Por Gilberto Lopes.
Parecia que ela existia: uma direita democrática. “Mas era porque tinham o controle, o poder de veto”. “Quando viram que a democracia poderia permitir que outros assumissem o controle, então ficaram contra a democracia”, disse Fernando Atria. Estou mais uma vez sentado com Fernando Atria, advogado constitucionalista, ex-constituinte, em sua casa em Santiago, numa conversa que já dura seis anos. O mesmo fio condutor de sempre.
“A forma política chilena caducou em 18 de outubro de 2019, quando grandes protestos eclodiram devido a um aumento no transporte público, que logo se converteram numa verdadeira irrupção social”, disse-me ele em 21 de maio, quando era membro da Assembleia Constituinte. Três anos antes, quando aspirou, sem sucesso, a uma cadeira na Câmara dos Deputados – e Sebastián Piñera conquistou seu segundo mandato presidencial –, ele falava de uma mudança de época na política chilena, desde os protestos de 2011. Percebia que o país estava submetido a uma forma de governo incapaz de produzir as transformações significativas de que precisava.
Uma crise sem solução
Há seis anos, em 2017, você disse-me que havia uma “mudança de época” na política chilena. Mas que as exigências de impugnação do modelo neoliberal não podiam ser satisfeitas sem uma nova constituição. Houve avanço nessa direção, mas acho que poucas pessoas imaginavam que chegaríamos ao ponto atual, com o processo constituinte nas mãos do pinochetismo. “E agora?”, perguntei-lhe na véspera das solenidades dos 50 anos do golpe contra a Unidade Popular, quando a elaboração de uma nova proposta de constituição entrava em sua fase final.
“Ainda acredito que o Chile precisa de uma transformação e que a Constituição a impede”, disse Fernando Atria. “O que essa situação produziu foi uma deslegitimação progressiva, até que o processo explodiu. Só então se abriu a possibilidade de uma transformação verdadeira. Essa possibilidade fracassou e não vai se concretizar agora. Um dos motivos é o fato de ter chegado tarde demais. A crise continuará sem solução”.
Num Conselho Constitucional de 50 membros, a direita tem uma ampla maioria. Somente os republicanos, liderados por José Antonio Kast, têm 22 representantes, além de seis da UDI e cinco da Renovação Nacional-Evopoli. Desde 16 de setembro, estão votando (e aprovando) praticamente todas as reformas que o grupo fez no texto mais consensual preparado por um Comitê de Especialistas.
“Aqueles que controlam a maioria nesse processo estão transformando seu projeto de Constituição numa fonte de ódio sectário e mesquinhez”, disse em 21 de setembro Álvaro Ramis, reitor da Universidade Academia de Humanismo Cristão. “O que se vê no Conselho é um pântano no qual chafurdam personagens medíocres”. Ao final, em 17 de dezembro, os chilenos terão que ir às urnas novamente para aprovar ou rejeitar o texto apresentado a eles, cuja radicalidade começou a criar desconforto em setores da própria direita.
50 anos depois do golpe
Cinquenta anos após o golpe, parece que o Chile precisa retomar o curso das reformas interrompido pela ditadura. A filha de Allende, senadora Isabel Allende, defendeu a obra de seu pai e o programa da Unidade Popular em seu discurso de 11 de setembro. A direita respondeu a esse programa com um golpe, que o suspendeu durante os últimos 50 anos. Você não acha que precisamos retomar esse fio político? perguntei a Fernando Atria no início de nossa conversa.
“Sim, é claro. Temos que retomar o fio. Continuar a construção desse Estado social, é disso que o Chile precisa”, disse-me. “Mas não se trata de 12 de setembro de 73”, acrescentou. “O programa de Allende, a experiência da UP, devem ser vistos no contexto do desenvolvimento chileno no século XX. Na década de 1960, no governo Frei (64-70), houve uma tentativa de redefinir o papel da propriedade e a presença do Estado na economia. Isso tinha a ver com a propriedade como uma forma de redistribuir o poder e ficou explícito no caso da reforma agrária”.
A senadora Isabel Allende lembrou desse processo histórico ao discursar no La Moneda em 11 de setembro. “Meu pai viajou por todo o Chile, percorreu o país mais da metade de sua vida, da cordilheira e vales ao mar, do deserto aos campos de gelo na Patagônia. Ele representou o norte, o centro e o sul no Congresso como deputado e senador; e, em suas quatro campanhas presidenciais, ouviu as vozes de milhares de pessoas e incentivou a construção de movimentos sociais amplos, diversos e plurais”. “Naqueles anos, 60% das famílias ganhava 17% da renda do país, enquanto 2% das famílias controlavam 46% da renda nacional. A mortalidade infantil ultrapassava 200 mortes antes de um ano de idade para cada mil nascidos vivos, a pobreza era brutal e, é claro, multidimensional”.
“O governo da Unidade Popular adotou seu pensamento”, lembrou. “Apesar de suas dificuldades e erros, redistribuiu a renda, aumentou significativamente o salário mínimo e as aposentadorias, democratizou o crédito, nacionalizou as principais riquezas naturais do país, aprofundou a reforma agrária, combateu a desnutrição, abriu espaços para a participação na tomada de decisões, dobrou a licença maternidade, estabeleceu a igualdade salarial entre homens e mulheres que trabalhassem no Estado, aumentou as bolsas de estudo e os programas especiais para trabalhadores e mulheres nas universidades, promoveu a cultura, a leitura e a medicina social, deu um par de sapatos a todas as crianças que não os tivessem, entre muitas outras conquistas”.
“O que aconteceu no Chile naqueles anos”, disse Isabel Allende, “tornou-se parte da história de vida de milhões de cidadãos que se sentiram desafiados e se mobilizaram de muitas maneiras, inspirados por Allende”. “Hoje, essa direita procura distorcer os fatos para culpar a UP e o presidente Allende pelo golpe de Estado. Mas os verdadeiros responsáveis”, acrescentou, “foram aqueles que romperam a institucionalidade, bombardearam este palácio, perseguiram, torturaram, assassinaram e desapareceram milhares de chilenos. E, sem dúvida, aqueles que os protegeram politicamente e mantiveram um silêncio cúmplice diante das atrocidades que ocorriam no país”.
Democracia e direitos humanos
A história nos mostra que esses 50 anos de história do Chile foram 50 anos de luta para retomar um fio que o golpe de Estado cortou. Uma luta que nunca foi interrompida, nem mesmo quando as condições eram as mais dramáticas e tudo parecia impossível.
Como disse Allende: “Os processos sociais não podem ser detidos nem pela repressão, nem pelo crime, nem pela força. A história é nossa e é feita pelos povos”. Parece-me que Fernando Atria e Isabel Allende estavam se referindo a esse caminho.
Gabriel Boric preferiu falar sobre democracia e direitos humanos. Não é que Atria e a senadora Allende não se importassem com o tema. Mas a abordagem é diferente. Perguntei a Fernando Atria se a afirmação do presidente de promover os direitos humanos “sem antepor nenhuma ideologia” não acabava alinhando-o com uma política conservadora que tem sido a base para a violação desses direitos, no Chile e na América Latina. Esse é o caminho para a defesa dos direitos humanos?, perguntei.
Ele demora um pouco… pensa… e diz: “Sim e não… Não acho que uma política internacional possa ser definida pelo tema da incondicionalidade dos direitos humanos. Mas, independentemente do lado em que Gabriel Boric esteja, há um valor na ideia da incondicionalidade dos direitos humanos”.
Ele demora mais um pouco… “A América Latina precisa ter uma esquerda cujo compromisso democrático seja fundamental. Que permita compensar os danos causados à esquerda latino-americana pela situação na Venezuela e na Nicarágua”.
Ele acrescenta: “Mas, em política, não é indiferente o lado que você está. Em sua política orientada para a construção de uma esquerda latino-americana, o governo não teve o impulso que eu esperava”.
Os discursos de Gabriel Boric devem ser lidos: o do dia 11 de setembro, o da ONU e o da OEA, quando inaugurou a porta Salvador Allende. “A democracia é a única maneira de avançar em direção a uma sociedade mais justa e humana e é, portanto, um fim em si mesmo”, disse Boric. É “uma construção contínua, é uma história que nunca acaba”.
É difícil encontrar apoio na história para tais afirmações. A própria indefinição do conceito de “democracia” permite seus mais variados usos. Numa reunião recente da direita mais rancorosa, latino-americana e espanhola, na Argentina, foi dito que a “democracia” é o único sistema “capaz de garantir liberdade, progresso, justiça e sustentabilidade”.
Quase ao mesmo tempo, mais de 140 acadêmicos de 15 países se reuniam em Roma no dia 20 de setembro para um seminário sino-europeu sobre direitos humanos intitulado “Modernização e diversidade dos direitos humanos entre as civilizações”. Gabriel Boric fala “para as novas gerações, para aquelas que cresceram ou nasceram na democracia e que, portanto, a consideram como um dado da realidade. O que ele diz a elas? Diz que os problemas da democracia devem sempre ser resolvidos com mais democracia e nunca com menos. Que “os direitos humanos são uma base ética e uma escolha política inalienável”, que não têm cor política, que devem ser promovidos e defendidos em todo tempo e lugar, que sua condenação deve ser clara, “independentemente da cor do governo que os viola”. Ele garante que não pretende “distribuir receitas ou dar lições a ninguém”.
É claro que nada disso é possível. O que ele fará se os Estados Unidos não derem atenção às suas exigências para que acabem com as sanções ilegais contra países como Venezuela e Cuba (que foi submetida a medidas drásticas há mais de 60 anos, condenadas praticamente por unanimidade pela Assembleia Geral da ONU)? Ele pode fazer alguma coisa? Ele sairá pelo mundo repetindo sua condenação? Ele tem como alvo especial o governo da Nicarágua. Ele já tinha feito isso anteriormente com a Venezuela. Será que ele tratará igualmente as violações dos direitos humanos nos Estados Unidos (que nem sequer é membro dos organismos interamericanos de direitos humanos, como a Convenção ou a Corte) e aquelas que denuncia em outros países?
Nada disso faz sentido. Não é possível lidar com o tema dos direitos humanos (caso se pretenda avançar de alguma forma) sem considerar as circunstâncias políticas, o cenário histórico. Em outras palavras, transformar princípios em políticas ativas e inteligentes para avançar na solução dos problemas. Essa capacidade de aplicar conceitos gerais a situações concretas é uma qualidade rara e indispensável para qualquer político.
No final, Gabriel Boric acaba distribuindo receitas e dando lições. Acaba alinhado com o que há de mais conservador na América Latina, incapaz de resolver um desafio enfrentado por qualquer um que pretenda fazer política: transformar princípios gerais (sobre os quais um vasto espectro, de direita e de esquerda, está de acordo) em aplicação prática desses conceitos. Ele desistiu dessa tarefa. Um conceito geral é suficiente para ele, uma ideia que nos lembra a introdução de Fernando Atria: parecia que uma direita democrática existia. Mas isso acontecia porque eles tinham o controle, o poder de veto.
Rejeição pela direita
De acordo com essa visão, Gabriel Boric busca um alinhamento político que se mostrou impossível no Chile. Às suas tentativas de unidade, a direita respondeu lendo novamente no Congresso a polêmica resolução de 22 de agosto de 1973, na qual foram lançadas as bases para o golpe de setembro, desencadeando uma resposta irada dos parlamentares que representam, de alguma forma, o que pode ser considerado como forças próximas ao projeto de Allende. Em seu texto, a direita responsabiliza Salvador Allende pela ruptura institucional, como justificativa para o golpe.
Há apenas um mês, em agosto passado, o general Ricardo Martínez, ex-comandante do exército, publicou um texto modesto e polêmico de 140 páginas intitulado “Um exército de todos”, de notável importância política. Nele, ele redefine o papel do exército em cenários políticos turbulentos, incluindo o período da Unidade Popular. Nos últimos 50 anos, afirmou, “uma sucessão de eventos relevantes envolveu o exército”. Mas nenhum deles foi mais importante para a vida da nação e de seus cidadãos do que “o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, no qual o comandante-em-chefe do exército assumiu o cargo de presidente da junta de governo”.
O general Martínez reivindica o papel de dois de seus antecessores no comando do exército, ambos assassinados por conspirações civis e militares da direita: o general René Schneider (em cujo assassinato, assegura, participaram civis e militares em serviço ativo, com o apoio da CIA) e o general Carlos Prats, antecessor de Pinochet no comando do exército e que foi assassinado com sua esposa, em setembro de 1974, em Buenos Aires, onde se refugiaram após o golpe. Um crime “covarde, cruel e repudiável”, diz o general Martínez, “uma vergonha institucional”.
Não é possível me estender aqui sobre as reflexões de um livro cheio de lições, que me parece muito mais útil para a aplicação de uma política de direitos humanos ao caso do Chile do que a defesa reiterada de uma ideia, sem qualquer base numa análise concreta. Acho, por exemplo, que, se Gabriel Boric tivesse convidado o general Martínez para se juntar a ele no La Moneda, no 50º aniversário do golpe, ele teria enviado uma mensagem de unidade muito mais lúcida e poderosa aos cidadãos do que seu discurso reiterado de slogans.
“Houve uma tentativa de inverter as responsabilidades pela tragédia que todos nós vivemos durante os longos 17 anos mais sombrios de nossa história”, denunciou a senadora Allende em seu discurso. “Os verdadeiros responsáveis foram aqueles que quebraram a institucionalidade, bombardearam este palácio, perseguiram, torturaram, assassinaram e desapareceram milhares de chilenos”, disse ela.
Este cenário político deixou claro que o slogan “nunca mais” – repetido à exaustão – não passa de um desejo, que não dá aos chilenos qualquer orientação sobre como alcançá-lo. Só há dois caminhos: ou renuncia-se a qualquer mudança significativa no país para que essa direita não se sinta ameaçada; ou cria-se a força política necessária para promover essas mudanças, sem que outro golpe possa impedi-lo.
Mas o slogan, vazio de conteúdo político, contribui pouco – ou nada – para se alcançar o que se almeja. Assim como uma concepção vaga de democracia não deixa orientação alguma para uma população ansiosa por conquistá-la. Talvez tudo isso tenha muito a ver com as dificuldades de se comemorar os 50 anos do golpe de Estado, sem nenhum objetivo político – substituído pelos votos de felicidade do presidente – para mobilizar a população a retomar o caminho perdido.
Uma porta errada
A celebração do cinquentenário coincidiu com a Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York, para onde o presidente chileno viajou uma semana depois. Lá, ele reiterou seu discurso: os problemas da democracia são resolvidos com mais democracia; os direitos humanos não têm cor política… Ele criticou as sanções impostas por Washington a Cuba e à Venezuela. Não falou sobre as aplicadas contra a Nicarágua.
Mas o ato final do cinquentenário ainda estava pendente. Ele foi realizado na sede da OEA em Washington. Gabriel Boric observou, em sua página do “X”, que a OEA havia batizado sua porta principal em homenagem ao ex-presidente Salvador Allende, juntamente com 32 países que aderiram a essa decisão. E posou, apertando a mão do secretário-geral da OEA, sob uma bela tapeçaria com a imagem do Presidente Allende.
Cinquenta anos depois, a ideia de transformar a imagem de Allende numa porta na OEA me parece infeliz… É inevitável compará-la com outra porta – tão lembrada atualmente –, a de Morandé 80, pela qual o corpo do presidente Salvador Allende foi retirado. A imagem dessa porta (que Pinochet ordenou que fosse fechada) encheu os chilenos de lembranças – e de lições.
Que lição podemos aprender com a porta Salvador Allende da OEA, inaugurada por um secretário-geral comprometido com o golpe de Estado na Bolívia, numa instituição cujo desprestígio não poderia ser maior na América Latina? A OEA não merece essa porta, nem Allende esse escárnio.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves.