Biografias interiores para geografias imperfeitas (XIII). Por Marco Vasques.

Foto: Pixabay

Por Marco Vasques, para Desacato.info.

LEANDRO

Mesmo após apagar a luz do quarto, Leandro mantinha os olhos abertos. Navegava na respiração dos três irmãos, com quem dividiu, por muito tempo, o pequeno cômodo da casa ainda em construção. O grande desespero dele era sempre encarar o rosto assustador de seu pai, Lourival, que se fez homem enrijecido pelo tempo e pelos abandonos. Não conseguia, nem nos dias mais festivos. Por isso nunca erguia a cabeça para mirar os olhos dele. Com sua mãe, Lúcia, era diferente. A conversa sempre foi franca, honesta e permeada de carícias. Seus olhos amendoados de cigana nunca negaram conforto ao filho.

Lúcia e Lourival se instalaram no bairro Jardim Paraíso, um dos mais pobres e violentos da cidade de Joinville. Lourival, que era um goleiro promissor, chegou a ser chamado para jogar nas categorias de base do Flamengo. Mas foi impedido pela família de viajar e realizar seu sonho de criança. Quem o viu jogar, ainda hoje argumenta que não havia em todo o país quem agarrasse com tanta perícia. Acabou abrindo um bar na frente de sua casa, onde vive até hoje, servindo cachaça, butiá e cerveja para as almas desajustadas do bairro. Já Lúcia, nunca manifestou tristeza por cuidar dos filhos e do pedaço de casa sempre em construção. Pariu oito vezes e sorriu a cada nascimento. Havia muita luz no seu sorriso e no seu olhar. Talvez sua doçura tenha sido um modo de equilibrar a presença do corpo áspero de Lourival. Talvez.

A família numerosa, a escassez de recursos, a mão pesada de Lourival e o preconceito constante dos familiares que moravam em bairros ditos nobres fez com o núcleo familiar se fechasse e passasse a viver isolado. Nada pediram aos parentes mais abastados, mas também não deviam satisfação aos fofoqueiros de plantão.

O bar de Lourival dava para o básico e, aos poucos, os filhos foram crescendo, se casando e formando seus núcleos familiares. A casa, sempre em construção, começou, aos poucos, a se esvaziar. Quando finalmente conseguiu finalizar a construção, Lourival percebeu que restavam apenas ele, a mulher e Leandro, com quem trocava poucas palavras. Entre eles imperava o cruzamento de olhares e um silêncio constrangedor. É que Leandro, já na adolescência, fez questão de não esconder que só tinha olhos para os meninos. Na verdade ele nunca precisou revelar sua preferência, pois suas pulsões e desejos estavam estampados em seu gestual, em seu modo de se vestir, em sua fala e em seu modo de agir.

Como era de se supor, Lúcia acolhia o filho com sua ternura habitual, ouvia suas aventuras amorosas e dava a Leandro força suficiente para ignorar, por mais que isso doesse, a indiferença e a desaprovação estampadas na voz e nas expressões de Lourival.

Ocorre que a vida se encarrega de fazer suas próprias regras. O que está firme hoje pode ser abatido por um terremoto monumental e se esfacelar em minuto subsequente. A vida é uma fração delicada entre estar vivo e, no próximo passo, estar soterrado e sepultado. E Lúcia, que nunca havia fumado um único cigarro, descobriu um câncer no pulmão. Não demorou muito, a doença se espalhou. Veio a metástase. Sua voz firme, seu corpo moreno, cheio, que sempre exalou alegria e sensualidade, não foram suficientes para barrar o aparecimento de novos tumores. Lúcia não resistiu.

Lourival, como era de se supor, desabou da sua rigidez contumaz e se desesperou. Não conseguia entender o motivo de tanta provação. Encarou calado e com muita luta as dificuldades para criar sozinho os oitos filhos. Aceitou o abandono de seus dez irmãos, que gozavam de uma vida financeira razoável, com firmeza e resignação. Enfrentou toda sorte de adversidades para construir uma casa grande para os filhos, tanto que só conseguiu terminá-la quando restava apenas um deles em casa. Enfim, Lourival se enfureceu com o destino. Em seu pensamento ruminava a ideia de que não merecia tanto sofrimento.

Leandro foi o primeiro a perceber o desespero do pai. Ele teve a sensibilidade de sentir que seu progenitor seria capaz de alguma loucura. Sentiu que Lourival preparava algo de aterrado. Então Leandro, ainda nos primeiros dias da passagem de Lúcia, sentou-se no sofá em que Lourival dormia e acariciou o rosto rude do pai. Lourival, assustado, acordou e ficou fixado na imagem do filho, que chorava. Um choro suave. As lágrimas corriam pelo olhos, manchando os braços musculosos, porém magros, do progenitor. Leandro abraçou Lourival como se pedisse um milagre, abraçou-o como se desejasse dele não o perdão, mas um ato de salvação. Lourival, pela primeira vez, colocou Leandro no colo, como fez quando o menino nasceu. Ambos choraram por alguns minutos. Como o tempo é uma questão de ponto de vista das sensações, Leandro, quando fala sobre o assunto, diz que ali conheceu a eternidade. Hoje, Lourival e Leandro tocam juntos o bar no mesmo bairro e na mesma rua em que sempre viveram. São cúmplices de um amor que souberam reinventar.

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

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