Por Marco Vasques, para Desacato.info.
BIGODE
O bar que Bigode frequenta é um ancoradouro de dores, sonhos interrompidos, amores não realizados e amargores afundados em muito cigarro barato, cerveja de nomes estranhos e toda espécie de cachaça. Celso, o dono do bar, tem orgulho ao exibir sua vitrine com as inúmeras garrafas. Tem cachaça com tudo: casca de laranja, abacaxi, butiá, mastruço, cipó-mil-homens, butiá com mel. Enfim, a lista é enorme. A maioria dos fregueses de Celso é composta por homens de vida dura, simples e com pouca instrução. Há uma espécie de rudeza viva perceptível já no primeiro olhar.
Apesar da aparência inóspita, das faces cavadas de rugas promovidas pela renitente exposição ao sol, dos pés com peles endurecidas agasalhados em chinelos velhos, do gestual desajeitado e do desespero flagrante nos olhos e nos movimentos cambaleantes, o ambiente revela corações frágeis e desejosos de atenção. Bigode carrega um desses corações dotado de uma beleza incompatível com a face desdentada e a feição dura e áspera de seu corpo.
Sem a cachaça, são homens duros, empedernidos. São homens consumidos pelas mais de 12 horas diárias de trabalho exaustivo. Diz Elvira, a mulher de Celso, que a maioria ali é coração borrado e que choram após a segunda dose. Uns se abraçam; outros ficam num silêncio profundo. Há o Almir, que ao beber a primeira dose fica completamente embriagado e começa a se desculpar por tudo. Há muita dor esculpida no interior desses homens. Já Bigode, que faz questão de não revelar seu nome a ninguém, pois, segundo ele, foi e sempre será conhecido como Bigode, é a melhor voz das cantorias tradicionais da cidade.
Bigode canta entre um e outro copo de cachaça. E, ao cantar, seu corpo se modifica, seus olhos atingem um brilho incomum, suas mãos se movimentam no ar como se tocasse o paraíso. Bigode canta e se perde no mundo da cantoria porque parece não ver nada à sua frente além de sua voz, seu ritmo e suas canções. Nem o barulho estridente dos outros bêbados é capaz de tirar Bigode de sua concentração musical. Ele canta cantigas populares, músicas próprias e, para espanto de uns poucos observadores, desafia a si próprio em trovas infindas.
A batalha que Bigode trava consigo é carregada de uma delicadeza monumental. Há quem o chame de endoidecido desvairado, mas ele provoca a si mesmo e responde com versos doces. Bigode inventa seus próprios elogios. E, sob o balanço da cachaça, dirige a si mesmo palavras de saudade de outros tempos, lembranças da infância, desejos interrompidos. Bigode autobiografa seus sonhos e desejos mais íntimos. Inventa caminhos vividos apenas em sua voz. Quem vê Bigode, assim, cantando no meio de tanto barulho, sabe que ele mora dentro de suas canções.
VÍTOR
Homem respeitado no bairro, Vítor nunca foi dado a excessos. Gostava de uma jogatina. Apostava em tudo que é jogo, amava o carteado, mas só sentava para jogar se houvesse aposta. Embora um aficionado por jogos, nunca comprometeu seu orçamento em suas jogatinas. Para ele, jogo é coisa que tinha, obrigatoriamente, que envolver dinheiro, mas sempre era a quantia separada para a diversão (a razão sempre estava em seu horizonte e ele nunca ultrapassava esse limite).
Nos últimos tempos, com o avanço da pandemia, Vítor, que já passou da casa dos 70, começou a tomar sua cerveja em casa. Ele se confinou como nenhum outro homem do bairro. Ninguém mais via Vítor nas lotéricas. E olha que ele gostava! Suas tradicionais idas aos botecos vizinhos foram totalmente interrompidas. Dolores, mulher dedicada e cuidadosa, pedia aos filhos que fizessem as compras. Foi assim que Vítor viveu, até que foi encontrado deitado no sofá, com o controle da televisão nas mãos. Uns dizem que o coração de Vítor explodiu, não suportou tanto isolamento. Outros, ainda, desconfiam que a solidão foi a causa da morte.
Há ainda os que sequer sabem de seu falecimento, pois sua discrição em vida se estendeu à sua morte. Foi-se quieto, sozinho, sem provocar oração ou piedade alheia.
GRAZIELA
Ao acordar, com o corpo ainda aquecido pelo papelão que lhe serve de coberta todas as noites, Graziela beijou o rosto morto de Piloto, seu cão fiel há anos. O mundo, para Graziela, parou no beijo dado naquela face morta. O mundo parou, embora os passantes apressados nada tenham notado.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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