Por Paulo Motoryn, em Brasil de Fato.
“A Rio-Santos é um corte que atravessa um território. É como uma cicatriz que nunca cura.” É dessa forma que Marina Fontanelli define a construção da rodovia que virou notícia no Brasil e no mundo no Carnaval, depois da tragédia que já matou mais de 50 pessoas no Litoral Norte de São Paulo. A pesquisadora é autora da dissertação “A rodovia e os caiçaras: a construção da Rio-Santos e suas consequências pra as comunidades locais em Ubatuba” (clique aqui para ler na íntegra), produzida durante o curso de mestrado na Fundação Getúlio Vargas, em 2019.
Fontanelli se debruçou, durante dois anos, no desafio de entender como a construção da rodovia impactou o modo de vida das comunidades caiçaras que habitavam a região. “Esse corte foi muito abrupto para as famílias que viviam naquela região. Em pouco tempo, o território mudou muito. A industrialização e a especulação imobiliária já estavam acontecendo em São Sebastião, Caraguatatuba e Ubatuba antes da construção da estrada, mas a chegada da Rio-Santos acelerou o processo em um nível exponencial”, explica a pesquisadora.
Um dos muitos relatos que ela colheu para a dissertação é sintomático do impacto da rodovia no modo de vida da população caiçara. “Quando a estrada passou, a gente tinha uma casinha que era ali onde é a estrada, eu morava com meu pai ali. Aí, quando a estrada passou, eles tiraram a gente dali da casa (…). Aí tiram nós, passaram pra cá, fizeram uma casa de tábua e a gente começou a viver nessa casa, só que eles não pagaram nada! Cortaram, escangalharam, tiraram nossos anos de plantação, banana, laranja, nós tínhamos muita plantação, tiraram tudo, acabaram com tudo e nós ficamos com essa casinha de tábua ali”, disse Antônia Floripes Correia Santana (1938-2021), também conhecida como Dona Antônia ou “Macuca”, caiçara da Praia Vermelha do Norte, em Ubatuba.
Na conclusão de seu trabalho, Fontanelli define o significado da Rio-Santos para as populações que viviam ali antes da construção: “É um acontecimento-trauma no modo de vida caiçara. Depois da Rio-Santos, a vida para as famílias locais da cidade de Ubatuba não foi mais a mesma.”
Uma Transamazônica no litoral de SP
Finalizada no início dos anos 1970, a Rio-Santos é um projeto com o DNA da Ditadura Civil-Militar, expressão que Fontanelli usa para definir o período. Apesar de planejada ainda no início dos anos 1960, antes do Golpe de 1964, a obra foi construída e propagandeada de forma considerável pelos militares, em especial pelo coronel Mário Andreazza, ministro dos Transportes dos ditadores Costa e Silva e Médici. No posto, ele também foi responsável por outras obras, entre as quais a Ponte Rio-Niterói e a Transamazônica.
Em 12 de janeiro 1968, o jornal Folha de S.Paulo registrou declarações de Andreazza sobre “a grande obra para o Estado de São Paulo [que] será a rodovia Rio-Santos”. A manchete trata a rodovia como uma das “promessas” do ministro à população.
“A rodovia Rio-Santos faz parte do contexto da Transamazônica e de outras estradas em que o governo militar buscava integrar o país e expandir o desenvolvimento de forma autoritária, desconsiderando as populações que viviam nessas regiões”, afirma Fontanelli. Os conflitos em torno de sua construção, no entanto, não tiveram tanto destaque quanto outras obras “faraônicas” da Ditadura, mais abordadas pela literatura acadêmica.
“Os documentos que encontrei têm esse mesmo discurso colonizador que queria desbravar terras virgens e expandir o progresso e a civilização para todo o Brasil, ignorando a presença das populações locais. A população não foi consultada e foi desconsiderada, o que gerou conflitos e expropriação de terras”, diz a pesquisadora.
A descoberta de Fontanelli vai na mesma linha do que defendem, hoje em dia, integrantes de coletivos e movimentos populares ligados à cultura caiçara que atuam na região.
O líder comunitário Camilo Terra, do Coletivo Caiçara de São Sebastião, município que foi mais afetado pela tragédia e concentra a maior parte dos mortos, lamenta que a rodovia tenha acelerado o processo de produção de desigualdades na região. “A Rio-Santos poderia ser um elemento de envolvimento e desenvolvimento da comunidade para conseguir escoar sua produção, para ter melhores políticas públicas, mas, na verdade, ela foi nefasta. Trouxe a especulação imobiliária, trouxe o capitalismo na sua forma mais mais brutal, de violência e expulsão.”
“Isso fez com que aquilo que era normal, que era uma pessoa, de forma simples, ter uma casa na frente da praia, podendo ir pescar, plantar, dormir na rede, acabasse. Agora, as pessoas ficam no sertão [expressão usada pela população de São Sebastião para definir as áreas que ficam do outro lado da Rio-Santos, próximas às encostas e longe do mar], penduradas embaixo de uma pedra”, lamenta Camilo Terra.
“População caiçara foi enganada”
Os relatos da pesquisadora e dos moradores também se encontram quando o tema é a expulsão das populações caiçaras de suas casas durante a construção da Rio-Santos. “Para muitas famílias, foi o primeiro contato com esse tipo de civilização urbana ocidental, e elas muitas vezes não tinham noção da importância de documentos. Com a Rio-Santos, empresários interessados nas terras dessas famílias chegaram à região e muitas vezes forçavam as pessoas a assinar documentos que elas não entendiam, muitas vezes eram enganados. As terras dessas famílias eram vendidas por preços irrisórios”, explica Fontanelli. “Isso quando não eram jagunços expulsando as populações de lá.”
“Tem um caso exemplar que cito na minha dissertação e que foi contado no livro da pesquisadora Priscila Siqueira chamado “Genocídio Caiçara”, escrito na década de 1980. É a história de uma senhora caiçara que tinha um bar na beira da praia de Toque-Toque Pequeno, em São Sebastião. Ela não queria vender a terra, mas estava sendo pressionada por uma construtora. Como ela resistiu, a construtora montou um bar temporário ao lado do bar dessa senhora e colocou os preços muito baixos, o que acabou por tirar a sua fonte de renda. Mesmo sem querer vender, ela acabou por ser obrigada a fazer isso diante das estratégias mais variadas usadas para forçar a venda das terras”, diz a pesquisadora.
Morador de São Sebastião, Camilo Terra conta histórias similares e acrescenta um elemento: as informações privilegiadas que levaram emissários de políticos e empresários a comprar terrenos dos caiçaras antes mesmo da finalização das obras das rodovias. “O Ademar de Barros [então governador de São Paulo] e o governo do Rio de Janeiro tinham informações privilegiadas sobre a Rio-Santos, e enviaram seus advogados para enganar os Caiçaras na região, colocando pressão para que eles saíssem das terras onde viviam”, conta.
“Os advogados utilizavam táticas enganosas, oferecendo às vezes apenas um rádio de pilha ou até mesmo uma garrafa de cachaça, em troca das terras dos caiçaras. Sem entenderem direito o que estavam fazendo, alguns acabavam aceitando dinheiro ou assinando documentos que transferiam a propriedade de toda a terra que ocupavam. As pessoas assinavam sem saber o que estavam fazendo, acreditando que estavam vendendo apenas uma pequena parte de suas terras, mas na verdade estavam vendendo tudo o que ocupavam”, afirma o ativista.
Rodovia promove “apartheid” no litoral
A tragédia que vitimou 49 pessoas no Litoral Norte, segundo Camilo Terra, é sintoma da separação entre as mansões de veraneio e a população mais pobre – o que ele diz que pode, sim, ser chamado de “apartheid”, regime de segregação racial. “Por quê é um apartheid? Porque para baixo da Rio-Santos o projeto era não ficar caiçara, pobre, população tradicional. Quem quis ficar, ficou do outro lado da estrada, nos sertões. Houve uma divisão nesse sentido”, argumenta.
“O que a Rio-Santos poderia trazer de acesso mais fácil às comunidades, não trouxe. O que veio foi a especulação imobiliária. Quem não foi para a cidade, ficou sem condições de saneamento, de água. O poder público não chegou. Quem chegou foram os ‘tubarões’, que é a forma como a gente chama a burguesia que veio para cá, construíram as mansões nas praias”, explica Camilo Terra.
Uma mapa do Instituto Conservação Costeira, organização que faz a gestão da Área de Preservação Ambiental (APA) Baleia-Sahy (destacada em vermelho na figura abaixo), justamente onde ocorreu o maior número de mortes, mostra como a rodovia separa geograficamente as comunidades e as casas de veraneio. De um lado, a população residente submetida ao terreno acidentado dos morros da Serra do Mar. Do outro, um terreno plano à beira mar, onde há uma ocupação de baixa densidade e as casas ficam vazias na maior parte do ano.
Deslizamentos: “Tragédia anunciada”
Em 2010, a Agência Brasil publicou uma reportagem com declarações de Geraldo Gayoso, que era secretário do Ministério dos Transportes na Ditadura na época da construção da Rio-Santos. Na entrevista, o engenheiro diz ter testemunhado a insistência de autoridades para realizar a obra, mesmo diante de desafios impostos pela natureza geográfica da região. “A estrada atravessa áreas de taludes muito inclinados e com vegetação muito densa. Para fazer a obra, desmatou-se e cortou-se a serra, construindo-se platôs de concreto para o leito da estrada”, afirmou.
“O projeto original estava errado a partir da opção do desmatamento e dos platôs. A estrada deveria abrir túneis na rocha e viadutos onde fosse possível. Isto, com as obras de geotécnica para a contenção de encostas, seria a opção correta e até mais barata, considerando-se os prejuízos materiais e as perdas humanas dos deslizamentos e rachaduras na estrada”, disse Gayoso.
O resultado foi o enfraquecimento do terreno pela retirada da vegetação natural e a sobrecarga do solo abaixo dos platôs, o que reflete nos deslizamentos e nos rompimentos do asfalto nas épocas de chuvas. Há meio século, as técnicas de engenharia não permitiam prever problemas que hoje parecem óbvios, mas a estrada foi aberta em ritmo lento, ao longo de décadas e décadas, até o ano de 1971, o que permitiria correções, segundo Gayoso. Na entrevista, o ex-secretário da Ditadura já falava da rodovia como “uma crônica dos deslizamentos de terra” que persistem em vitimar brasileiros – no século passado, em 2010 e nos dias de hoje.
Solução é resistência popular
Na segunda-feira (20), o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que “não sobrou rodovia” em alguns trechos da Rio-Santos, por causa das chuvas do fim de semana. Em entrevista coletiva ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que visitava São Sebastião, Tarcísio disse que havia mais de dez pontos de bloqueio na Rio-Santos – dois deles completamente intransitáveis, segundo o DER (Departamento de Estradas e Rodagem) –, sendo alguns de grande extensão.
“Em alguns desses pontos, a gente não sabe exatamente o que sobrou da rodovia”, afirmou. “É um volume de terra tão grande que se deslocou, e numa extensão tão grande, que a gente até levanta a hipótese de a rodovia ter sido arrastada junto, não existir mais”, disse.
Diante da possibilidade de novas alternativas para a região pós-tragédia, o consenso entre Marina Fontanelli e Camilo Terra é que o estrago já foi feito, mas que qualquer saída para revertê-lo passa pelas comunidades – da resistência na luta popular ao protagonismo em um modelo de turismo de base comunitária. “O impacto foi muito grande e não foi considerado na época, então é difícil reverter tudo isso”, diz a pesquisadora. “Já foi feito o impacto, né? Não tem remédio agora”, afirma o ativista comunitário. Os dois, porém, não perdem as esperanças e discutem soluções para o impasse.
“O uso da matriz marítima é importante. Com embarcações do poder público, como a Dersa e empresas públicas, para permitir a navegação e ajudar no transporte de passageiros e cargas para áreas residenciais que não podem ser acessadas por barcos menores”, argumenta Camilo Terra. Ele também defende que “os bairros tenham farmácias e comércio local para que as pessoas não precisem se deslocar ao centro da cidade” e que “o turismo deve ser comunitário e bem planejado, com estudos sobre a capacidade de cada praia e local de visitação para evitar superlotação”. “Não há solução fácil, mas precisamos lidar com o problema da melhor maneira possível”, finaliza.
“Na minha dissertação, eu observei algumas situações de resistência por parte das comunidades caiçaras. Durante esse processo, eles começaram a perceber que estavam sendo expropriados e se fortaleceram. Grupos externos também os ajudaram, mostrando que eles têm direitos sobre suas terras. Um exemplo disso é o caso de Trindade, onde eles conseguiram manter parte de suas terras com muita luta”, diz Fontanelli.
“A solução para isso é a conscientização, começando com o poder público das cidades, que devem reconhecer as culturas tradicionais, incluindo a caiçara. Isso pode ser ensinado nas escolas por meio de oficinas de educação, como as de fandango que foram realizadas em Ubatuba. É importante ampliar essa consciência, para que os turistas também entendam a história e a cultura da região. Uma solução para isso é o turismo de base comunitária, que pode ajudar a gerar renda para as pessoas sem que elas precisem trabalhar em hotéis ou em outras áreas que não estão relacionadas com a sua cultura”, defende a pesquisadora.
Edição original: Nicolau Soares