê US$ 52 bilhões (R$ 244 bilhões) em investimentos e financiamentos para o setor de semicondutores no país. O texto da lei estabelece que seu objetivo é fazer uma “competição estratégica” com a China “nas esferas política, diplomática, econômica, de desenvolvimento, militar, informacional e tecnológica”.
Em 1990, os EUA fabricavam 37% do mercado global de semicondutores. Hoje, os estadunidenses respondem por 12% do mercado, afirma pesquisa da Associação da Indústria de Semicondutores.
Em outro front, do outro lado do Atlântico, a Comissão Europeia ressalta que a escassez de semicondutores criada pela pandemia levou à interrupção de fábricas e defende a mobilização de 43 bilhões de euros (R$ 220 bilhões) em investimentos privados e públicos no setor.
“Sem chips não há transição digital, nem transição verde, nem liderança tecnológica. Garantir o fornecimento dos chips mais avançados tornou-se uma prioridade econômica e geopolítica. Nossos objetivos são altos: dobrar nossa participação no mercado global em 2030 para 20% e produzir os semicondutores mais sofisticados e com eficiência energética da Europa”, afirmou Thierry Breton, Comissário para o Mercado Interno do bloco europeu.
Embora o plano da União Europeia ainda precise ser aprovado pelo Parlamento Europeu, a Intel já anunciou uma fábrica de semicondutores de 17 bilhões de euros (R$ 87 bilhões) na Alemanha e citou a possível legislação como motivação.
No Brasil, onde a falta de semicondutores também já levou ao fechamento de fábricas, o governo de Jair Bolsonaro (PL) tenta extinguir o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (CEITEC), estatal dedicada ao setor e única fábrica de chips da América Latina. O Tribunal de Contas da União (TCU) vetou a decisão por considerar a estatal estratégica, mas o Governo Federal tenta reverter a decisão.
Os planos chineses
Os dirigentes do Partido Comunista da China reconhecem a importância dos semicondutores. No último Plano Quinquenal, o documento que estabelece as diretrizes do estado chinês, determinou-se que “chips de última geração” são uma das “principais tecnologias” para que o país consiga construir uma “China digital”.
“A China gasta mais importando semicondutores do que na compra de petróleo. Então tem uma dependência muito grande de empresas de tecnologia norte-americanas, de empresas de fora de seu território nacional, como é o caso da TSMC. É indubitável que a despeito de todo o esforço tecnológico em torno dos semicondutores, ainda é um segmento no qual os chineses enfrentam desafios tecnológicos bastante significativos. Ao mesmo tempo, há a questão estratégica de Taiwan”, afirma Isabela Nogueira, professora do Instituto de Economia da UFRJ e coordenadora do LabChina (Laboratório de Estudos em Economia Política da China).
Após a vitória dos comunistas na Revolução Chinesa de 1949, o governo de Chiang Kai-shek refugiou-se na ilha de Taiwan e fundou um governo pró-Estados Unidos. A unidade territorial chinesa é um assunto controverso e tanto Pequim como Taipei, a capital taiwanesa, afirma representar a verdadeira China.
Os militares chineses fazem frequentes incursões ao espaço aéreo de Taiwan com aviões militares e o presidente da China, Xi Jinping, já afirmou que apoiar a independência da província que considera rebelde é “brincar com o fogo”.
Os Estados Unidos costumam navegar no mar do sul da China, nas proximidades de Taiwan, com porta-aviões e outros navios de guerra. Além disso, Washington também costuma vender caças, mísseis e armas para Taiwan, em transações que se constituem como um desafio aos olhos de Pequim.
Com a centralidade da indústria de semicondutores na economia global, e da TSMC nessa produção, a questão de Taiwan ganha contornos ainda mais severos, diz Nogueira ao Brasil de Fato. De acordo com pesquisa da Boston Consulting Group, 92% da produção de semicondutores de 10 nanômetros ou menos está localizada em Taiwan.
“No caso específico da produção de semicondutores, há uma sobreposição de duas dimensões estratégicas, ou de duas vulnerabilidades muito importantes para a China: de um lado do ponto de vista dos semicondutores existe uma vulnerabilidade para sua indústria tecnológica. De outro, do ponto de vista de sua soberania territorial. A TSMC representa um pouco esse ponto de encontro dessas duas grandes vulnerabilidades chinesas”, afirma a coordenadora do LabChina.
A empresa chinesa de semicondutores, a SMIC, consegue produzir chips mais avançados do que os russos da Mikron, mas também não domina a tecnologia necessária para chips de 10 nanômetros ou menos. Com isso, Pequim não tem a liderança tecnológica que desfruta em outros setores da Quarta Revolução Industrial, como transição energética e internet 5G.
Apesar da TSMC ter duas fábricas na China, a companhia taiwanesa segue mais próxima às diretrizes da Casa Branca. Antes de sancionar mais recentemente a Rússia, a companhia também deixou de vender chips para a Huawei, a principal empresa chinesa de smarthphones e telecomunicações.
“As influências que as empresas taiwanesas recebem vêm diretamente de Washington. Então é absolutamente coerente que a TSMC coloque sanções contra a Rússia nesse momento”, diz Nogueira.
Apesar de a China ser um vizinho poderoso e responsável por parte da vitalidade econômica da ilha, Taiwan escolhe se equilibrar entre os dois principais polos da economia global. Para isso, anunciou planos para construir uma nova fábrica de US$ 12 billhões (R$ 56 bilhões) no Arizona, nos Estados Unidos. Em 2021, o mercado estadunidense foi responsável por 65% da receita líquida de US$ 56,8 bilhões (R$ 264 bilhões) da TSMC.
O caminho geopolítico dos semicondutores: patentes e tecnologias
Apesar de os melhores semicondutores do mundo não serem fabricados nos Estados Unidos, a rota desses produtos não pode deixar de passar pelo país norte-americano porque é ali que muitas das máquinas necessárias para a construção dos chips são fabricadas. Os estadunidenses também são donos de patentes vitais para o setor.
As máquinas de litografia necessárias para as fábricas de semicondutores produzirem os chips mais avançados são feitas por apenas uma empresa no mundo: a holandesa ASML. Ligada ao setor de defesa dos EUA, a ASML também segue as orientações geopolíticas da Casa Branca e não vende parte de seus produtos para a China.
David Bachman, estudioso da China e professor da Universidade de Washington, avalia que a TSMC entende que perder acesso a esses produtos estadunidenses por rusgas diplomáticas seria um “grande problema”.
“Muitos dos processos de fabricação da TSMC envolvem patentes dos EUA, que por sua vez afirmaram que sancionarão empresas que fizerem negócios ou venderem certos tipos de produtos para empresas chinesas, como a Huawei em particular, e outras entidades do país que estão sob sanções. Desse modo, a TSMC seria excluída de habilidades tecnológicas estratégicas se os EUA se opusessem, motivo pelo qual a TSMC não está disposta a vender nada que não seja permitido tanto para China quanto para a Rússia. Não é uma questão do governo de Taiwan, é um assunto dos cálculos de negócio da TSMC”, afirma o pesquisador do Programa de Estudos da China.
No cenário hipotético e especulativo de uma invasão chinesa à Taiwan, Bachman ressalta que as autoridades da ilha, ou até mesmo dos Estados Unidos, poderiam chegar a destruir as instalações da TSMC para evitar que as avançadas instalações da empresa troquem de domínio. “A TSMC é certamente um ativo estratégico de Taiwan”, diz o professor da Universidade de Washington.