O Brasil tem sido historicamente um lar e um refúgio para ‘protestantes‘ desde a primeira migração europeia dos séculos XVI e XVII. O fato de que exista uma realidade multicultural no Brasil com a chegada dos reformados holandeses e a influência luterana alemã marca o início das relações entre religião e política”.
José Luis Pérez Guadalupe, sociólogo e educador peruano, anuncia um projeto de pesquisa (com a participação de 15 especialistas brasileiros, latino-americanos e latino-americanistas) sobre “Os evangélicos e poder político no Brasil“, que será publicado no próximo ano em português e espanhol. Enquanto isso, detém-se ao caso brasileiro, uma espécie de “terra prometida” dos evangélicos.
A entrevista é de Salvatore Cernuzio, publicada por Vatican Insider, 26-04-2019. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Qual é a razão histórica dessa “predileção evangélica” pelo Brasil?
No início do século passado, Brasil e Chile foram os países onde seminalmente se formou o pentecostalismo latino-americano, só no Chile isso se estagnou. No Brasil, surgiram novas formas, como o ‘neopentecostalismo’, que soube aproveitar essa grande sensibilidade espiritual da sociedade brasileira para continuar crescendo numericamente e penetrar na sociedade, na cultura e, por fim, na política.
Mas, devemos lembrar que o impressionante crescimento numérico não foi graças a um “pentecostalismo missionário”, mas a um pentecostalismo autóctone, crioulo e leigo, que permitiu a enorme penetração cultural que tem na atualidade.
No entanto, deve-se notar também que o Brasil não é o único caso no continente, nem tem os maiores percentuais de comunidade evangélica, mas, sim, Guatemala, Honduras, El Salvador e Nicarágua. Contudo, é o país que mais sabe vincular o fator religioso à política partidária. Tanto é que é o único país da América Latina onde igrejas evangélicas (especialmente igrejas pentecostais) normalmente intervêm na política partidária desde 1986.
O censo de 2010 registra 24,5 milhões de evangélicos, ou 22,2% da população total. 17,5 milhões deles são pentecostais. É bem provável que nos próximos vinte anos a porcentagem de evangélicos esteja a ponto de aumentar. Como os evangélicos brasileiros traduzem essa força religiosa e social em uma força política?
O Brasil, com 210 milhões de habitantes, é o país com mais católicos do mundo. No entanto, nos últimos anos houve uma diminuição significativa em sua catolicidade, que atualmente é inferior a 60%, enquanto os evangélicos são estimados em 32% (segundo Lapop e Datafolha).
É interessante notar que, segundo o censo de 1980, os católicos eram 89% e os evangélicos apenas 6,6%, enquanto no último censo de 2010, os católicos caíram para 64,6% e os evangélicos subiram para 22,2%. Se compararmos os números do censo de 1980 com os cálculos atuais, veremos que o catolicismo caiu quase 30 pontos, enquanto os evangélicos aumentaram mais de 25 pontos, nos últimos quarenta anos.
Junto com esse espetacular crescimento numérico, as igrejas evangélicas no Brasil souberam rentabilizar seu capital religioso em capital político. Historicamente, essa participação começou em 1985, quando a Assembleia das Igrejas Pentecostais do Brasil decidiu formalmente participar da política e lançar candidatos para a Assembleia Constituinte no ano seguinte, passando de 12 representantes (na maioria batistas) a 32 (principalmente pentecostais).
A partir daquele ano, tornou-se normal as igrejas evangélicas se aventurar na política, tanto que temos candidatos evangélicos em todas as listas de partidos políticos, e atualmente temos representantes evangélicos de 26 denominações, em 22 grupos políticos diferentes.
Vemos, então, que ao contrário do resto da América Latina, as grandes igrejas evangélicas brasileiras intervêm diretamente na política partidária desde 1986, seja através do modelo de “facção evangélica” (que permite que elas corram em todos os partidos políticos existentes), ou dentro de partidos políticos confessionais (PRB, PSC, etc.), e até compõem uma “bancada parlamentar”.
Além disso, o “modelo corporativo de participação eleitoral”, com “candidaturas oficiais” dentro das denominações pentecostais, é a estratégia que mais obteve sucesso em toda a região, já que evita a dispersão do voto dos fiéis.
No entanto, é necessário localizar o “sucesso” político dos evangélicos brasileiros em sua verdadeira dimensão, pois em toda a região há uma sub-representação política dos evangélicos, embora, se eles estivessem unidos, poderiam formar uma força inegável em qualquer processo eleitoral.
Não obstante, se analisarmos o processo eleitoral em 2014, vemos que apesar de ter cerca de 25% da população do Brasil naquela época, só conseguiram obter 13% nas eleições federais, 7% nas estaduais e 4% no Senado.
Nas eleições de 2018, as coisas melhoraram um pouco para os evangélicos, sobretudo por Bolsonaro, mas também não chegaram a percentuais altíssimos, levando em conta que compõem quase um terço da população brasileira. Para esse ano, sendo aproximadamente 32% da população, obtiveram 82 deputados na Câmara (dos 513), o que representa 16% de seus membros. Mas, como é óbvio, a porcentagem de representantes nas Câmaras não é o único critério para medir o impacto político dos evangélicos em um país.
Em resumo, no país com o maior número de católicos do mundo e com mais evangélicos de toda a América Latina, onde há “partidos confessionais” – ou “partidos denominacionais” -, onde há um “voto denominacional” e os evangélicos obtêm o maior “sucesso político” do continente, podemos verificar que os resultados concretos não refletem – ainda – o grande potencial social e político que os evangélicos têm e, menos ainda, uma unidade religiosa e eleitoral.
Como descreveria a orientação política majoritária dos evangélicos no Brasil?
Historicamente, na América Latina, os evangélicos têm sido anticatólicos (doutrinalmente) e anticomunistas (ideologicamente), razão pela qual apoiaram todos os governos estabelecidos, especialmente os de direita, incluindo ditaduras. Atualmente, são anti- “ideologia de gênero”, centrando-se em uma “agenda moral”, pró-vida e pró-família.
No Brasil, os evangélicos são muito pragmáticos, se não oportunistas. Durante a ditadura militar, houve um apoio explícito, mas discreto ao governo, depois suas inclinações políticas foram muito dispersas, e depois apoiaram por anos o governo de esquerda de Lula da Silva e Dilma Rousseff (até o impeachment), com o mesmo entusiasmo que hoje apoiam ao governo de direita de Bolsonaro. Com a grande diferença que agora a “agenda moral” evangélica é um grande ponto de coincidência com a “agenda bolsonarista”.
Nesse sentido, embora as principais questões debatidas pelos candidatos durante a campanha eleitoral de 2018 tenham sido três: a crise econômica, a insegurança do cidadão e o combate à corrupção, não há dúvida de que havia outras duas questões de fundo: “antipetismo” e a” agenda moral”, que desempenhou um papel mais decisivo do que as questões racionais e públicas do debate político. Sem dúvida, esta última questão foi o que inclinou a balança eleitoral da maioria dos evangélicos na hora de votar, que viram em Bolsonaro o “escolhido de Deus“.
A eleição de Jair Bolsonaro foi uma eleição surpresa. Algo que cresceu além do previsível até a presidência. Até que ponto ele se beneficiou do voto dos evangélicos?
Bolsonaro se beneficiou do voto dos evangélicos apelando a uma série de símbolos e discursos suficientemente ambíguos que levaram parte do eleitorado evangélico a acreditar que Bolsonaro representava politicamente os seus interesses cristãos. Em segundo lugar, Bolsonaro teve gestos concretos de identificação com a “agenda moral” dos evangélicos em torno da luta contra o aborto e o casamento igualitário.
Uma boa parte dos evangélicos acreditava que essa “virtude” era motivo suficiente para votar nele. Terceiro, se afirmando como um candidato oposto aos partidos de esquerda, conseguiu convocar aquela antiga veia evangélica anticomunista.
O interessante é notar que no processo eleitoral de 2018 houve também uma candidata evangélica, das pedreiras do pentecostalismo, Marina Silva, que obteve apenas 1% dos votos, enquanto Bolsonaro (sendo católico rebatizado no rio Jordão pelo pastor Everaldo) atraiu o voto dos evangélicos.
O que um candidato evangélico no Brasil nunca alcançou (juntar o voto dos evangélicos para presidente) foi alcançado por Messias Bolsonaro com um discurso autoritário, mas conservador, que preenchia as expectativas religiosas da grande maioria dos evangélicos e muitos católicos. Embora seja preciso também dizer que nesse processo eleitoral uma série de fatores complementares foram combinados, caso contrário, alguém poderia erroneamente inferir que basta ser batizado no rio Jordão e invocar a “agenda moral” para vencer as eleições presidenciais no Brasil.
Você acha que isso pode afetar sua presidência?
Eu acho que isso pode afetar a gestão de Bolsonaro, se as demandas evangélicas se tornarem menos estratégicas para a governabilidade do país. No momento em que os evangélicos radicalizam suas demandas, tentando fazer com que o governo e o legislativo sejam tingidos de uma teocracia com um sabor do Antigo Testamento, Bolsonaro terá que acertar a linha de valor de seu governo. Mas, como “ninguém pode servir a dois senhores”, terá como resultado a rejeição dos evangélicos, por não atender às suas expectativas, ou a rejeição do resto da população, por apoiar o neoconstantinismo, que é o que os neopentecostais buscam.
Como vimos, em toda a América Latina a fragmentação eclesial dos evangélicos se acentua quando entram na esfera política, entre outras razões, pela vocação filantrópica institucional do movimento evangélico e seu DNA atomizador endêmico, que lhes permite se multiplicar e crescer, mas que posteriormente impede que se unam. O que constitui uma bênção para seu crescimento numérico é uma maldição para sua unidade eclesial (e política). Eles crescem e se dividem, dividem e crescem. O mesmo acontecerá em seu desempenho político, e isso pode afetar o governo de Bolsonaro.
Você vê “mais políticas evangélicas” no futuro do Brasil?
Primeiro, deve ser entendido que o sucesso político dos evangélicos no Brasil não começa com Bolsonaro, mas está localizado em um estágio diferente. É por isso que Bolsonaro não é percebido como um teto, mas como um novo piso a partir do qual as plataformas evangélicas da política nacional começam a se reorganizar e ganhar maior destaque. Bolsonaro não é a meta ou objetivo dos evangélicos, mas uma estação estratégica nesta longa jornada à teocracia bíblica ou “reconstrucionismo”.
Neste casamento (ou conspiração) entre Bolsonaro e os evangélicos, vemos não apenas a manipulação histórica do fator religioso para fins políticos, mas também o uso estratégico inovador da política para fins religiosos. Ou seja, uma mútua, consciente e perversa utilização instrumental de ambas as partes.
Devemos lembrar que o romance com as massas, o discurso populista, as mensagens de medo para a população e a experiência com a mídia já eram dos evangélicos bem antes de Bolsonaro. É por isso que acreditamos que esse capital religioso dos evangélicos (agora convertido em capital político) pode acabar servindo a um candidato evangélico à presidência do Brasil, num futuro não muito distante.
Embora estejamos muito céticos quanto a um possível sucesso eleitoral, ou fracasso, que possa ter um governo evangélico, já que acabarão se dividindo antes de começar a governar.
Mas, independentemente se existem dificuldades e limites, vemos que no Brasil se começa a ensaiar propostas governamentais para além das ofertas típicas de “moralização da política” e sua ampla “agenda moral”, e são preparados planos governamentais integrais e escolas de formação política e gestão pública com vistas à formação de seus fiéis para o exercício do poder.
Como se pode ver, os evangélicos vieram para ficar, ficaram para crescer e cresceram para conquistar. Mas essa conquista não se restringe apenas à esfera religiosa, mas também se estende à esfera social e política.