Por Marina Lacerda.
Eu não tinha ideia que os protestos eram diários. Fiquei sabendo disso na semana passada, quando cheguei em Santiago para passar férias, e vi o cenário de guerra. Hoje, 9 de fevereiro de 2020, completam-se 115 dias.
As manifestações não têm liderança nem convocatória. Diferente do que estamos acostumados no Brasil, não há carro de som, microfone, símbolos de partidos ou de outras organizações. As bandeiras que se usam são a mapuche, a whipala e uma do Chile toda preta. Procurei e não encontrei chamado nas redes digitais e na internet.
As pessoas simplesmente reúnem-se a cada anoitecer na Praça Baquedano – os protestos são maiores às sextas. A Avenida Providência, uma das artérias da cidade, é interrompida. Aliás, nessa região, “não há 10 centímetros de parede” livres de pichações e grafites com emblemas da esquerda e do feminismo. Por ali, praticamente todo o comércio fechou, incluindo um centro cultural importante, chamado Gabriela Mistral.
Leia mais: Crise constitucional em El Salvador
A maioria é de jovens. Às vezes – não todo dia – montam barricadas. Já chegam com algum pano (um lenço com dizeres progressistas ou uma camiseta) protegendo nariz e boca. Vários usam óculos. Alguns com pedras na mão e com canetas a laser para enfrentar os carabineiros.
Isso porque, tão logo a moçada se reúne, vêm os blindados e o roteiro se repete. A polícia joga gás lacrimogêneo. Joga a água ácida (o olho chega a arder por causa dela, mesmo de longe). Atira, inclusive nos olhos. Sai correndo com cassetetes. Prende gente.
Com exceção de tiros nos olhos, vi tudo isso acontecer. Queria ter tirado fotos melhores, mas nem meu celular é muito bom, nem dava para ficar dando moleza. Como meu hotel, por coincidência, era muito próximo aos eventos, não sei quantas vezes chegando ou saindo tive que correr para não ser atingida.
O epicentro é muito perto do Cerro San Cristóbal, de Bellavista e de Lastarria, todos pontos turísticos, de modo que até mesmo dentro de restaurantes mais arrumados você pode ser pego por uma onda de gás. Visitei Valparaíso, uma cidade portuária famosa por ter uma casa de Pablo Neruda. Lá tem tanto pó de gás lacrimogêneo na rua que, quando o vento bate, qualquer transeunte começa a lacrimejar e espirrar.
A ONU contabilizou, até novembro, 26 manifestantes mortos, 113 casos tortura, 24 casos de violência sexual, 3.400 feridos, mais de 9 mil presos, cerca de 360 lesões oculares (hoje fala-se em mais de 400), boa parte dessas pessoas cegadas ao menos em um olho.
É o tradicional uso arbitrário da força do Estado para defender o capital, e os chilenos sabem bem o motivo de estarem na rua.
Assim como no Brasil de 2013, o estopim das manifestações no Chile foi o aumento das passagens, as evasiones (pula-catraca) massivas e a repressão violenta. Mas, diferente do Brasil de 2013, o que se vê no país vizinho é um discurso bastante coerente e politizado.
Por que a revolta? As causas, dizem, são centradas nas críticas ao modelo neoliberal. Em primeiro lugar o sistema de pensões, administrado pela AFP, desenhado na ditadura de Pinochet… Aquele sistema de capitalização que o Paulo Guedes queria para nós.
Nesse regime, sua aposentadoria é uma aplicação financeira: só há seus próprios aportes, sem contribuição patronal. 70% (!!) do PIB do Chile está com as administradoras dos fundos de pensão. 80% das aposentadorias tem valor inferior ao salário mínimo. A média é de um terço do salário.
Outra causa que as pessoas apontam muito é o alto custo de vida, o segundo maior da América do Sul. Isso associado à precariedade dos serviços públicos, notadamente de saúde. “Estou aqui porque meu pai morreu no hospital público por falta de anticoagulante”. A educação, os jovens reclamam, é extremamente segregacionista.
A precariedade e a privatização dos serviços levam a um endividamento brutal das famílias. “Me formei em ciências políticas e tenho uma dívida de 30 milhões de pesos” (como 150 mil reais).
A desigualdade social lá é imensa, e esse é outro dos fatores que eles apontam como causa do “estallido social”. A desigualdade social no Brasil é bem pior, os serviços públicos aqui são muito precários também, mas aqui esses problemas não são associados ao modelo econômico; ao contrário, são associados ao significante vazio chamado corrupção.
A motorista de Uber me apontou o rio que corta a cidade, completamente seco: “essa é a consequência da agua privatizada”. Ou seja, por tudo se percebe o ambiente popular contrário ao neoliberalismo, ali, no seu berço de origem.
“O neoliberalismo nasce e morre aqui”, está escrito na parede do Museu Nacional de Belas Artes. Dentro do prédio de estilo neoclássico com detalhes de art nouveau estão expostas esculturas com as cabeças cortadas, como os manifestantes fizeram semanas antes nas praças.
Mas, apear das ruas em chamas e da linguagem forte, é difícil saber se o neoliberalismo realmente morrerá no Chile. O neoliberalismo tem uma capacidade imensa de se reinventar e de se reproduzir. Tem a via autoritária, de origem chilena, a via religiosa/familiar, de origem reaganista, a via com ares modernizantes de tantos liberais pelo mundo, e agora a dos governos ao estilo Bolsonaro.
No contexto chileno específico, o Presidente, Sebastián Piñera, se manteve no cargo. A “constituinte” anunciada não tem prazos e será, a princípio, formada pelo Congresso atual.
Por outro lado, se agora as manifestações estão mais tímidas, a promessa é de que em março voltam com toda força. No dia 8 de outubro Piñera disse que o Chile era um oásis em uma América Latina convulsionada. Dez dias depois as pessoas foram às ruas para lhe dizer que não. Não há oásis por aqui.
Marina Lacerda é doutora em ciência política pelo IESP/UERJ, autora do livro O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk, 2019).