Por Rafael Moro Martins, Guilherme Mazieiro, para The Intercept.
N“Não é uma reação”, apaziguava, na terça-feira passada, dia 17, o ministro da Casa Civil, Rui Costa. Na fala a jornalistas, na porta do Ministério da Defesa, em Brasília, ele buscava desvincular os ataques terroristas de 8 de janeiro da pauta do almoço que acabara de ter com o anfitrião José Múcio Monteiro e os comandantes das Forças Armadas.
O tom conciliatório de Costa foi recebido com sorrisos por um grupo de servidores em cargos de confiança do primeiro escalão do Ministério da Defesa, naquela tarde ensolarada e quente. Tratam-se de seis militares que têm relações diretas ou próximas com o ex-candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro, Walter Braga Netto, filiado ao PL, e o ex-comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas.
Os dois generais da reserva são partes fundamentais da engrenagem que colocou o Exército de volta na política, elegeu Bolsonaro e é suspeita de participar da tentativa de golpe do último dia 8. Braga Netto, segundo o repórter Caio Junqueira, fez reuniões para planejar um (até agora) fracassado golpe de estado.
Mas, decorridos 10 dias dos ataques terroristas – e mais de um mês de sua indicação como ministro de Lula –, Múcio mantém em cargos de confiança gente da estrita confiança do candidato derrotado a vice. Compõem o grupo o subchefe e um assessor do gabinete ministerial, os assessores de Planejamento, Comunicação, Atos e Procedimentos e o secretário de Controle Interno.
Os ocupantes de cargos dessa natureza são habitualmente trocados logo que se inicia um novo governo, para que o ministro empossado monte uma equipe alinhada às políticas públicas que irá executar. Porém, enquanto Lula esbraveja contra os generais para a grande imprensa, ordena a demissão de militares bolsonaristas do Palácio da Alvorada e do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, os homens de Braga Netto e Villas Bôas vão ficando, sem alarde, no primeiro escalão da Defesa.
A pasta foi criada em 1999 por Fernando Henrique Cardoso. Seu objetivo é colocar sob civis a definição das políticas públicas a serem executadas pelas Forças Armadas, além do controle de seu funcionamento – algo corriqueiro em democracias maduras. Porém, sem a criação de uma carreira de servidores civis especializados em políticas de defesa, o ministério nunca funcionou a contento.
Após a queda de Dilma Rousseff, Michel Temer a entregou a um ministro militar, jogando no lixo a função para a qual a pasta foi criada. Com Bolsonaro, os militares se entrincheiraram de vez ali. Devolver o controle ao governo civil é uma das missões esperadas do governo Lula – e sobre a qual Múcio até agora desconversa.
“Zé Múcio é meu amigo de muitos anos, é uma pessoa em quem confio, de muita habilidade política. Ele é um homem que sempre que possível tenta evitar qualquer conflito”, disse Lula, em entrevista à jornalista Natuza Nery. É em meio a esse cenário que Rui Costa agendou para essa sexta-feira, dia 20, uma reunião entre o presidente, Múcio e os comandantes das três forças.
Perguntamos a Múcio, por intermédio de assessores, se ele conhecia as ligações de sua equipe próxima com o bolsonarismo e sua agenda e, nesse caso, por que não fez mudanças. Também o questionamos sobre seu conhecimento da missão do Ministério da Defesa – o controle civil das Forças Armadas. Ele preferiu não responder.
É provável que haja mais gente ligada a Bolsonaro em cargos de nomeação política de escalões inferiores da Defesa, a exemplo da Secretaria-Geral – que não são objeto desta reportagem. A lista a seguir, portanto, não dá conta de toda a situação da pasta.
Os ‘haitianos’ de Múcio
Cinco dos seis dos assessores diretos de José Múcio nomeados durante o governo Bolsonaro são oficiais do Exército. Três deles serviram na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, a Minustah, patrocinada por Lula em seus primeiros mandatos. Tratam-se do tenente-coronel da reserva Jorge Luiz Mendes de Assis, assessor de gabinete; do chefe interino da Assessoria Especial de Comunicação Social, o coronel da reserva Neyton Araujo Pinto; e do capitão reformado Geraldo Calixto de Araújo, assessor de Atos e Procedimentos da Defesa.
A Minustah, acusada de crimes contra civis e violência exacerbada, é vista por pesquisadores das Forças Armadas brasileiras como um laboratório para as operações de Garantia da Lei e da Ordem, as GLOs, que colocaram sob o Exército o comando de atividades eminentemente políticas, como a segurança pública do Rio de Janeiro – com Braga Netto.
O tenente-coronel Mendes foi nomeado adjunto da Assessoria de Apoio para Assuntos Jurídicos do comandante do Exército pouco depois de voltar do Haiti, em 2015. À época, Villas Bôas acabara de assumir, escolhido pela presidente Dilma. Mais tarde, como se sabe, o comandante do Exército foi protagonista da prisão de Lula ao ameaçar o Supremo Tribunal Federal, via Twitter, na véspera do julgamento de um habeas corpus do hoje presidente da República. A Villas Bôas, Bolsonaro já disse dever a eleição em 2018.
Mendes seguiu no posto, segundo o currículo disponível no site da Defesa, até 2021. Em 21 de maio daquele ano, foi chamado para trabalhar no ministério, onde tem salário mensal bruto de R$ 10.373, que se somam aos R$ 22.725 a que tem direito como militar da reserva.
Atual chefe da Assessoria Especial de Comunicação Social, o coronel Neyton Araujo é outro homem de confiança de Braga Netto. Por convite dele, pediu para ser mandado à reserva a fim de se tornar seu assessor na Casa Civil, em abril de 2020. Dois meses antes, o general havia se tornado o primeiro militar a comandar a pasta desde a ditadura. Com a entrega do governo Bolsonaro ao Centrão, Braga Netto foi tornado ministro da Defesa, e levou Araujo a tiracolo.
Quando Braga Netto deixou o governo para ser candidato a vice-presidente com Bolsonaro, Neyton permaneceu na Defesa, onde passou a assessorar outro general truculento, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira – conhecido pelas ameaças e mentiras sobre o sistema de votação, proferidas sempre aos berros. Neste início de ano, ele aproveita as conversas com jornalistas para também defender a atuação de Bolsonaro na pandemia e uma alegada autonomia das Forças Armadas ante o Ministério da Defesa. Tal qual Mendes, recebe R$ 10.373 mensais pelo cargo político, acrescidos ao soldo de R$ 26.108, brutos, de militar da reserva.
Terceiro “haitiano” de Múcio, o capitão Calixto serviu na Minustah entre 2012 e 2013 – à época, o chefe dela era o general Luiz Eduardo Ramos, outro ex-ministro de Bolsonaro e um dos mais radicalizados entre os generais que foram fazer política no Planalto. Segundo seu currículo, depois de voltar do Haiti, Calixto passou a cuidar do orçamento das Forças Armadas na Assessoria Parlamentar do Ministério da Defesa – a turma responsável pelo lobby fardado junto a deputados e senadores, e que atua em coordenação com o Comando Geral. Deixou o posto em 2018. A se depreender do que está informado no site da Defesa, o capitão Calixto teve cargo de confiança na pasta ao longo de todo o governo Bolsonaro – e assim permanece sob Lula e Múcio.
‘Exército do futuro’ – que nunca chega
Ogeneral de três estrelas da reserva Walmir Almada Schneider Filho está no Ministério da Defesa desde 2019, segundo seu currículo. Ainda no governo Dilma Rousseff, entre 2011 e 2015, ele comandou a 7a subchefia do Estado-Maior do Exército, dedicada a “formular as normas e diretrizes para contribuir com a construção do Exército do Futuro”.
São dessa época reportagens que profetizavam um “Exército totalmente reequipado”, a partir da Estratégia Nacional de Defesa elaborada anos antes nos governos petistas – sob a coordenação de dois ministros civis, Nelson Jobim, da Defesa, e Roberto Mangabeira Unger, da Secretaria de Assuntos Estratégicos. “O ano de 2022 é considerado um marco temporal para nós. Pretendemos que o processo de recuperação termine até lá”, prometia Schneider em uma delas.
A partir de 2012, porém, os militares passaram a revisar sistematicamente a estratégia – tarefa em que a 7a subchefia teve papel relevante. Em 2022, como se sabe, o Exército brasileiro estava mergulhado na política, com milhares de oficiais ocupando cargos destinados a civis na administração federal. E, nesta sexta-feira, uma nova “proposta de modernização” deve ser apresentada a Lula.
Apesar disso tudo, o general Schneider segue chefiando a Assessoria Especial de Planejamento do do Ministério da Defesa desde, pelo menos, abril passado. Serviu a um ministro – Paulo Sérgio – muito mais preocupado em fazer política, inclusive antidemocrática, que em assuntos estratégicos. O cargo lhe rende R$ 13.623 mensais, acrescidos aos R$ 31.908 do soldo de general da reserva, em valores brutos.
Atual subchefe de gabinete do ministro Múcio, o coronel da reserva Alexandre Carlos Magnus de Lara desempenhou o mesmo papel sob os três ministros da Defesa de Bolsonaro. Segundo seu currículo, Magnus se formou aspirante a oficial na turma de 1993 da Academia Militar das Agulhas Negras. Fez uma carreira discreta, cujo ápice foi o comando do 32o Grupo de Artilharia de Campanha, a mais antiga unidade de Artilharia do Exército, atualmente sediada em Brasília. Desde dezembro de 2020, é subchefe de gabinete do ministério – serviu, portanto, a Braga Netto e Paulo Sérgio.
Único militar da lista que não é do Exército (e o único na ativa), o vice-almirante Luiz Roberto Basso é secretário de Controle Interno do Ministério da Defesa desde meados de 2022. É outro que ingressou na pasta sob o ministro Paulo Sérgio. Antes, presidiu o conselho fiscal da Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S.A., a Amazul, estatal criada pelos militares para “promover, desenvolver, transferir e manter tecnologias sensíveis às atividades do Programa Nuclear da Marinha e do Programa de Desenvolvimento de Submarinos”, o Prosub. Os salários brutos de Basso somam R$ 40 mil. Ele recebe R$31.892,64 como militar e R$ 8.174,03 no cargo civil.
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