Por Gustavo Veiga, enviado especial a La Paz.
Na Bolívia, o poder militar sempre foi exercido com discrição. As forças armadas, corporativas e adaptadas a cada era política, foram e continuam sendo uma ameaça à continuidade democrática. Se a interferência dos EUA ainda é mencionada hoje como um fator desestabilizador, é porque institucionalizou o Plano Condor na década de 1970, esteve por trás do longo período de ditaduras entre 1964 e 1982 e operou contra os governos do MAS liderados por Evo Morales de 2006 a 2019. Seu aluno mais célebre foi o general Hugo Banzer Suárez, treinado na Escola das Américas e ditador do país por quase sete anos, entre 1971 e 1978. Essa sequência inclui a última tentativa fracassada de golpe liderada pelo general Juan José Zúñiga contra o presidente Luis Arce Catacora. É mais um elo. O 39º entre a segunda metade do século XX e até agora no século XXI.
Na sexta-feira, o presidente boliviano contribuiu com uma nova informação para a investigação em andamento sobre os eventos de 26 de junho. Ele declarou em um evento no município de Santibáñez, em Cochabamba: “Não se trata apenas de uma conspiração golpista, mas há interesses em tirar nossa democracia e poder, porque eles querem administrar nossos recursos naturais e querem assumir o controle da reserva talvez mais importante do planeta no momento. Vocês sabem que o lítio boliviano é a maior reserva do mundo.”
À medida que a hipótese de um autogolpe apresentada por Evo – vítima em 2019 de oficiais militares que, segundo Arce, são os mesmos que tentaram destituí-lo do governo – perde força, a ideia de um golpe com objetivos econômicos está tomando forma. Essa hipótese, que o presidente subscreve, não é descartada por um de seus maiores críticos. O ex-ministro da Presidência de Morales, Juan Ramón Quintana. Ele tem formação militar, mas também é sociólogo. Para ele, “a Bolívia pode ser o centro da luta pela América Latina, porque expressa ferozmente a disputa geopolítica na região. Pelo lítio, pelos recursos naturais, pela presença da China e da Rússia”.
Outra pista veio do canal boliviano DTV, quando transmitiu declarações do ex-comandante da Força Aérea Boliviana (FAB), Marcelo Zegarra, preso por sua participação no levante militar. Nelas, Zegarra atribuiu a Zúñiga que, em uma reunião anterior ao golpe com outros militares, ele havia dito que eles tinham “o apoio total da embaixada estadunidense, da embaixada da Líbia, da Comunidade Europeia, da polícia boliviana, dos militares e do pessoal aposentado…”, referindo-se aos militares aposentados. Mas a menção à Líbia não é plausível, pois o país nem sequer tem uma embaixada ou consulado registrado no Ministério das Relações Exteriores.
A história do papel desempenhado pelos militares na Bolívia é resumida em um texto acadêmico de Loreta Tellería Escobar, cientista política e economista da CLACSO: “Na década de 1980, eles souberam usar sua impunidade e se adaptar às regras democráticas, até mesmo formando seus próprios partidos políticos para ter acesso ao governo, como fez o general Hugo Banzer. Na década de 1990, eles se adaptaram pragmaticamente a novas funções, como a luta contra o tráfico de drogas, a ordem pública e a segurança do cidadão, de acordo com as políticas e doutrinas de segurança estrangeiras. Nos anos 2000, passaram a fazer parte de um projeto político de esquerda, nacionalista e anticolonial com enorme fervor discursivo. No passado imediato, depois de renegar um governo legalmente constituído, eles apoiaram um governo inconstitucional por meio do uso da violência e da repressão social, levando os bolivianos de volta às páginas mais cinzentas de sua história.
Esse papel como fator de poder, mesmo na ampla convivência com os governos do MAS – nos três mandatos de Evo e no atual de Arce – nunca pôde ser modificado. Em décadas, nenhum governo realizou uma reforma completa.
Isso nem sequer foi tentado na Constituição do Estado Plurinacional promulgada em fevereiro de 2009. Durante os governos de Morales, as forças armadas receberam o maior aumento orçamentário de sua história. Vários oficiais militares de alto escalão se juntaram à equipe de empresas públicas nacionalizadas ou ocuparam várias embaixadas.
Apesar do novo status dado às forças armadas pelo MAS, o ovo da serpente estava chocando em seus quartéis. Em agosto de 2019, o general Williams Kaliman declarou: “A força militar morrerá anticolonialista”. Três meses depois, ele seria o mesmo que pediu a Evo Morales que renunciasse. Hoje ele estaria foragido nos Estados Unidos. Outros homens uniformizados como ele tiveram menos sorte. A partir de 2 de setembro, eles serão levados aos tribunais para responder a uma acusação muito pesada: o crime de genocídio cometido após o golpe de 2019 e como autores dos massacres em Sacaba e Senkata, onde 27 pessoas morreram e centenas foram feridas e presas.
Zúñiga e seus seguidores, cinco anos após esses eventos sangrentos, também podem enfrentar sentenças pesadas. Arce confirmou que vários dos líderes golpistas de 2019 estão envolvidos no golpe fracassado de 26 de junho. Dois dos mais importantes que se juntaram aos golpistas são Sergio Carlos Orellana Centellas, ex-comandante-chefe das Forças Armadas, e Pablo Arturo Guerra Camacho, ex-chefe de gabinete. Eles agora terão que responder pelos assassinatos de civis que se seguiram ao golpe liderado por Jeanine Áñez e apoiado pelos Estados Unidos e pela União Europeia.
Há dois cenários complicados que podem se produzir com as forças armadas. Um deles é o surgimento de outro Zúñiga, um oficial da inteligência militar que ganhou a confiança de Arce até se insubordinar. O outro é o reacendimento de um confronto histórico entre a polícia e os militares. Os comandantes da primeira ao ministro do governo Eduardo Del Castillo, que chamou publicamente os líderes golpistas de “delinquentes” e os mostrou algemados em frente às câmeras e usando babadores de “apreendidos”. A força de segurança está crescendo em poder a cada dia. Ela se equipou bem, até mesmo para enfrentar os militares, como aconteceu na Plaza Murillo na quarta-feira, 26.
A polícia boliviana tem 40.000 efetivos e, de acordo com Quintana, as forças armadas têm muito menos. Um relatório do Global Firepower (Poder de Fogo Global) divulgado este ano coloca o pessoal militar ativo em 35.000 e as forças armadas como um todo em 82º lugar entre todos os países. Uma fonte próxima ao MAS disse ao Página/12 que não há episódios de insubordinação no horizonte, embora apenas por enquanto.
Mas nem tudo é tão ruim assim. O presidente Arce recebeu algum alívio em sua administração neste fim de semana, quando promulgou a Lei 1567 sobre o Protocolo de Adesão da Bolívia ao Mercado Comum do Sul (Mercosul), e observou que essa incorporação tem um caráter “estratégico”. Além disso, a partir de segunda-feira, ele receberá o presidente Lula e uma grande delegação de empresários brasileiros em La Paz. O país precisa de investimentos, especialmente no mercado do gás, pois suas reservas estão se esgotando. Esse recurso natural permitiu que a economia do país se recuperasse quando Evo era presidente e Arce, seu ministro. Os dois trabalhavam em harmonia. Hoje, porém, são dois políticos irreconciliáveis, e essa é a principal fraqueza do MAS, que as forças armadas e os agentes externos estão calibrando dia a dia para continuar a cumprir suas ordens.
Tradução: TFG, para Desacato.info.
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