Por Paulo Nogueira Batista Jr.
O leitor ou leitora que está aí, invisível, inacessível, atrás da tela onde ora vou digitando essas palavras, esse leitor ou leitora haverá de compreender, de certo, que escrever se mostra cada vez mais difícil? Estou à beira de desistir. Mas retiro o ponto de interrogação. Não cabe a dúvida – ironicamente presente na expressão “de certo”. O leitor desta coluna compartilha comigo alguns valores, opiniões e – sobretudo – angústias. Quem vivencia o momento atual, no Brasil e no mundo, sem angústia, sem pelo menos uma ponta de angústia, dificilmente estaria lendo estas palavras neste momento.
E, no entanto, não quero exagerar e muito menos propagar desalento. Nem todas as notícias são ruins – pelo menos as que nos chegam do exterior. Ao contrário. No campo político, algumas têm sido até excelentes. Os bolivianos passaram pela sua provação de forma admirável e botaram a sua corja de golpistas para correr. E não foi, diga-se, apenas pelo voto, mas com muita luta, sangue e lágrimas. Os chilenos, por sua vez, derrotaram de forma fragorosa a Constituição herdada da ditadura de Pinochet, aprovando por avassaladora maioria que se escreva uma nova Carta Magna, condizente com as aspirações do povo. De novo, não foi apenas pelo voto, mas com luta, sangue, lágrimas.
Apresso-me a fazer a ressalva. Não cabe romantizar o derramamento de sangue. A não ser os sádicos, ninguém quer ver sangue correr. Mas infelizmente foi assim, na Bolívia como no Chile. Infelizmente, é quase sempre assim.
O brasileiro, sempre propenso à conciliação, a acertos parciais, a soluções negociadas, terá dificuldade de tirar as lições da experiência dos vizinhos e da nossa? Os nossos golpistas domésticos não ficam atrás dos bolivianos e chilenos. A corja que se instalou no Brasil desde 2016 dificilmente será ejetada do poder de forma pacífica, por um processo democrático normal – até porque eles já se encarregaram de suprimir, de várias maneiras, a normalidade democrática.
Eis o que queria ressaltar: a liberdade e os direitos só subsistem quando amparados pela força. A persuasão, o debate, os dispositivos jurídicos têm sempre valia, claro, mas não são suficientes para garantir a defesa e a sobrevivência dos interesses do país e do povo.
Sobrevivência. É disso que se trata. Por quanto tempo teremos ainda de suportar esse desastre chamado governo Bolsonaro? Veja-se a política externa, para mencionar um exemplo entre tantos. Aos mais jovens e àqueles que não tiverem oportunidade de estudar a história nacional, quero assegurar, sem qualquer vacilação, que o Brasil nunca passou por nada semelhante. É uma humilhação sem precedentes para o País ver o presidente da República e seu chanceler rastejarem aos pés do governo Trump. Por muito menos, o avô do atual presidente do Banco Central era alcunhado de “Bob Fields”. O próprio Bob Fields, que não era tolo nem despreparado, estaria certamente horrorizado com a inépcia do governo brasileiro.
Há boas chances, como se sabe, de os americanos nos ajudarem a desfazer um pouco essa vergonha, não reelegendo Donald Trump – outra figura desastrosa que os nossos tempos produziram. Bolsonaro perderia um ponto de apoio importante, conquistado à custa de muitas concessões unilaterais aos Estados Unidos. A vitória de Joe Biden seria a terceira boa notícia que colheríamos do exterior no final deste desgraçado ano de 2020. Não tanto pelas qualidades de Biden, mas pelas mazelas do seu adversário.
Porém, boas notícias no exterior não nos salvarão. Desnecessário frisar esse ponto. Um filme brasileiro de 2019 captou, de forma admirável, o nosso momento e o nosso desafio. Refiro-me a “Bacurau”, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Já escrevi a respeito dele na revista Carta Capital (“Espírito de Bacurau”, 10 de fevereiro de 2020). “Bacurau” foi considerado, com razão, um dos grandes filmes lançados no ano passado – e constitui mais uma prova da criatividade da cultura brasileira, que não só resiste como inspira e aponta caminhos.
O filme é realmente esplêndido. E catártico. Talvez profético. Uma demonstração maravilhosa de como o caricato, o surreal e o fantástico podem ser mais reveladores da realidade do que a “objetividade”, do que o simples e pedestre apego aos fatos, à argumentação e a narrativas convencionais. O que mostra o filme? Um vilarejo, no coração do sertão do Nordeste, sob ataque de estrangeiros, auxiliados por integrantes das elites nativas. E conta como os sertanejos, de armas nas mãos, encontram força para derrotar esses inimigos mortais. Um Brasil em miniatura.
Uma cena emblemática ficou na minha memória – aquela do casal de classes alta, que auxilia os invasores estrangeiros e tenta, sem sucesso, ser aceito por eles como iguais. “Nós somos como vocês”, dizem eles, sendo recebidos por sorrisos irônicos e comentários sarcásticos. Nenhuma cena resume melhor a relação entre os lacaios brasileiros e os estrangeiros, americanos ou europeus, a quem reverenciam e se subordinam voluntariamente.
Não vou repetir o que escrevi em fevereiro. Menciono apenas que terminei aquele artigo com a seguinte exortação: “Que o espírito de Bacurau esteja conosco neste ano da graça de 2020”.
Não aconteceu. Ainda. Terá de acontecer, em algum momento, antes cedo do que tarde, para livrar-nos de toda essa cambada de ignorantes, vigaristas e criminosos que se instalou no poder central. E que de lá não sairão em simples obediência à “vontade popular expressa nas urnas”. A eleição será, na melhor das hipóteses, como na Bolívia e no Chile, o desfecho ou a coroação de uma sucessão de conflitos e embates. Não será por meio de discursos, notas de repúdio ou deliberações parlamentares que as grandes questões do nosso tempo serão resolvidas.
Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista “Carta Capital” em 30 de outubro de 2020.
O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.
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