‘Chacinas eram praticadas por grupos de extermínio. Agora são operações oficiais’

Grupo de defensores e advogados aponta indícios de execução e alterações nas cenas dos crimes na comunidade do Jacarezinho. Institutos de segurança pública repudiam a operação

Foto: Voz das Comunidades

O defensor público do Núcleo de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, Daniel Lozoya, chamou atenção durante coletiva de imprensa nesta quinta-feira (6) para a ausência de um mínimo de controle sobre o braço armado estatal que a chacina no Jacarezinho parece indicar. De acordo com o defensor, o “padrão histórico” de vingar a morte de um policial com um massacre em seguida é cada vez mais legitimado pelo próprio Estado.  “Antes nós tínhamos chacinas, como a da Baixada Fluminense ou a do Vigário Geral, praticadas por grupos de extermínio. Agora nós temos cada vez mais frequentes chacinas em operações oficiais, com aparato do Estado”, aponta.

Lozoya faz referência à noite do dia 31 de março de 2005, quando 29 pessoas foram assassinadas em Nova Iguaçu e no Morro do Cruzeiro, na região da Baixada, por um grupo de extermínio de policiais à paisana e armados. Antes do massacre no Jacarezinho entrar para a história como um dos mais letais do período democrático do Rio, com a morte de pelo menos 25 pessoas nesta quinta, a chacina da Baixada já ocupava o posto dramático.

Atrás somente de outro crime que tirou a vida de 21 moradores da Favela de Vigário Geral, também na zona Norte da cidade, em 29 de agosto de 1993. O episódio que ficou marcado como a chacina do Vigário, lembrado pelo defensor, foi provocado pela ação de outro grupo de extermínio, conhecido como Cavalos Corredores, formado por quase 40 policiais. Em um caso ou outro, de toda forma, era a mão armada do Estado por trás dos crimes. A diferença é que no massacre do Jacarezinho, a matança ocorreu à luz do dia sob uma operação da Polícia Civil.

Guerra do Estado

Batizada de “Exceptis”, a ação, segundo a corporação, visava coibir a atuação de uma organização criminosa de traficantes que atuava na comunidade. A polícia dizia ter indícios de que varejistas de droga estariam aliciando crianças e adolescentes para integrar a facção Comando Vermelho, que domina o território. Mas o que se viu em imagens que correram o mundo pelas redes sociais foram corpos ensanguentados, a maioria deles negros, tombados nas ruas e vielas da favela. Assim como o interior das casas dos moradores com pisos e paredes marcadas por sangue, tiros e projéteis espalhados. “Um cenário de guerra”, como descreveu à imprensa o advogado Joel Luiz Costa, cofundador e coordenador do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN).

“Não é um tiroteio, uma troca de tiros como estamos ‘acostumados’ no Rio de Janeiro. É pisar em cápsulas, ver canos arrombados pela bala com a água escorrendo, uma porta de comércio com 50 tiros. (…) É uma guerra do Estado contra a sua população”, denunciou.

Grupo de defensores e advogados flagrou casas arrombadas e denúncias de execuções por parte da polícia na frente de crianças. Foto: Twitter/Reprodução

Ao longo dessas histórias de assassinatos, contudo, o motivo também se preservou. A avaliação do advogado é que a operação também ocorreu para “vingar” a morte do policial civil André Leonardo de Mello Frias. Ele foi alvejado com um tiro na cabeça quando retirava uma barricada, ainda durante as primeiras horas da operação, logo no início da manhã. À tarde, em coletiva, a morte do policial foi reconhecida por porta-vozes da corporação como a “única execução” da operação mais letal da história do Rio. A polícia tentou justificar que as outras 24 vidas perdidas eram de criminosos ou suspeitos, mas não informou a relação deles com a operação.

Execuções na frente de crianças

“A polícia do Rio de Janeiro tem se conformado com um dos maiores agentes da letalidade violenta nesse estado. Mas é inadmissível que ela se comporte como uma grupo de extermínio oficial, bancado pelo dinheiro dos contribuintes do estado”, criticou o doutor em Sociologia e pesquisador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), Diogo Lyra, na coletiva.

Por volta das 13h, a Defensoria Pública, o IDPN e as comissões de Direitos Humanos da OAB-RJ e da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) foram até a favela ouvir os moradores que, desde cedo, enviavam pedidos de socorro, segundo a Ouvidoria da Defensoria. De acordo com o grupo, os relatos e cenas recolhidas confirmavam que os pedidos não eram em vão. “Duas casas me impactaram muito. Em uma das casas, a família foi retirada e morreram dois rapazes. Os cômodos estavam repletos de sangue. E também tinha massa encefálica espalhada”, apontou a defensora pública Maria Júlia Miranda.

Em uma das residências, os moradores revelaram que um rapaz foi executado pela polícia dentro do quarto de uma criança de oito anos, que estava coberto de sangue. O homem teria entrado no local, segundo descrevem, já ferido e desarmado, e foi seguido pelos policiais. Os moradores estavam na sala quando ouviram os disparos. “Inclusive, a coberta que ela (criança) usa estava na poça de sangue. Essa menina está completamente traumatizada”, mencionou Miranda.

Cenas dos crimes alteradas

“Chama atenção e precisamos apurar quantas pessoas chegaram mortas ao hospital. Se a gente tem 24 pessoas que chegaram mortas, isso é um indicativo de que pode ter ocorrido, sim, alteração de cena de crime”. O grupo também diz ter percebido indícios de alterações nas cenas dos crimes por conta “de marcas de corpos arrastados pelo chão e dos muitos relatos de agressão física”. “A gente tem prova de que um dos locais foi efetivamente desfeito. Que é justamente essa que ficou disseminada como a foto de um rapaz morto (sentado em uma cadeira com um dos dedos na boca). Temos agora a foto da cadeira vazia ensanguentada. É o mesmo local, podemos identificar que é a mesma parede e a mesma cadeira. É uma prova cabal que é o desfazimento da cena”, explica a defensora.

Durante a coletiva, a OAB-RJ cobrou uma perícia independente. “Não é possível que a própria Polícia Civil investigue a si mesma diante dessa matança e barbárie que aconteceu”, cobrou a vice-presidenta da comissão de Direitos Humanos do órgão, Nadine Borges.

O advogado do IDPN alertou, contudo, que o trabalho de investigação será um desafio. Justamente pelas mortes terem ocorrido em alguns casos no interior das casas. O que pode apagar provas de execução, uma vez que os moradores precisarão limpá-las para voltar a ter condições de permanecer no local. “Quando a polícia do Rio provoca morte dentro de residências que são o único local que a pessoa mora, que às vezes nem é própria, ela paga o aluguel, não tem como sair dali para outro canto”.

E as crianças aliciadas?

O grupo também questiona “quais são os indicadores de eficácia dessa operação”. “Eles falam que existiam crianças aliciadas. Mas até agora a gente não sabe que crianças são essas, se elas foram resgatadas. (…) O saldo dessa operação é de 24 civis mortos, um policial, interrupção de todos os serviços e uma comunidade aterrorizada”, lamentou Miranda. A deputada estadual Dani Monteiro (Psol), presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), também acusa a Polícia Civil de falta de transparência sobre a ligação dessas 24 pessoas que foram a óbito com a operação que até então tinha 21 suspeitos de formação de quadrilha.

“É óbvio que ainda que com delitos e crimes não se justificaria a morte dessas 24 pessoas. Mas é ainda mais chocante que a gente não tenha o relato preciso de qual era o objetivo da polícia e de que forma eles foram alcançados. Se fosse uma operação policial tática que já tivesse vislumbrado esses 21 suspeitos, a gente já sairia do processo com a identificação dessas pessoas. Várias delas seguem sem identificação”, ressaltou a deputada.

Afronta ao STF

O advogado Daniel Sarmento, responsável pela apresentação ao Supremo Tribunal Federal (STF), em nome do PSB, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como a ADPF das Favelas, que limitou operações policiais nas favelas e periferias do Rio para casos excepcionais, destacou que tem havido “um descumprimento sistemático pelas polícias do Rio de Janeiro do que foi decidido pelo Plenário do Supremo”.

A decisão, lembra o advogado, “afirmou não só o caráter excepcional dessas operações policiais. Mas também que elas deveriam ser cercadas de uma série de cautelas e cuidados adicionais. Visando à proteção dos direitos humanos dessas populações. Uma operação policial em que além de um policial, 24 moradores são mortos, no mínimo as cautelas não foram cumpridas. Isso se não houver execução extrajudicial que é algo muito mais grave. É um claro descumprimento das decisões do Supremo”, expôs.

Sarmento também lembrou da responsabilidade do Ministério Público do Rio de Janeiro, que tem na Constituição o papel de fiscalização das polícias e pela ADPF precisa ser comunicado sobre as operações em meio à pandemia. A avaliação do advogado é que a promotoria vem exercendo esse controle de forma burocrática. Em nota à RBA, na noite desta quinta, o MP-RJ informou que “a operação foi comunicada à instituição logo após seu início. Sendo recebida às 9h”.

A responsabilidade do MP

“A Polícia Civil apontou a extrema violência imposta pela organização criminosa como elemento ensejador da urgência e excepcionalidade para realização da operação”, cita. O documento segue com o MP-RJ concluindo que irá apurar o caso “em observância aos pressupostos de autonomia exigidos para o caso, de extrema e reconhecida gravidade”. O advogado do STF reiterou, porém, que deve despachar uma petição ao Supremo, pedindo para que se defina de maneira precisa o conceito de excepcionalidade. Sarmento também irá requerer medidas para apurar o descumprimento da decisão.

“É sistemática e seletiva a ação homicida da polícia. Bem como o aval dado pelas instituições do sistema de justiça criminal a esse tipo de ação. Portanto, embora estejamos falando do pior caso de chacina em operação avalizada pelas autoridades públicas, ao mesmo tempo estamos falando de um padrão que perpassa toda a história democrática do Rio de Janeiro e que pode retroceder ainda mais no passado da nossa história. A ADPF existe justamente porque essas operações da polícia são um padrão”, finalizou Diogo Lyra.

O repúdio

Entidades de direitos humanos e institutos de segurança pública também vieram à público ainda durante o fim de tarde desta quinta repudiar a operação policial no Jacarezinho. A ONG Human Rights Watch cobrou investigação minuciosa por parte do Ministério Público em “respeito à legislação e protocolos do Brasil e aos parâmetros internacionais”. “Apenas no primeiro trimestre deste ano, a polícia do Rio de Janeiro matou 453 pessoas e ao menos 4 policiais morreram em ações policiais, mesmo com uma decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe operações em comunidades durante a pandemia de Covid-19, exceto em ‘hipóteses absolutamente excepcionais’”, contestou em nota.

O Instituto Igarapé também advertiu que “esse tipo de operação não desarticula grupos criminais, apenas causa dor e provoca desconfiança. O impacto social desse caso ainda é inestimável, mas certamente vai durar anos”. A organização Conectas – Direitos Humanos prestou “total solidariedade às vítimas desta chacina e seus familiares, bem como às milhares de famílias obrigadas a conviver com um clima de guerra e medo promovido pelo estado. Nos causa repúdio a justificativa da Polícia Civil de que as pessoas mortas seriam ‘suspeitas’, em uma evidente apologia a execuções extrajudiciais”, contestou a ONG.

A diretora executiva da Anistia Internacional do Brasil, Jurema Werneck, também lamentou “que tenhamos esse número absurdo de mortes, oriundas de uma operação policial. E, mais uma vez, tendo uma favela como o local escolhido para esse massacre”. Representantes da Polícia Civil preferiram, porém, criticar o que chamam de “ativismo policial”, que segundo a corporação estaria atrapalhando o trabalho da polícia.

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