Tomando-se por base a história evolutiva de outros tipos de coronavírus, a tendência é que o vírus Sars-CoV-2 venha a perder o potencial de causar mortes e problemas graves de saúde em massa. Essa é a visão da pesquisadora Maria Carolina Sabbaga, do Laboratório de Ciclo Celular do Instituto Butantan, para os possíveis desdobramentos da pandemia de covid-19.
Sabbaga apresentou suas análises durante o painel “A pandemia hoje”, realizado pelo Comitê Científico da Unesp, na última quarta-feira (9). A concretização desse cenário, porém, está condicionada à manutenção de uma boa cobertura vacinal junto à população, bem como ao não surgimento de novas variantes do vírus que possam despertar a preocupação das autoridades médicas.
O painel online, que contou também com as participações dos professores da Unesp Carlos Magno Fortaleza e Rejane Grotto, integrantes do Comitê Científico, ocorreu no mesmo dia em que a Fiocruz divulgou um balanço dos dois anos de pandemia fazendo menção à possibilidade de transição da caracterização da covid-19 de pandemia para endemia, estágio em que a doença obedece a um padrão estável e mais controlável. Esta perspectiva “otimista” vem ganhando força mundo afora.
“Enquanto houver transmissão elevada do vírus e ambientes de pessoas não vacinadas, o Sars-CoV-2 pode seguir sofrendo mutações. E eventualmente, a cada vez que ocorre uma variação, pode surgir uma variante mais perigosa”, explica Sabbaga, que integra a equipe da rede estadual de alertas de variantes do Sars-CoV-2 coordenada pelo Butantan.
“Acho que é possível fazer este comparação entre o Sars-CoV-2 e outros coronavírus. O que aconteceu, ao longo do processo de evolução, é que os vírus vão perdendo a potência, no sentido de causar mortes e problemas mais graves. A tendência é os vírus irem se adaptando mesmo”, disse a pesquisadora.
Ao longo desta semana, países europeus como França, Espanha e Reino Unido anunciaram que passaram a tratar a covid-19 como endemia. O Brasil, entretanto, parece que só agora ensaia deixar para trás o pico de casos e mortes causados pela variante ômicron. Na quarta, dia 9, foram registrados mais de 1.200 óbitos em 24 horas, reflexo da alta das internações ocorrida, principalmente, em janeiro.
A ômicron foi identificada pela primeira vez no país em dezembro e, em um intervalo curto, tornou-se predominante, elevando o número de casos e de mortes. Durante a live, Sabbaga afirmou que, na última semana, 99% das amostras sequenciadas pela rede de alertas de variantes eram da variante ômicron. A cada semana, os laboratórios ligados à rede sequenciam, em média, 1.500 amostras. “A ômicron é bastante diferente das demais variantes do Sars-CoV-2. Ela tem muitas mutações, e é a variante que circula no estado de São Paulo”, disse.
O epidemiologista Carlos Magno Fortaleza, professor da Faculdade de Medicina da Unesp, também discorreu sobre a possibilidade de que a covid-19 possa ser tratada como doença endêmica, e não mais caracterizada como uma pandemia.
“Não é plausível que a covid desapareça de um momento para o outro”, disse Fortaleza. “É possível que, assim como ocorreu com a influenza e o H1N1, continuemos a ver, por anos a fio, algumas internações e até casos graves causados pela covid. Mas estes casos não seriam na quantidade, nem com a carga de doença, que estamos experimentando desde 2020.”
Vacinação e medidas protetivas
Ao longo do painel, os pesquisadores combinaram as reflexões mais otimistas com diversos alertas e esclarecimentos quanto à segurança e à eficácia das vacinas, e reforçaram a necessidade de manutenção das medidas protetivas não farmacológicas, como o uso de máscaras em espaços públicos e durante os encontros presenciais.
“Se mantivermos esse nível de disseminação, ou seja, se as pessoas deixarem esse vírus se multiplicar nesse nível que está acontecendo, é possível que se tenha seleção (do Sars-CoV-2) por pressão seletiva natural, como acontece com qualquer outro vírus. Esta é uma preocupação real”, afirmou a professora Rejane Grotto. Ela também alertou para a ameaça da transmissão da covid-19 por pessoas assintomáticas, que deixam de lado as medidas protetivas recomendadas. “É preciso dar importância a isso quando a gente discute a questão do comportamento social.”
Maria Carolina Sabbaga também reforçou que, quanto maior for a taxa de disseminação da covid-19, maior a probabilidade de que ocorram mutações do Sars-CoV-2. Consequentemente, maior é a chance de que surja uma nova variante de preocupação. “Se não queremos que surjam variantes novas, temos que preservar as medidas não farmacêuticas de proteção”, disse ela. “Tudo leva a crer que os casos vão diminuir, e que vamos entrar numa situação bem melhor. Mas é preciso olharmos sempre com cuidado.”
Segundo a pesquisadora do Butantan, a subvariante da ômicron BA.2, que é mais transmissível em um ambiente sem cobertura vacinal, teve até o momento apenas três casos identificados no estado de São Paulo, por meio do trabalho de vigilância genômica realizada pela rede de alertas de variantes. Essa constatação pode indicar que a imunização da população paulista esteja impedindo a disseminação desta subvariante. “Vamos ver o que vem pela frente, mas parece que ela (BA.2) não está muito agressiva”, disse.
Durante a live, os pesquisadores também trataram da vacinação em crianças, dirimindo dúvidas e trazendo esclarecimentos. O público infantil representa cerca de 10% da população brasileira, e por isso o início da imunização em crianças também deve contribuir para ampliar a cobertura vacinal no país.
Assista à íntegra do painel online “A pandemia hoje: o que você precisa saber”, que fez parte do programa Unesp em Debate:
Etapas da pandemia
A Fiocruz apresentou uma perspectiva da evolução da pandemia, dividida em fases, desde a descoberta do vírus até os dias atuais, com base em estudos e sintetiza a dimensão das perdas, totalizando 388 milhões de casos no mundo e 26 milhões no Brasil (6,7% do total), com 5,71 milhões de óbitos no planeta e mais de 630 mil no país (11% do total).
Fases da pandemia de Covid-19
Expansão da transmissão das capitais para as cidades menores (fevereiro a maio de 2020)
O aumento de casos de SRAG com a entrada do vírus Sars-CoV-2 no país foi observado nas primeiras semanas epidemiológicas de 2020, por meio do Infogripe, sendo mais frequentes em indivíduos acima de 60 anos. Nas primeiras semanas de março ocorreu a expansão da transmissão de capitais e grandes cidades em direção a áreas periféricas, pequenas cidades e zonas rurais, num movimento gradual de interiorização. Esse processo foi mais lento que o verificado em outros países, iniciando em fevereiro e perdurando até maio de 2020.
Nessa fase observavam-se grandes filas de espera para internação em UTI e elevada ocorrência de óbitos por falta de acesso, ou acesso tardio aos cuidados de alta complexidade, mesmo após uma expansão acentuada no número de leitos de UTI SRAG/Covid-19, incluindo a abertura de diversos hospitais de campanha no país. Entre os meses de abril e maio, em Manaus, único município do Amazonas com capacidade para oferta de cuidados hospitalares de alta complexidade, ocorreu o primeiro grave colapso do sistema de saúde no país.
Primeira onda e sincronização da transmissão no país (junho a agosto de 2020)
Na fase, a queda contínua das medidas de distanciamento físico foi seguida do crescimento gradual de casos, positividade de testes, internações e óbitos que estabilizaram em um patamar elevado. Este foi um período caracterizado especialmente por um alto patamar na mortalidade, com cerca de mil óbitos diários. No período também começou a ser observado o aumento do número de casos e de óbitos em gestantes, um forte indicativo que a Covid-19 não era apenas a causa direta da morte, mas também causa indireta, por criar empecilhos para a assistência ao ciclo gravídico-puerperal.
Período de transição entre primeira e segunda ondas (setembro a novembro de 2020)
No período houve relativa redução do número de casos e de óbitos, com governos estaduais e municipais adotando medidas isoladas de distanciamento físico e social e uso de máscaras, sem que se dessem de modo articulado nacionalmente e regionalmente. Em novembro, os casos voltaram a crescer e o maior impacto nas taxas de ocupação de leitos de UTI se concentraram nas regiões Sul e Centro-Oeste e novamente no Amazonas.
Embora com variações espaciais, com alguns estados e municípios apresentando, em determinados períodos, maior número de casos, internações, taxas de ocupação de leitos UTI e óbitos, na maior parte de 2020 a média de idade das internações em UTI esteve acima de 60 anos e a idade média dos óbitos sempre esteve acima deste patamar, impactando principalmente as pessoas com mais idade, além daquelas com comorbidades. Este fato foi decisivo para que esses grupos fossem classificados como prioritários para a aplicação da primeira dose da vacina contra Covid-19, logo que fosse aprovada.
Segunda onda (dezembro de 2020 a junho de 2021)
Uma segunda onda de transmissão iniciou no verão e coincidiu com o período de festas de fim de ano e férias, acompanhada da flexibilização das medidas de restrição à mobilidade, principalmente em dezembro de 2020. Nesse contexto ocorreu rápido crescimento e predominância da variante Gama, atingindo seu ápice em abril de 2021, com valores muito altos de casos e óbitos de março a junho, alcançando picos de até 3 mil óbitos por dia (pela média móvel). Esta fase foi marcada pelo colapso do sistema de saúde e pela ocorrência de crises sanitárias localizadas, combinando deficiência de equipamentos, de insumos para UTI e esgotamento da força de trabalho da saúde.
Em 17 de janeiro de 2021 se iniciou a campanha de vacinação contra a Covid-19 no Brasil, porém com um pequeno número de doses (6,2 milhões), chegando a março com volume de doses suficientes para acelerar o processo de vacinação (27,5 milhões). O avanço, contudo, não impediu o rápido crescimento e grande número de casos, internações e óbitos, bem como a crise e o colapso do sistema de saúde, entre março e junho de 2020.
Os impactos positivos da campanha da vacinação (julho a novembro de 2021)
Foi um período de redução do número de casos, casos graves e mortalidade. Nesse período, ao mesmo tempo em que a variante Delta crescia e se tornava predominante, pôde-se verificar a efetividade da vacinação na redução da transmissão e, especialmente, da gravidade dos casos de Covid-19, resultando na queda das taxas de ocupação de leitos de UTI Covid-19 para adultos. A queda da taxa de positividade de testes também apontou a menor transmissão do vírus Sars-CoV-2, como efeito da vacinação, que alcançava 20% da população com duas doses. Em setembro, com 40% da população elegível vacinada, o Brasil alcançou uma média diária de 500 óbitos. E em novembro, já com 60% da população vacinada, a média de óbitos diários estava em torno de 250.
Terceira onda (dezembro de 2021 a janeiro de 2022)
Uma nova onda de transmissão foi iniciada em dezembro de 2021, coincidindo com o período de festas, férias, relaxamento de medidas de restrição à mobilidade e a introdução no país da variante Ômicron. Essa fase também foi marcada por uma epidemia de vírus influenza A em vários municípios, o que levou ao aumento de casos de SRAG, assim como várias semanas de interrupção na recepção de dados da vigilância, comprometendo o monitoramento e análise da evolução da pandemia.
Segundo os pesquisadores do Observatório Covid-19 Fiocruz o Brasil ainda se encontra nesta fase e há forte especulação sobre que momento da pandemia o país vive e se está caminhando para o fim. “Em que pese o fato de a vacinação ter impedido que as internações e óbitos subam em igual velocidade aos casos, o aumento súbito de doentes faz crescer, inevitavelmente, a demanda por serviços de saúde, com impactos nas taxas de ocupação de leitos de UTI”, apontam.
O cenário indica ocorrência de internações maior entre idosos, quando comparadas aos adultos. No entanto, as internações entre crianças crescem em níveis preocupantes. Por se tratar do último grupo em que a vacinação foi iniciada, já em 2022, as crianças representam hoje o grupo com maior vulnerabilidade.
Com informações do Jornal da Unesp e da Fiocruz
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