Diretamente da página na internet da Polícia Militar de Santa Catarina (segue o link para quem quiser ver por si só):
MISSÃO
– Proporcionar segurança ao cidadão, preservando a ordem pública através de ação de polícia ostensiva, de forma integrada com a sociedade, visando o exercício pleno da cidadania.
VISÃO
– Ser reconhecida pela sociedade como instituição de excelência na área de segurança pública.
VALORES
– Atuação com ética
– Responsabilidade social
– Comprometimento
– Hierarquia
– Disciplina
– Respeito aos Direitos Humanos e ao Meio Ambiente
– Melhoria contínua
Para seguir com esta reflexão, é necessário explicitar o fato que dá origem à necessidade de escrevê-la.
Nos primeiros dias de 2015 surge no Facebook um vídeo, compartilhado centenas de vezes, de uma abordagem policial em que utilizado um cão como suporte para conter um suspeito. Não temos informações, porque o vídeo não nos dá, do porquê desta abordagem ou da periculosidade do suspeito. Informações auxiliares – advindas, parece, da irmã do suspeito – dão conta de contribuir para esclarecer de quem se trata: um portador diagnosticado com esquizofrenia e que perambula pelas ruas da cidade, um possível alcoólico. No entanto, não obtemos informações sobre o perigo que oferecia aos policiais e o que havia feito que merecesse a atenção especial da Polícia Militar de Santa Catarina – PM-SC. Pois bem.
O que vemos no vídeo é um rapaz descalço e desarmado implorando para que seja contido o cão que lhe morde o braço. Vemos, portanto, o suspeito já contido – seja pela presença dos policiais, seja pelo cão que lhe morde – sofrendo o tão conhecido processo de humilhação surgido nesses momentos em que o poder é livremente exercido e demonstrado.
Os defensores das forças de segurança nos dirão, certamente, que a PM-SC, nas pessoas de seus agentes, agiu conforme o poder que lhe fora outorgado e que aos “cidadãos de bem” não se passam fatos como esses, porque se mantém, naturalmente, cidadãos de bem que são, distantes do risco de uma abordagem policial.
Um segundo ponto de vista que poderia vir a calhar em defesa dos agentes de segurança é que, dada a periculosidade do suspeito, podem se utilizar das ferramentas de que dispõem para manter-se em segurança e “neutralizar” o suspeito. Mas é aqui que surge uma importante questão: não dispõe a PM-SC de métodos mais eficazes e menos violentos contra a integridade física de um oponente que não seja um cão feroz?
A introdução desta reflexão traz, em três tópicos, a VISÃO, a MISSÃO e os VALORES da PM-SC. Ali se pode ler, sem muito esforço, que a PM-SC tem como visão “proporcionar segurança ao cidadão”, tem como missão “ser reconhecida pela sociedade como instituição de excelência na segurança pública” e tem como valor, um deles, o “respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente”.
Ao se assistir àquele vídeo, os policiais despreparados e o cão atacando aquele homem – para além do esforço necessário para imobilizar um suspeito –, o que se vê é, antes de tudo, uma negação exercida por estes policiais contra o que prevê ideologicamente a instituição policial do estado de Santa Catarina. Até aí quase nenhuma novidade, se lembrarmos o que se passou somente no último ano, com a sobre-força utilizada contra os manifestantes do Movimento Tarifa Zero ou mesmo com os professores grevistas da rede municipal de ensino.
O que incomoda é o fato de se poder escrever, neste início de 2015, que o que a PM-SC realiza contra o suspeito no vídeo não é qualquer novidade. Assim como incomoda a naturalização deste fato, como se fosse corriqueiro, cotidiano. O medo do homem que acompanha a filmagem e as lágrimas da suposta mulher que a realiza também são naturalizados: é tudo comum e não se pode tentar intervir neste processo. Fica claro que o poder está estabelecido e será exercido contra suspeitos e não-suspeitos, contra cidadãos “maus” e cidadãos “de bem”.
Sobre a utilização de cães, alguns pontos que merecem esclarecimentos:
1) Por que utilizá-los contra um sujeito desarmado?
2) Quais os critérios para a utilização de caninos em abordagens?
3) Se são utilizados para conter um suspeito, os policiais não deveriam agir tão logo o suspeito estivesse contigo?
4) Qual a eficácia de se utilizar desta terceirização do uso da força se se pode ver neste vídeo que, para além de machucar, o cão não tem eficiência alguma?
Esta terceirização da força a que me refiro seria pauta para algumas sérias reflexões e, inclusive, serviria de ponto de partida para que algumas questões fossem direcionadas ao comando geral da PM-SC, à espera de explicações. O que resta, porém, é esta sensação de que algo muito errado se passa; um desequilíbrio de forças que lentamente foi naturalizado e compreendido como normal na cidadania brasileira.
No entanto, antes de me despedir, somente proponho uma reflexão para os fatos vistos nas cenas perturbadoras do vídeo amador a que me refiro: sendo a PM-SC representante do Estado em terras catarinenses, não me parece louvável que se utilize de cães em abordagens contra suspeitos (porque um suspeito não é inocente, tampouco culpado). Pelo contrário: uma polícia que se diz querer trabalhar com ética não pode abrir espaço para a selvageria. Porque se assim for, não teremos mais uma força de segurança pública agindo em prol da segurança de seus cidadãos, mas partiremos (se é que ainda não partimos) para uma relação que em vez de policiais e cidadão se dará tão somente entre presa e predador.
E é isto, hoje, tão explícito nestas imagens, que necessitamos evitar. A PM-SC precisa retirar os cães das ruas. Sejam os animais, sejam os policiais despreparados.
* Marcelo Labes é escritor e acadêmico da 5ª fase de Ciências Sociais da FURB – Universidade Regional de Blumenau.
Blumenau, 15 de Janeiro de 2015.
Foto: Captura de imagem do vídeo