Por Leonardo Wexell Severo
“O governo boliviano mente e para isso conta com uma imprensa parcial, que representa o núcleo duro da direita capitalista neoliberal para defender os interesses externos e assaltar um Estado cheio de riquezas. As transnacionais estão hoje representadas em nosso país por políticos oficiais que se comportam como seus porta-vozes, agentes internos do estrangeiro contra a democracia. Para isso, mentem e satanizam os setores mobilizados, pois querem o retrocesso com a fraude das eleições de 6 de setembro”.
O alerta é de Milán Berna, histórico dirigente da Confederação Sindical Unitária de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), integrante do “Pacto de Unidade”, movimento essencial para impulsionar, a partir da ação conjunta dos 36 povos originários, as primeiras transformações realizadas no governo de Evo Morales, do Movimento Ao Socialismo (MAS).
Na avaliação de Berna, que conduziu a poderosa entidade camponesa entre 2006 e 2010, a conversa hoje é outra: “tudo tem que falar bem do governo e mal dos setores mobilizados, nos demonizando como se fôssemos grupos armados e guerrilheiros, bandos de subversivos e delinquentes”. “As manchetes iniciam por aí, como se fôssemos nós, e não eles, quem ataca a democracia e a liberdade. A mídia está atrelada a este governo de transição, que converteu as emissoras de rádio e televisão num reflexo dos seus desejos reacionários”, acrescentou.
Secretário de Justiça da comunidade Indígena Originária Camponesa Cuipasani, do município Santiago de Callapa, Província Pacajes do Departamento de La Paz, Berna defende a fidelidade aos princípios do “ama qhilla, ama llulla e ama suwa: não sejas preguiçoso, não sejas ladrão e não sejas mentiroso”. “Este é o suma tamaña, o Viver Bem, que não é um slogan inventado pelo MAS ou pelos movimentos sociais. Ele tem milhares de anos e representa a complementaridade e a reciprocidade”, recordou.
Manipulação e fraude
Em contraposição à ideologia do Viver Bem, alertou, está a postura adotada pela autoproclamada Jeanine Áñez – e repercutida por sua mídia – em relação às próximas eleições, com manipulações desde já para construir a fraude. “Por isso tratam de desinformar as pessoas, desestimular para que não compareçam às urnas, que haja um ausentismo a fim de deslegitimar o futuro governo socialista. Caso o vencedor fosse um grupo de direita, obviamente, fariam de tudo para legitimar o processo, falando de eleições maravilhosas. É esta a sua lógica”, ressaltou.
Este mesmo comportamento grosseiro, denunciou, está explicitado na negação da defesa da vida, ao não enfrentar a pandemia do coronavírus, na falta de insumos de biossegurança que penaliza as comunidades, sobretudo as mais distantes. “Não há medicamentos e equipamentos nos centros de saúde nem nos hospitais, havendo uma carência latente e um Estado ausente. A atenção é falha, enquanto deveria ser imediata. Como temos muitos enfermos abandonados, as pessoas doentes estão com medo e preferem se automedicar e ficar em casa, para correr menos risco”, acrescentou.
Milán Berna denunciou que “não foi dada sequência a nada do que foi feito no governo Evo, como a construção de centenas de hospitais. Era necessário dar continuidade, estruturar e equipar para combater a pandemia”. Além de descumprir compromissos com os governos dos municípios e departamentos (estados), “nestes meses se paralisou e prejudicou tudo, desde as estruturas de saúde já construídas até a entrega de milhares e milhares de ambulâncias”. “São fatores extremamente negativos para o enfrentamento à covid-19 e que contribuíram para a sua proliferação”, condenou.
Negociatas com respiradores
Como se não bastasse tamanho descalabro, “a única coisa que as autoridades transitórias têm feito, assim como seus subalternos e diretores, é se aproveitar ao máximo dos preços inflados para lucrar”. “Se aproveitam das compras de artigos e equipamentos que seriam para salvar vidas, como respiradores, para fazer negociatas. Desta forma, o enriquecimento de uns poucos tem afetado a saúde das famílias, que se veem prejudicadas pela completa falta de assistência. Isso se vê também no caso dos produtos de higienização e máscaras, que muitas vezes não existem e, quando são encontradas, não há com o que limpá-las adequadamente para que, uma vez desinfetadas, possam ser reutilizadas”, explicou Berna.
Como dirigente do Pacto de Unidade, formado desde 2006 pela Confederação de Camponeses, Confederação de Mulheres Bartolina Sisa, Confederação Sindicalista de Comunidades Interculturais e Confederação de Povos Indígenas, o dirigente resgatou a importância da ação conjunta das entidades “para garantir a implementação de políticas públicas e dar maior valor agregado aos produtos nativos, ecológicos, reativando o aparato produtivo da pecuária e da agricultura”.
Os avanços vieram se explicitando a partir da conquista da Lei 144 de Revolução Produtiva Comunitária Agropecuária, de 26 de junho de 2011, recordou Berna, que teve o objetivo de normatizar a soberania alimentar estabelecendo as bases institucionais e políticas, bem como os mecanismos técnicos, tecnológicos e financeiros da produção, transformação e comercialização de produtos agropecuários e florestais.
“Até então o que o governo central fazia era proteger os grandes produtores, subvencionando com crédito os sojeiros e arrozeiros que, mais do que alimentar a população ou gerar recursos para o Estado, serviam à exportação. Esta é a grande diferença: antes não havia apoio ao pequeno produtor”, assinalou. Ao mesmo tempo, “foi solicitado ao governo acesso às terras fiscais em áreas ociosas, como as do oriente boliviano, para que fossem distribuídas conforme a sua vocação e capacidade produtiva, ponto em que conseguimos um avanço significativo”.
Luis Arce presidente
“Frente ao desafio de dar continuidade e fortalecer conquistas das políticas anteriores, demandadas pelas organizações sociais, de desenvolvimento econômico produtivo, vinculada ao pequeno produtor, surgiu a candidatura à presidência de Luis Arce, ex-ministro da Economia”, declarou o líder camponês.
“Como ministro, Arce compreendeu ao longo dos 14 anos da gestão de Evo qual a real necessidade dos produtores. Um dos significados do seu nome é este: o melhoramento da estrutura econômica do país, avançar com estabilidade e redistribuição de renda, consolidando e potencializando o conjunto dos setores, seja familiar, associativo, cooperativo ou empresarial, para que tenham um crescimento sustentável. Afinal, cabe ao Estado ser o facilitador de todos os meios possíveis em relação à técnica, ao crédito e ao mercado. E para isso necessitamos que a economia se consolide, para que cada setor seja autônomo, amplie sua produção e se desenvolva”, frisou.
Na liderança dos movimentos, com uma longa trajetória organizativa e de luta, Berna disse “acreditar que o melhor caminho para a consolidação de um Estado de direito, de um Estado plurinacional, unitário e comunitário, como é a Bolívia, tem de ser a capacidade de diálogo, de administrar e resolver conflitos”. Para a construção e efetivação deste espaço, ponderou o dirigente, “obviamente necessitamos de um governo constitucional, legal, que torne seu projeto conhecido, caso contrário teremos mal-estar, conflitos e enfrentamentos. Foi isso o que fez com que nos encontremos nesta grave crise, não só política, administrativa, econômica, social, mas também na saúde, porque este regime está completamente debilitado”.
“Precisamos retomar a democracia a fim de reencontrar a harmonia, para que haja uma trégua, um reencontro da América Latina, porque para os povos originários não existe fronteira. Temos uma só raiz, uma mesma identidade e sempre estaremos abraçados, apostando no nosso desenvolvimento comum”, concluiu.