Cerco de pistoleiros, tiros e ameaças: “Não andamos mais livres”, dizem Pataxós no Sul da Bahia

Com vídeos, relatos e carta pública, comunidades da Terra Indígena Barra Velha denunciam estar cercados e sob ataque

Por Gabriela Moncau, para Brasil de Fato.
Na mata atlântica, indígenas se protegem de tiros disparados por pistoleiros na Terra Indígena Barra Velha, no município de Porto Seguro (BA) – Reprodução

Guerreiros Pataxó de bruços na mata. Ao fundo, muitos disparos. “Tiro para todo lado”, descreve a indígena que está gravando. O vídeo, circulando nas redes sociais, retrata o cerco de pistoleiros vivido pelas comunidades Pataxó das aldeias Boca da Mata e Córrego da Cassiana, da Terra Indígena (TI) Barra Velha, no município de Porto Seguro (BA).

“É uma retaliação do agrobanditismo, conduzida por proprietários de fazendas vizinhas a TI”, denuncia a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

“Não andamos mais livres pelo território”, relata Cleidiane Ponçada, moradora da TI Barra Velha, em carta pública. “As entradas e estradas das comunidades estão sendo fiscalizadas por pistoleiros fortemente armados”, expõe. O único acesso são as fazendas.

“Os órgãos públicos como Funai já não existem e há muito tempo deixaram de dar apoio às comunidades indígenas”, relata Ponçada. “Precisamos e pedimos intervenção, pois estamos vendo a hora de acontecer um massacre.”

Segundo um cacique da TI Barra Velha ouvido pelo Brasil de Fato, cujo nome será mantido no anonimato, entre os pistoleiros agindo contra os indígenas há policiais militares “fazendo bico depois do trabalho”.

“A gente vê a vergonha desse país chamado Brasil. Esses indivíduos ganham do Estado para proteger as pessoas e fazem esse tipo de coisa”, afirma o cacique. Segundo ele, está havendo intimidação na entrada das aldeias também por policiais fardados, da Caema, uma unidade especializada da Polícia Militar (PM) do sul da Bahia. Procurada pelo Brasil de Fato, a Secretaria de Segurança Pública do Estado não se manifestou.

Fazendeiros na BA se inspiram em massacre no MS 

A tensão na região aumentou desde que, em 25 de junho, cerca de 180 Pataxó fizeram uma retomada na Fazenda Brasília, área que está na fronteira do território demarcado e que é reivindicada pelos indígenas. O fazendeiro proprietário do terreno se chama Pedro Alcântara Costa.

Nesse mesmo dia, distante dali, no Mato Grosso do Sul, acontecia o que ficou conhecido como o Massacre de Gwapo’y. Na ocasião, a PM invadiu, com helicóptero e tiros letais, uma retomada que o povo Guarani e Kaiowá fez em um território que está no nome da Fazenda Borda da Mata, da família Torelli. Ao menos 15 pessoas se feriram e o indígena Vitor Fernandes foi assassinado.

Fazendeiros do sul da Bahia, incomodados com a ação dos Pataxó na Fazenda Brasília, se inspiraram. E agiram logo no dia seguinte, 26 de junho.

Um vídeo que circulou nas redes sociais mostra grandes caminhonetes em comboio numa estrada de terra. “Hoje está acontecendo uma coisa muito importante”, explica o homem que está filmando. “Está se juntando os agropecuaristas do sul da Bahia, entendeu, todos os proprietários rurais se juntando para tirar da Fazenda Brasília os falsos índios, que não são índios.”

“Está se juntando todo mundo para fazer o que estão fazendo no Mato Grosso”, diz ele, provavelmente se referindo ao Mato Grosso do Sul. “E daqui para frente vai ser assim: invadiu a propriedade, vai cair para cima”, avisa.

Em ofício ao governador da Bahia, Rui Costa (PT), a Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat) relatou o episódio e pediu providências.

De acordo com o documento, o comboio foi composto “por cerca de 200 fazendeiros, pistoleiros, milicianos e supostos policiais militares, portando arma de fogo de grosso calibre (pistolas 0.40, fuzis e escopetas 12), armamento de uso restrito das forças armadas”.

“Os indivíduos, em sua maioria, estavam encapuzados com toca ninja, um deles se identificou como proprietário da Fazenda Brasília e outro como policial da Caema”, denuncia a Finpat.

Uma indígena Pataxó da Aldeia Córrego da Cassiana, também ouvida sob anonimato, estava lá. “Se juntaram mais de 50 caminhonetes para fazer esse ataque. Foi aquela tensão. Os parentes falaram ‘nós estamos na paz, se vocês quiserem matar a gente, não podemos fazer nada'”, conta.

“A gente só com borduna e arco. E Deus na frente, né? E eles com toda a maldade, querendo fazer ali um massacre. Foi Deus que não deixou que acontecesse”, diz ela. Sem ordem judicial, os Pataxó foram retirados da Fazenda Brasília. Mas seguem, desde então, sendo atacados diariamente.

Segundo outra Pataxó disse ao Brasil de Fato, a região, usada para a produção de café, cacau e eucalipto, está sofrendo um avanço do desmatamento. “Aí a gente entrou [na Fazenda] para dar esse apoio à nossa mãe natureza. Foi na hora que viram aquilo como ameaça”, expõe.

Disparos diários

Ao longo desses quase dois meses, os indígenas das aldeias Cassiana e Boca da Mata afirmam escutar, diariamente, tiros em direção às comunidades.

“Estamos precisando de apoio e de doação de alimentos. A situação agora é de medo. A gente não dorme direito e se reveza. Um grupo dorme com as crianças e os idosos em um local reservado, longe das estradas. E o outro fica acordado observando o que vai acontecer”, descreve uma moradora da aldeia Cassiana.

A Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do governo do Estado da Bahia afirmou estar “acompanhando de perto os acontecimentos” e ter solicitado investigação.

Em nota, o órgão anunciou estar trabalhando para instalar uma “sala de situação”, composta por diferentes áreas do governo, para “avaliar a situação e executar as medidas necessárias”.  A secretaria informou, ainda, ter solicitado reforço policial no território e que “está ao lado dos povos indígenas da Bahia”.

Procurada, a Superintendência Regional da Polícia Federal afirmou que um inquérito a respeito da situação foi aberto, que policiais fizeram uma incursão para colher depoimentos de envolvidos, mas que não pode dar mais informações pois a investigação corre em sigilo.

A Funai foi contatada por e-mail e telefone, mas não retornou até o fechamento desta matéria. Caso o órgão envie um posicionamento, o texto será atualizado.

O procurador José Gladston afirmou em nota pública, depois de visita à TI Barra Velha em 10 de julho, que há procedimentos em tramitação no Ministério Público Federal para apurar “ilícitos”, “inclusive possíveis formação de milícia, ameaças e racismo”.

Enquanto as instâncias estatais não agem, a vigília e a proteção são feitas por meio da auto-organização indígena e, como conta uma liderança Pataxó, também pelas forças espirituais. “Estamos nos defendendo com nossos encantados na frente e a nossa força das matas e das águas.”

Edição: Nicolau Soares

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