Buenos Aires 1985 – Brasília 2023. Por Raul Fitipaldi.

Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info.

Preciso declarar aqui um sentimento que nutro há quase quarenta anos. Cheguei em Buenos Aires para morar lá, diria que por peripécias afetivas, seis meses depois do histórico 22 de abril de 1985, quando foram a julgamento os traidores da democracia. Embora Montevidéu não seja uma cidade pequena, e muito menos despolitizada, as sensações que vivi a partir de outubro desse ano em que governava Raúl Ricardo Alfonsín, mudaram minha forma de ver a política, o jornalismo e outros aspectos vitais do tecido social de um país.

Nesse abril de 85 tinha se retirado o pano que cobria o quadro de horrores pintado pela ditadura mais sangrenta, criminal e abjeta que tinha conhecido a República Argentina. Ia se julgar em um tribunal civil os nove líderes das três primeiras juntas militares que governaram o país após o golpe de Estado de 1976. Os crimes iam de homicídio e tortura até privação ilegítima de liberdade. Ia se enfrentar, cara a cara nos tribunais, os responsáveis por mais de 30 mil mortos e desaparecidos pelas mãos da ditadura civil e militar que, até hoje, deixa sequelas no país irmão.

Leia mais: A democracia venceu? Superamos o golpismo?

A mobilização social tinha começado em 1983, e nela caminhava em círculos pela Praça de Maio o lenço branco das Mães, que, abrigado pela juventude, filhos, familiares, amigos, companheiros e companheiras dos mortos e desaparecidos, reclamava Memória, Verdade e Justiça. Os pedestres, lembro como se fosse hoje: era um dia azul infinito e eu olhava pela janela de um bar, voltaram a rir e se olhar de uma forma que nunca tinha visto. Estavam perdendo o medo, começaram a acreditar que era possível, pelo menos, uma pequena reparação histórica ante tanta perversidade. Quando o livro “Nunca Mais”, publicado por primeira vez em 1984 pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas da Argentina, me foi dado de presente no Centro Cultural San Martín, em janeiro de 1986 por uma amiga (gostaria de saber onde ela está hoje), chorei de tal modo que ainda não consigo explicar. Ou sim consigo e por isso choro ainda.

A democracia argentina perseverou, consolidou-se institucional, social, política e juridicamente. Depois veio, como aqui, o lawfare, e há pouco, a tentativa de assassinato de Cristina Fernández de Kirchner. E persistem os problemas que asfixiam nossos países por conta das oligarquias e do imperialismo norte-americano, sempre presente. Apesar de tudo, já não será fácil derrubar essa democracia conquistada a partir da verdade posta a nu, nome por nome, assassino por assassino, golpista por golpista. Muitos já morreram em prisão, como devia ser.

A vida quis que, 38 anos depois, no domingo 8 de janeiro de 2023, sentisse de novo o temor de que os monstros voltassem a ocupar meus artigos. É abominável ter que dedicar-lhes tempo e algo tão sagrado como as palavras. Meu espírito ficou inquieto e alerta. Quem, quantos serão julgados e condenados por planejar e cometer uma tentativa de golpe? Os financiadores graúdos serão identificados, julgados? Ficarão, de novo, impunes os fardados que traíram a Nação? Continuarão prosperando na sua tentativa? E o chefe visível da gangue, Jair Bolsonaro, será julgado por esse e por dezenas de outros crimes que já cometeu no comando do país? E as digitais de Sérgio Moro, que começou este processo de destruição nacional, serão encontradas?

Foi nos últimos dias de 1985 que aprendi que o tamanho e qualidade de uma democracia depende do tamanho da ousadia que tenhamos em defendê-la. Da capacidade de julgar, condenar e coibir novas tentativas, pois todas têm o selo indelével do autoritarismo, a intolerância, a violência, o racismo, o machismo, a xenofobia, o crime; em definitivo, da exploração e a destruição política, econômica e social do que é de todas e todos. Hoje aqui, no Brasil, temos uma oportunidade histórica de definir o tamanho e qualidade da nossa democracia. É para não termos medo, é para identificar todos os inimigos da paz, da liberdade, do amor. É para julgar e condenar sem medo e quando for preciso. É para preparar o Brasil para os anos vindouros em calma, em alegria, com esperanças, com certezas, sem os inimigos da humanidade intoxicando as novas gerações e a Vida. Impunidade Nunca Mais!

Raul Fitipaldi é jornalista, cofundador do Portal Desacato e da Cooperativa Comunicacional Sul.

 

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.