Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info.
“Os irmãos sejam unidos porque esta é a lei primeira. Tenham união verdadeira em qualquer tempo e a qualquer hora, porque se lutam entre si, os devoram os de fora.”
José Hernández, “El gaucho Martín Fierro”
Usar, por milésima vez, a famosa frase que o grande poeta argentino José Hernández adjudicou ao épico personagem, Martín Fierro, na obra publicada nos muito idos de 1872, não está demais no dia de hoje, pois nada define melhor o sentimento que vive a CELAC – Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (ver abaixo a lista com os países que a compõem), com o retorno do Brasil ao seu lugar de liderança regional, depois da saga fascista que atormentou quase toda a região e que ainda subsiste em alguns países.
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Fundada em 23 de fevereiro de 2010, no México, para ampliar e melhorar a experiência do chamado Grupo do Rio e da Comunidade do Caribe, frente aos países centrais, a CELAC nasceu quase 10 meses depois do primeiro assalto à democracia através do golpe combinado, judicial, parlamentar e midiático, que teve como primeira vítima ao ex-presidente hondurenho José Manuel Zelaya Rosales, companheiro da atual presidenta progressista de Honduras, Xiomara Castro.
Os golpes clássicos com militares, como na Bolívia e agora no Peru, os lawfares modelo Lava Jato, com sem golpe explícito incluído (Paraguai, Brasil, Equador, Argentina), o uso descarado da OEA, Organização dos Estados Americanos, nas tarefas golpistas, a asfixia crescente do Fundo Monetário Internacional e a delinquência intervencionista de sempre dos Estados Unidos, que com governos republicanos ou democratas é semelhante, foram quebrando as pontes entre os países irmãos. Criando dessa forma uma quebra e debilitamento nas organizações regionais que não incluem os Estados Unidos e o Canadá. O Mercosul, Unasul e a CELAC sofreram as consequências da agressão planejada do império, da União Europeia, das transnacionais e das oligarquias locais.
Passada uma década de pavor, que no Brasil carimbou o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, a prisão do atual presidente Lula e elevou ao governo o mais monstruoso personagem da história democrática brasileira, Jair Bolsonaro, as soberanias nacionais ficaram em estado de ameaça permanente, e foram submetidas à pilhagem dos países centrais de ocidente e suas multi e transnacionais de toda natureza, com a cumplicidade habitual das gananciosas elites locais. Sentiram-se à vontade para destruir os direitos trabalhistas, acirrar as xenofobias, o racismo, envenenar os territórios que restaram aos povos originários, e atingir a biodiversidade de cada país através da invasão e devastação sem pausa. Como cereja do bolo reabriram o armário das ideias mais retrógradas, fascistas e nazistas que voltaram a assolar o mundo.
Ainda assim, com perdas e ganhos, alguns países foram, através da mobilização social, recuperando o espaço para as ideias progressistas, aquelas que gozaram por um breve período mas, que tinham marcado positivamente a vida da sociedade mais empobrecida e excluída. Houve vitórias históricas e surpreendentes como as de Xiomara Castro, Gabriel Boric e, especialmente para a região, de Gustavo Petro e Francia Marques na Colômbia, que nunca tinha vivido um governo progressista em toda sua existência, que foram mudando o mapa político da região.
Maurício Macri, que esvaziou os cofres da Argentina, foi derrotado eleitoralmente pela muito ampla, talvez, Frente de Todos, que elegeu Alberto Fernández como presidente do país. Débil, difuso, medroso, mas, com certa pátina do campo progressista, Fernández, chefe do terceiro país mais importante da América Latina, encontrou-se solitário no Cone Sul até a vitória de Boric e depois da derrota da Frente Ampla do Uruguai. Luis Arce conseguiu se sair vitorioso e recuperar o processo democrático boliviano que sofrera um golpe cruel a mãos da oligarquia de Santa Cruz de la Sierra e parte das Forças Armadas, com clara intervenção do governo norte-americano.
Andrés López Obrador, no México, Fernández na Argentina, Boric, Xiomara, Petro e Arce, mesmo com as vitórias eleitorais e assumindo os respectivos governos nacionais, precisavam do principal parceiro da região. Daquele país que por tamanho, potência industrial, capacidade de consumo e capacidade de enfrentamento aos interesses excludentes dos Estados Unidos e da UE, pudesse, também como membro substancial dos BRICS, reatar com firmeza uma agenda de unidade para os 33 países que formam parte da CELAC. E o Brasil, até 2022 posto em situação de pária internacional, traidor regional e capacho do imperialismo norte-americano pelo governo Bolsonaro, voltou.
Brasil volta quando ainda ficam flancos importantes dos interesses cristalinos dos Estados Unidos e seus cúmplices da Europa na região. A ditadora Dina Boluarte no Peru, o banqueiro Guillermo Lasso no Equador, o nacionalista Lacalle Pou no Uruguai e alguns governos conservadores, ultraliberais, fascistas e pró ianques na América Central, formam o clube ao qual ficou reduzido o que já foi, na segunda década do século 21, o predomínio ultra-neoliberal e fascistoide no antigo “pátio traseiro” dos EUA. É para se alegrar? Depende. Está tudo resolvido? Não. É um cenário seguro para retomar os avanços sociais, econômicos, industriais e de direitos humanos na região? Não. Há garantias de que os golpes acabaram? Não.
Mas, a esperança bateu na porta e as entidades criadas para mudar o cenário histórico da América Latina e o Caribe vão ressuscitando. O que resta depende da união dos países irmãos, dos seus governos, autoproclamados progressistas, e do acompanhamento e fiscalização através da mobilização popular que não pode parar pela suada vitória nas urnas. Ao fim, que os irmãos sejam unidos é a lei primeira para que não voltem a ter vez os que destruíram nossas incipientes, porém, resistentes democracias.
Países que compõem a CELAC por ordem alfabética:
Antígua e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dominica, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Santa Lucia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela.
Edição e publicação: Tali Feld Gleiser.
Raul Fitipaldi é jornalista e cofundador do Portal Desacato e da Cooperativa Comunicacional Sul.
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