Por Lauro Mattei.*
O objetivo desse artigo é fazer uma breve reflexão sobre documento produzido pela PROAFE-UFSC a respeito de um evento a ser realizado na universidade no dia 03.04.2024. Antes, porém, gostaria de recordar uma situação relativamente semelhante (um caso individual e não sobre um povo) que ocorreu em 2013 quando o PET de Letras (CCE) – com a temática “quem tem direito ao dizer” – convidou Cesare Battisti para proferir uma palestra sobre experiências do autor no exílio no evento que ocorreria entre os dias 06 e 08.11.2013. A atividade foi aprovada academicamente e encaminhada pela direção do CCE à PRAE para ser viabilizada financeiramente. Como Pró-Reitor na época, coube-me apenas aprovar a demanda sem entrar no mérito se o palestrante era terrorista, processado, condenado, etc. por se tratar de uma atividade acadêmica chancelada pela direção da unidade. Entendi naquele momento que numa universidade que se autodenomina plural e democrática não caberia ao gestor de plantão fazer qualquer juízo de valor sobre a atividade e menos ainda sobre o palestrante. O fato é que alguns setores extremistas existentes na UFSC protestaram contra a organização do evento, inclusive queimando bandeiras de partidos de esquerda em frente à Reitoria. Após muita polêmica o evento acabou sendo cancelado pela comissão organizadora num processo que contou, inclusive, com interferências de autoridades da esfera federal1.
O evento em discussão atualmente na UFSC diz respeito ao lançamento do livro do jornalista Breno Altman programado para ocorrer no dia 03.04.2024, às 19h no auditório do Centro de Eventos, com o título “contra o sionismo: breve história de uma doutrina colonial e racista”. Também farão parte dos debates o cartunista Carlos Latuff e o ex-embaixador da Palestina no México, senhor Fawszi El-Mashini.
A PROAFE – Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade – produziu um “parecer técnico” sobre uma denúncia relativa ao apoio institucional dado ao evento por parte da Editora da UFSC com o “objetivo de alertar a Administração Central quanto a conduta anterior desses conferencistas que poderão em suas intervenções trazerem novamente elementos de xenofobia, antissemitismo e discurso de ódio”. Registramos esta passagem porque ela é central para se entender o conteúdo polêmico e grave do parecer, conforme mostraremos na sequência.
1-A DESQUALIFICAÇÃO DO AUTOR DO LIVRO E DE UM PALESTRANTE
Chama muito atenção que a nota assinada pela Pró-Reitora da PROAFE e mais uma professora não inicia discutindo o evento e seu conteúdo, mas com informações de processos jurídicos em curso movidos contra o autor do livro, inclusive taxando-o de disseminador de discursos de ódio, xenofobia e antissemitismo. Todavia, as autoras se esqueceram de mencionar que a principal ação contra o autor foi movida pela Confederação Israelita do Brasil e que – seguindo os trâmites processuais – o assunto se encontra pendente na justiça. Mais adiante ficarão claras as razões dessa atitude adotada pelas pareceristas desde o princípio de suas argumentações.
Da mesma forma, na sequência procuram desqualificar outro participante – o cartunista Carlos Latuff – ao endossar acriticamente o fato de que o referido cartunista está sendo classificado como a terceira pessoa mais antissemita do mundo, segundo informações divulgadas pelo jornal inglês The Guardian com base nas informações fornecidas pela ONG Simon Wiesenthal, uma dentre tantas outras operadoras em prol do movimento sionista.
As duas passagens acima, na verdade revelam a confusão conceitual estabelecida pelas autoras, uma vez que em momento algum os conferencistas estão propensos a tratar do tema do antissemitismo, mas sim do sionismo. Este é um movimento político que surgiu ainda no século XIX na Europa Central e Oriental e logo foi associado à colonização da Palestina porque – segundo os sionistas – a Palestina foi ocupada por estranhos. Também é chamado de nacionalismo judaico porque propõe o retorno de todos os judeus ao atual território em disputa, com a existência de um único Estado Independente e Soberano sob o domínio dos judeus. Em síntese, pode-se dizer que o sionismo é uma ideologia política supremacista – e até mesmo racista – que advoga todos os direitos ao povo judeu. Portanto, no cenário atual ser contra o sionismo é ser contra o genocídio promovido pelas forças supremacistas. Já o antissemitismo é um comportamento hostil ao povo judeu. Nesta passagem fica explícita a falta de conhecimento mínimo das duas pareceristas sobre o que estará em discussão no debate programado na UFSC.
2-SOBRE O EVENTO REALIZADO EM NOVEMBRO/23
Neste caso, as autoras informaram que o mesmo evento em pauta já foi realizado na UFSC e que ele causou desconforto em parte de nossa comunidade acadêmica, com destaque negativo na mídia e críticas por parte da Associação Israelita de Santa Catarina. Ora, é de se esperar que nem todos os eventos acadêmicos causem conforto em toda a comunidade da UFSC, o que é salutar pois revela a existência efetiva da pluralidade do pensamento. Quanto às repercussões externas, as autoras optaram por um lado, uma vez que não se preocuparam em saber qual foi a opinião da organização do povo palestino sobre o evento. Obviamente que essa resposta não interessava, ficando demonstrado nessa passagem a inexistência de um posicionamento isento.
Outro ponto relevante a ser considerado nesse debate é que em novembro/23 a mesma Editora da UFSC apoiou o evento e não se viu nenhuma manifestação em desfavor dessa ação, além do fato da própria associação dos professores da UFSC (APUFSC) ter dado apoio logístico à realização do evento. Então, a questão é: por que agora está se sugerindo a retirada do apoio institucional a um evento que recentemente foi realizado com sucesso? Ou será que o assunto não é relevante na pauta de uma universidade que se pretende conectada com os temas globais atuais?
Por fim, é de se estranhar o juízo de valor feito em relação ao evento anterior, o qual não guarda nenhuma relação com o que de fato ocorreu naquela noite de novembro/23. Portanto, a afirmação das duas parecerista neste ponto soa como uma desqualificação de uma atividade acadêmica bem sucedida.
3-SOBRE O EVENTO A SER REALIZADO EM ABRIL/24
Novamente as pareceristas incorrem na propagação de juízo de valor ao afirmarem que os conferencistas poderão trazer novamente elementos de xenofobia, antissemitismo e discurso de ódio. Considero essa passagem gravíssima, uma vez que o uso da palavra novamente pressupõe que no ano anterior este tenha sido o comportamento dos conferencistas.
É pouco provável que todos aqueles que efetivamente participaram do evento de 2023 fariam a mesma afirmação. Isso nos permite supor que para fazer tais comentários as autoras tenham se baseado em opiniões alheias – e até mesmo contrárias ao assunto – uma vez que quem esteve presente não pode corroborar com o que está sendo afirmado.
4-SOBRE XENOFOBIA E ANTISSEMITISMO
Assentadas no conteúdo da Resolução 175/CUn/2022, especialmente do artigo 23, as pareceristas comentem equívocos elementares por estarem eivados de uma concepção pré-determinada para tentar enquadrar o evento em alguns parágrafos do referido artigo. Por exemplo, todos aqueles que acompanharam o evento realizado em 2023 sabem que em momento algum houve postura xenofóbica e discurso de ódio por parte dos conferencistas. Além disso, fazer menção ao nazismo e ao antissemitismo e procurar relacioná-los ao conteúdo do evento a ser realizado em 03.04.24 revela, por parte das pareceristas, um total desconhecimento do assunto, ao mesmo tempo em que a argumentação utilizada anda de braços dados com a visão geral que procura tratar os críticos do sionismo como se antissemitas fossem.
À luz do conteúdo anterior, as pareceristas ressaltam que, embora as condutas dos conferencistas (quais?) sejam de pessoas sem vínculos com a UFSC, as mesmas se enquandram na política de enfrentamento ao racismo institucional. Com isso, recomendam à Administração Central a retirada do apoio da Editora da UFSC ao evento, devendo o Gabinete do Reitor avaliar os riscos políticos e de imagem da universidade.
5-A CENSURA SENDO CENSURA
Ao final do texto, e assentando-se em um discurso vazio de que a UFSC é democrática, plural, ética, saudável e de respeito à diversidade, as pareceristas fazem uma ginástica para afirmar que não estão censurando o evento, ao mesmo tempo em que evocam a ideia de liberdade de expressão, porém com o qualificativo (sic) desde que a mesma não seja preconceituosa e discriminatória.
Em síntese, qualquer pessoa minimamente esclarecida que ler com atenção o conteúdo geral do parecer emitido pela PROAFE perceberá que o mesmo partiu de uma intencionalidade pré-estabelecida, externou um conjunto questionável de juízos de valor e entregou de forma vergonhosa aquilo que, na perspectiva dos demandantes, era o mais adequado para o momento de disputa política interna na atual gestão.
Por fim, é importante resgatar que ao longo do parecer da PROAFE foi externada a preocupação com os riscos políticos e de imagem da universidade. Hoje podemos dizer tranquilamente que, tanto o parecer em apreço como as diversas ações decorrentes dele, imputaram um enorme dano à imagem da UFSC. Tal afirmação é comprovada pela nota da Federação Árabe Palestina do Brasil que foi divulgada no dia 30.03.2023 e que conta atualmente com o apoio de mais de oitenta entidades acadêmicas, sindicais e políticas de todo o país.
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Escrevi essas considerações no dia 31.03.2024, data em que recordamos 60 anos da implantação da mais terrível ditadura militar no país. Nesse regime, além de métodos repressivos, torturas e mortes, a censura funcionava como instrumento poderoso de dominação dos detentores do poder político. Neste sentido, lamento muito que nos dias atuais alguns segmentos que se autoproclamam democratas, plurais e defensores das minorias oprimidas lancem mão desse mesmo instrumento da ditadura para fazer valer seus interesses e seus posicionamentos políticos.
Minha solidariedade ao Povo Palestino, ao jornalista Breno Altman e ao cartunista Carlos Latuff.
1 Por um bom tempo respondi a um processo movido por um advogado catarinense que exigiu que eu ressarcisse o dinheiro público gasto com o evento. Todavia, como a atividade foi cancelada, e eu comprovei que não houve pagamento de diária de hotel e a passagem não utilizada foi ressarcida pela companhia aérea, o sujeito desistiu do processo.
* Lauro Mattei é Professor Titular no curso de Graduação em Economia e no Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Foi Pró-Reitor da UFSC entre 2012-2014. Atualmente é coordenador geral do NECAT-UFSC. Também é pesquisador associado do CPDA/UFRRJ. Email: [email protected]
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