Por Douglas F. Kovaleski para Desacato. info.
Nessa semana, o tema abordado é o da religiosidade e como isso interfere no comportamento da pandemia. Vale lembrar que esta discussão é conectada diretamente às discussões anteriores dessa mesma coluna que tratam da pandemia de COVID-19 e a determinação social do processo saúde-doença, e as desigualdades sociais, e a colonialidade do poder, e as redes sociais e finalmente aos ataques à saúde do trabalhador que demonstra a superexploração que dá lastro ao avanço do capital sobre a classe trabalhadora.
Os aspectos que englobam os fatores culturais, e da ordem dos costumes, que denominamos modo de vida, por não estarem desconectados do modo de produção social da vida no contexto histórico em tela, assumem peso decisivo no contexto de uma pandemia, ao tratar de Brasil, epidemia. Nessa situação de exceção, as questões mais críticas tornam-se ainda mais evidentes, pois dela depende a vida de um número muito grande de pessoas, em especial daqueles que não podem escolher ficar em casa, a classe trabalhadora contemporânea: precarizada, uberizada, tercerizada e superexplorada.
No caso do Brasil e seu povo, na imensa maioria, pobre, com baixa escolaridade, acostumada ao açoite, pois carrega uma origem escravocrata de intensa reprodução da humilhação das mulheres, negros e negras e pobres, onde a regra é perder direitos, salários e a própria vida em nome do trabalho, resta apenas a fé. Ser “temente a deus” é o que resta para uma parcela muito, muito grande da população. Mas quando digo isso, não falo de um deus que inclui, que olha para as desigualdades sociais, ou que promove solidariedade e a organização política da comunidade, o deus a que me refiro é um deus mágico. Um deus capaz de resolver pelas mãos de um pastor falastrão todos os problemas da existência daquele vivente, um deus que exorciza os demônios, que cura das doenças, que tira depressão ansiedade e promete até fazer os fiéis enriquecerem.
A partir disso, deve-se colocar o mundo evangélico no centro do debate público e da epidemia do coronavírus no Brasil. Os evangélicos relativizam mais a gravidade da covid-19 e aprovam mais o governo Bolsonaro do que a média da população, conforme uma pesquisa recente do Datafolha. Esse segmento religioso deve superar o católico nos próximos anos, segundo estimativas do IBGE.
O maior desafio desse debate sobre religião e política talvez seja apontar os efeitos perversos causados pela ganância de alguns pastores sem que isso caia na narrativa generalizante e preconceituosa que demoniza todo um universo evangélico, que é plural e que tem suas próprias disputas políticas internas.
Entretanto, não se pode esquecer que pastores como Edir Macedo e Silas Malafaia têm feito um grande desserviço ao combate da epidemia, colocando-se contra o isolamento social e temendo o esvaziamento das igrejas, que é fonte de arrecadação de dízimo e também de formação de coesão social. Mais do que isso, multiplicam-se memes e vídeos no WhatsApp de pastores charlatões, dizendo que quem tem fé está imune, que a epidemia é coisa de satã, uma vingança divina. Também há aqueles que oferecem receitas mágicas de cura.
Malafaia e seus deputados da bancada evangélica têm feito lobby com Bolsonaro, que acena cada vez mais para esse setor, violando constantemente os dispositivos constitucionais do estado laico. O presidente inclusive decretou que as igrejas não deveriam ser fechadas, classificando-as como um serviço essencial, agradando os pastores, os fiéis e cativando sua “temente” base eleitoral.
A conexão com o crente é fundamental para Bolsonaro se manter no poder. Enquanto ele conseguir isso, sua base será fortalecida e, provavelmente, maior. As igrejas evangélicas, neste momento de crise, se colocam como uma alternativa para as populações mais vulneráveis, oferecendo tanto conforto emocional quanto ajuda assistencial.
Desta forma, é preciso que os movimentos sociais por meio de ações organizadas dialoguem com a população evangélica encontrando maneiras de convencimento e de empoderamento dessas pessoas que delegam à deus a resolução de seus problemas, constituindo um rebanho para que politiqueiros, oportunistas e mal-intencionados usem sua fé, seu dinheiro e roubem sua cidadania. O projeto neoconservador em curso no Brasil e em vários países do mundo usa da fé cega para viabilizar projetos retrógrados, impopulares e que servem apenas para aumentar as fortunas dos mais ricos e manter a classe trabalhadora quietinha, trabalhando docilmente e orando.
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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.
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