Por Neto Lucon
Em Copacabana, a travesti Isabelle (Valentina Sampaio) é encontrada morta, após vencer um concurso de talentos. A taxista Berenice (Cláudia Abreu) descobre que o filho Tiago (Caio Manhente), de 15 anos, era amigo da vítima e, ao saber mais sobre a história, começa a investigar por conta própria. Em “Berenice Procura”, ela e o público não fazem a menor ideia do que vão encontrar.
Inspirado no sexto livro de Luiz Alfredo Garcia-Roza, o filme dirigido por Allan Fiterman traz à tona a travestilidade para dentro de uma família tradicional brasileira que, mesmo com a informação sendo repassada o tempo todo pela mídia hegemônica e diante de um assassinato, continua demonstrando desconhecimento, ignorância e preconceito.
Na casa de Berenice, o tema só atravessa a porta quando Tiago é chamado para depor sobre o crime. Sem saber que o filho era uma espécie de fiel escudeiro e fã de Isabelle, Berenice fica avessa num primeiro momento, questiona a amizade e depois tenta retomar contato. O marido, o jornalista policial Domingos (Eduardo Moscovis), encarna um tom mais agressivo e LGBTfóbico, cuspindo no garoto e reivindicando a retomada da família tradicional brasileira.
Por outro lado, o filme aborda vínculos formados na dor, como o de Isabelle, Russo (Emílio Dantas) e Brigitte de Búzios. A eterna Divina Diva interpreta uma personagem homônima, que acolhe e se torna a mãezona de Isabelle e Russo, que há alguns anos se encontravam em situação de vulnerabilidade. A relação que estabeleceram evidencia o surgimento das chamadas novas famílias, cujo vínculo não é sanguíneo, mas pelo afeto.
A personagem de Brigitte é humanizada, divertida e debochada, sendo uma grande homenagem aos fãs da artista que morreu em junho deste ano. “Você está me achando com cara de mulher de pão com ovo? Eu trouxe mortadela”, é uma das falas que leva o público aos risos.
QUEM MATOU?
O recurso clássico “Quem matou Isabelle”, tão comum em novelas brasileiras, funciona na trama. Além do roteiro com tom de mistério que deixa a história dramática bem amarrada, Isabelle está cercada de pessoas que poderiam querer sua morte. Isso sem contar que está no país que mais mata travestis no mundo, como informa a ong internacional Transgender Europe. Ou seja, pode ser qualquer um.
Dentre os suspeitos, está Jéssica (Carol Marra), colega travesti que fica em segundo lugar no concurso na boate, a cafetina Greta (Vera Holtz), que cobrava uma dívida dela e queria obrigá-la a fazer programas, ou até mesmo Jayme (Fábio Herford), um cliente-namorado apaixonado que chega a ter uma briga com ela no dia anterior.
Com uma das melhores atuações de Cláudia Abreu, Berenice abre a mente, frequenta espaços que não imaginava entrar, veste roupas que há tempos não vestia e se vê mergulhada num mundo sem moralismos, mas marcado por diversos preconceitos. Restabelece de maneira visceral o contato com o filho e com a mulher que ela mesma é. A revelação da assassina ou assassino, contudo, só ocorre no último minuto do filme.
ELENCO TRANS
Diferente de outras roteiros semelhantes – como o da série A Lei e o Crime, da TV Record, cuja travesti assassinada, vivida pela modelo Patricia Araújo, só aparece nas cenas iniciais – Valentina é realmente apresentada ao público como atriz. Sua personagem, ainda que na primeira cena aparece morta, está em memórias dos protagonistas e está presente em todo o filme, do começo ao fim.
A atuação da jovem atriz é convincente e sensível. Com o empurrão de uma beleza que preenche a tela, Valentina prende atenção com uma veia artística sincera e quase natural para uma protagonista tão frágil, destemida e cheia de dramas particulares. Ponto alto é quando canta a música “Amor Marginal”, de Jhonny Hooker, no concurso que vence. Vem recebendo muitas críticas positivas de diversos sites especializados em cinema.
Outra atriz que conseguiu uma personagem de destaque é Carol Marra, que vive Jéssica, uma das artista que dançam na boate. Ela demonstra talento no palco e no bate-cabelo, mas faz de tudo para se dar bem e não aceita ficar em segundo lugar. Com caráter duvidoso, ela fez de tudo para atrapalhar Isabelle. A modelo Thalita Zampirolli também é uma das garotas da boate, Michele Glamour, e dá show de beleza nas performances no palco.
A temática trans é abordada de maneira correta, com respeito a identidade de gênero e algumas ofensas são colocadas estrategicamente para mostrar a maneira transfóbica que a sociedade se reporta às pessoas trans. Há um equívoco apenas quando Berenice fala que Isabelle é travesti e o filho rebate imediatamente, dizendo que ela é transgênero – como se ser travesti fosse uma ofensa e como se ser travesti não estivesse dentro do termo guarda-chuva transgênero.
VALE A PENA?
Berenice Procura é um filme que merece ser assistido, sobretudo por quem ainda desconhece o que passa grande parte dessa população. Para quem é pessoa trans e sabe muito bem o que rola nos bastidores, pode ser mais do mesmo ou então o gatilho para algumas dores ou desilusões.
Vale dizer que a obra tem diversos acertos, em termos representatividade, texto e enredo, sobretudo por deixar muito bem desenhadinho dois dados que marcam a transfobia no Brasil: o país que mais mata travestis e mulheres trans é também o país que mais deseja essa população – segundo o site Redtube, é o país que mais procura conteúdo pornográfico com travestis.
O filme está em cartaz no Cinema Itaú da Augusta, em São Paulo. Quem quiser assistir e estiver em São Paulo, pode enviar um e-mail para [email protected]. Temos 20 ingressos disponíveis para pessoas trans e travestis. Não é sorteio, é por ordem de envio.
Assista ao trailer: