Cinzas. Por Vilmar Debona

Foto: InfoHuevar

Por Vilmar Debona.

Longe de mim querer ser Buda, mas hoje tive quatro visões parecidas com aquelas que dizem ter tido Siddhartta antes da resignação.

A chuva que já dura duas semanas deu uma trégua e eu saí para caminhar. Mesmo percurso: atravessar a Velha Senhora, que no Desterro é o apelido da ponte mais antiga entre Continente e Ilha, esticar um pouco do lado de lá, e retornar em condições de continuar o trabalho.

O momento subjetivo – ou de humor – e o objetivo – ou de temperatura e pressão – em geral ditam se vai ser caminhada ou corrida. Hoje só caminhei. É provável que não conseguisse perceber tudo se estivesse correndo.

Logo no início, e, no entanto, quase no meio da ponte, vi um rapaz chorando, esforçando-se para continuar em pé, o que só era possível porque estava prostrado com os cotovelos sobre o corrimão cinza. Segurava levemente a testa com as duas mãos e soluçava. Seu olhar, porém, estava fixo no horizonte que, mirado daquele ângulo, exige atravessar as águas quase verdes do Estreito, ignorar as grandes lanchas de passeio e os pequenos barcos de pescadores que circulam para quem olha para baixo, e chocar-se nas grandes montanhas azuis, a poucas dezenas de quilômetros dali.

O rapaz desalentado me fez desacelerar o passo e interferir.

– Oi, amigo. Posso ajudar?

O desconhecido de boné verde-amarelo olhou lentamente em minha direção e emitiu um trêmulo “Oi?”

A máscara em nós, se ressalta os olhos e protege (os outros) do vírus, abafa a voz, que em mim já é baixa. Repeti. O desconhecido agradeceu, restringiu-se a sussurrar que era uma dor quase insuportável, mas emendou com a esperança de um “vai passar”.

Desejei força, recomendei procurar ajuda profissional e um lugar mais tranquilo para chorar. Ocorreu-me naquele instante o que tinha lido há pouco tempo sobre um dos pontos em que muitos desistem da vida no Desterro. As pontes (cinzas).

Incomodado e com a impressão de ter sido o menos altruísta dos samaritanos, segui.

Já do outro lado, costeando uma ciclo-faixa pela calçada, detenho-me um pouco para contemplar o mar e duas pequenas ilhas que, naquele momento, compunham a paisagem com alguns poucos raios de sol refletidos na água pouco ondulada e calma da Bahia Norte. Era meia-tarde.

Ouço, então, um barulho atípico.

Torço-me para trás e a cena é a de um ciclista que acabara de se chocar, numa descida, contra um carro grande e preto, de luxo, que saía da garagem sem dar sinal e sem olhar a pista dos ciclistas. O moço comprimia o joelho, franzia o rosto e, entre alguns gemidos, xingava a motorista distraída, que naqueles segundos já tinha se transformado na melhor socorrista da Ilha e apanhava a bicicleta caída. Coisa de dois ou três minutos e tudo parecia estar encaminhado da melhor forma. Algum sangue leve nas pernas do ciclista, verificação de pneus da bike, pedidos de desculpas da condutora misturados com reclamação e vergonha, mãos exclamativas para o alto e para os lados… e os dois seguiram.

Retomo a caminhada com olhos em prédios, nas poucas árvores de folhas largas que ainda pingavam a última chuva, e em alguns transeuntes sendo levados por seus cães a passear.

A poucos minutos dali, chego de volta à ponte. O regresso pela Velha Senhora sempre se dá pela margem contrária daquela percorrida na ida. Voltei a acelerar o passo e logo alcancei a metade. É a parte mais alta e justamente o ponto em que se encontrava o rapaz choroso da ida.

Mas a cena, desta vez, era inusitada para mim. Era – para ser mais íntimo – insólita e arrebatadora. Uma pequena família, com a maioria de seus membros vestida de branco, estava parada, como se acabasse de ser pregada à ponte, compenetrada tal como um grupo que se une para rezar, com algo em mãos.

Meu olhar, combinado a passos largos, não conseguiu identificar com rapidez o que se passava. A impressão primeira foi a de que estavam pagando promessa a Iemanjá. Mas em cima da ponte e sem tocar a areia? Em alguns instantes entendi. Eram as cinzas de um ente querido que vieram jogar! O pó estava num odre de barro que um homem envelhecido segurava com as duas mãos ao alto e, bem naquele instante, soltou como quem jamais queria soltar!

Nunca tinha visto cinzas sendo arremessadas ao mar a não ser em livros e filmes. Mormente de cima de uma ponte badalada, que, em geral, suporta mais alegrias e selfies, grudada ao Centro da cidade. A sequência da cena exibiu os demais membros da família jogando, no rumo do odre, pétalas de rosas brancas.

De dor em dor, tive que perguntar a mim: teria que presenciar mais uma? Sim, mas essa seria de revolta e denúncia. Ainda caminhava na ponte com aquela cena forte na cabeça. As cinzas caindo num odre – eu imaginava o pote de barro se espatifando n’água e seguindo aos pedaços para o fundo do mar, enquanto as cinzas como resquícios de alguém viravam literalmente nada. Cheguei a fantasiar a intenção da família em não projetar as cinzas no ar, fora de algum recipiente. Ventava muito.

Segui a caminhada quando de repente, ainda sobre a ponte, ao final dela, começa um “buzinaço”. Gritarias e barulhos estrondosos vinham de um caminhão de som da Avenida sob a ponte. Era uma carreata “contra a morte e em defesa da vida”. Achei o mais basilar dos motes, mas logo lembrei que, hoje, não é mais óbvio dizer-se a favor da vida e contra a morte. É preciso gritar o que ontem parecia ser óbvio. A morte, ali, atendia por Presidente e por genocídio; a vida, por vacina, por direito a ter direitos e por impedimento de um negacionista.

Era um grito numa ponte. Não o de Munch, mas era como se todos os gritos de Munch, que também parecem ter sido pintados sobre uma ponte, esgoelassem, bem ali, o desespero de tod@s.

Daí que, nos passos derradeiros de retorno para casa, entendi. Era tudo uma coisa só: o rapaz choroso, o ciclista atropelado, as cinzas de uma vítima, o grito contra a barbárie.

Desejei menos ainda a conversão de Siddhartha. Não é preciso ir ao encontro das cinzas ou fundir-se no nada. Cinzas são fabricadas diariamente. A sequência de fatos me disse outra coisa: é preciso gritar as cinzas na ponte.

Vilmar Debona – Professor de Ética e Filosofia Política do Departamento de Filosofia da UFSC. Estudioso da obra de Arthur Schopenhauer e das relações entre Filosofia e Literatura, autor de artigos e livros sobre o pessimismo filosófico, dentre os quais A outra face do pessimismo (Edições Loyola, 2020).Professor de Ética e Filosofia Política do Departamento de Filosofia da UFSC. Estudioso da obra de Arthur Schopenhauer e das relações entre Filosofia e Literatura, autor de artigos e livros sobre o pessimismo filosófico, dentre os quais A outra face do pessimismo (Edições Loyola, 2020).

 

1 COMENTÁRIO

  1. Belo texto do amigo Vilmar, embora seja redundância falar em grande texto dele, todos eles são! Parabéns por sua percepção e sensibilidade, grato por compartilhar da sua amizade.

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