Averno: O melhor filme boliviano dos últimos tempos é uma viagem pela mitologia andina

El Averno era um bar feio e decadente no bairro Belén, na zona de San Pedro, creio que na travessa Belzu, perto da Rua Illampu, em La Paz, onde costumávamos ir de vez em quando para sentir-nos melhores discípulos de Jaime Sáenz. Não sei se esse era o nome porque não tinha placa.

Por Alfonso Gumúcio.*

Lembro que para entrar havia que agachar-se para passar a pequena porta de madeira e descer um lance de escadas que descansavam num espaço com uma vintena de mesas de madeira nuas e manchadas. Não fui assíduo do lugar porque nunca fui apreciador de álcool, nem sequer de cerveja, mas confesso que alguma vez acabei bebendo demais e dormindo embaixo da mesa depois de alguma longa discussão sobre literatura.

A culpa era do Jaime Sáenz porque havia agrupado (sem querer) em torno dele um círculo de admiradores incondicionais e criado um mundo literário embriagante de mistério e de morte, atrativo para nós que tínhamos vinte anos e muita vontade de escrever.

Nesses anos de juventude, eu o visitava em sua casa no final da Avenida Saavedra, em Miraflores, onde agora começa a Avenida de Los Leones, que antes não existia.

As visitas eram sempre pelas tardes, depois da sesta de Jaime. A tia Esther me abria a porta e às vezes eu tinha que esperar um pouco até que ele aparecesse despenteado com as suas mitenes de lã. Me mostrava as caveiras que estava desenhando sem levantar a pena do papel e me fazia escutar em sua vitrola de 78 RPM “Kantumarqueñita” de Adrían Patiño. Em uma dessas visitas tirei uma foto dele em seu terraço com ch’ullu e o Illimani ao fundo, que outros reproduziram a torto e a direito sem sequer me avisar.

Sua casa tinha a atmosfera de sua obra poética e do romance que estava escrevendo, Felipe Delgado, que pela primeira vez foi publicado por Jorge Catalano na Editorial Difusión em 1980. Bonecas, relógios, desenhos, fotos de sua estadia na Alemanha, o cristal que roubou da casa-museu de Goethe e, é claro, muitos livros.

Esta introdução é necessária para falar de Averno (2018) o mais recente longa-metragem de Marcos Loayza, uma das obras mais surpreendentes do cinema boliviano em várias décadas.

Falar de Sáenz tem muito sentido não apenas porque aparece como personagem no filme e porque cada cena aparece ser uma homenagem à atmosfera onírica de sua obra poética e narrativa, mas porque, além disso, Jaime era um apaixonado pela imagem, elaborava as colagens das capas de seus livros de poemas, desenhava caveiras e outras coisas, e talvez tivesse sido cineasta se nosso cinema estivesse mais desenvolvido quando ele era jovem.

Seu trabalho poético é, sem dúvida, cinematográfico em muitos sentidos, e quem melhor que Marcos Loayza, um desenhista compulsivo, criador durante as 24 horas do dia e da noite, para recriar essa atmosfera desbocada, tão surpreendentemente delirante e ao mesmo tempo atrativa e sedutora.

No entanto, a citação que abre o filme é de Proust, não de Sáenz: “a verdadeira viagem de descobrimento não consiste em buscar novas paisagens, mas sim em ter novos olhos”.

Tupah é um engraxate de 18 anos de idade que vive em El Alto e “desce” a La Paz a cada dia para trabalhar, ou melhor, para encontrar-se com seu grupo de amigos do mesmo ofício, que parecem não sair da mesma esquina todos os dias, como compelidos a isso por um força invisível similar à de El Ángel exterminador de Buñuel.

Nesse dia, e não outro (isto é fundamental), Tupah recebe 200 Bolivianos e a oferta de outra nota igual se conseguisse encontrar seu tio Jacinto, tocador de tuba na banda “Fusión Los Andes” para tocar no enterro de um militar. Aí se inicia um périplo que dura toda a noite, muito mais escabroso do que o de Paul Hackett no After hours de Martin Scorsese, porque no caso de Tupah sua vida está jogo a cada minuto.

Para buscar o tio Jacinto “Vino Tinto”, Tupah adentra na noite dos lugares mais escabrosos que teria podido imaginar. Na verdade, e isso faz desse filme algo extraordinário, cruza o umbral de uma dimensão paralela onde a vida e a morte se encontram. Pareceria um pesadelo, mas não o é, porque tudo o que Tupah vive é real, é experiência vivida de um mundo noturno ameaçador, povoado de personagens extraordinários e de símbolos que saturam o filme sem dar muito tempo para desentranhá-los.

É una obra barroca, que tem certo parentesco com os filmes de Guillermo del Toro, magnificamente fotografada (Nelson Wainstein), com cenários  (Abel Bellido) muito elaborados e significativos (com uma vênia ao cinema expressionista alemão), vestuários pensados até o último detalhe (Valeria Wilde), um trabalho inovador na trilha sonora (em duas sequências o rádio parece dialogar com os personagens, algo nunca antes “ouvido” no cinema boliviano) e cenas que uma após outra nos transportam a dimensões mais complexas, com em um jogo de internet no qual há que superar as primeiras provas para passar a um nível superior.

Tupah supera todas (menos as perguntas kitsch que lhe faz o “anchancho” da mitologia mineira boliviana, personagem tão estranho como jocoso que sai de uma pequena cova) em uma perseguição que não cessa, atravessando umbrais em direção a mundo paralelos onde enfrenta quadrilhas de delinquentes e aterrissa em bares que só existem de noite, que atrás da primeira porta, fachada ou salão encerram, cada um, outros espaços de atmosfera surpreendente, ambientes cada qual mais denso e tenso: “El Colosal”, “La Oficina”, “Nido de dragones” e “La Trastienda” para chegar finalmente a “El Averno”, o inferno de onde não sabemos se sairá com vida a menos que seja acompanhado pela serpente de fogo. Provavelmente não, lhe dizem todos, porque matou o “príncipe da noite” com uma punhalada: “Esta noite morrerás”.

De todos esses ambientes, o que me fascinou por seu surrealismo foi “La Oficina”, onde para entrar há que apresentar documentos em ordem. Dentro, em apertadas escrivaninhas com máquinas de escrever e papéis, trabalham e bebem uma série de personagens inexplicáveis, e a única maneira de sair dali não é o regresso, mas um labirinto onde Tupah tem que se enfrentar e fugir do minotauro que o persegue. Esse caminho sem volta é o que caracteriza toda a história e justifica a frase de Proust, salvo o final, inexplicável embora demasiado explícito.

O lugar “real” nesse mundo onírico é a casa de Jaime Sáenz, notívago conhecedor de todos os passos na noite de Chuquiago, onde a figura de Santiago de los Caballeros é emblemática, ao ponto de o próprio Jaime Sáenz, na cena seguinte, aparecer transfigurado em Santiago para salvar Tupah do bando que o persegue. Salvam-no também belas prostitutas e uma poderosa contrabandista, porque de alguma maneira para todos eles Tupah representa a tenacidade que nenhum deles tem para chegar ao final, ao inferno representado no El Averno (“Cuspa antes de entrar”), onde estão tanto burocratas corruptos como prelados da igreja.

Personagens como o anchancho ou Lari-lari, Roberto Lara, ou o kusillo da batalha final consigo mesmo, enriquecem esse afresco misterioso que parece se refletir nos grafites noturnos de La Paz, que já no olharemos com a inocência de antes.

A viagem empreendida por Tupah não é para cumprir um compromisso, como a narrativa linear poderia sugerir, mas sim uma viagem de descobrimento de si mesmo para sair da mediocridade e da monotonia da sua vida. Seu trajeto noturno permite que encontre em si mesmo uma força de vontade que desconhecia, um temperamento persistente e teimoso, que o personagem revela pouco a pouco sem necessidade de que o ator recorra a gestos grandiloquentes e melodramáticos. Pelo contrário, Paolo Vargas (Tupah) é um anti-herói que mantém um registro de interpretação muito controlado, uma espécie de Buster Keaton que não muda de expressão diante da adversidade porque tem a certeza de vencer todos os obstáculos.

O mundo onírico que nos oferece Averno nos subjuga, rompe com tudo o que antes pudemos ver no cinema boliviano, embora possa ter algum parentesco sombrio com a expressão plástica em El cementerio de elefantes de Antezana ou no Viejo calavera de Russo. Em Averno, cujo título de produção era “Arcano Katari”, o registro realista se confunde com a narrativa onírica de tal maneira que não é possível separá-las, por isso é que o final do filme é desnecessário e ao meu ver, fica sobrando: é uma aterrissagem forçada, um retorno ao cotidiano quando já não pode existir “normalidade” para Tupah, que já não é mesma pessoa, que já não pode passar seus dias em uma esquina conversando banalidades com seus amigos.

Esses três minutos do final, em que vemos Tupah com seus colegas engraxates na esquina de sempre e casualmente vemos passar por aí, nessa esquina da calle Pichincha o enterro do militar, são o equivalente a uma bordoada de realidade, que aniquila a magia em que estávamos envolvidos.

Creio que assistir outras vezes a este filme de Marcos Loayza permitiria descobrir outros elementos que em uma primeira visão não são facilmente percebíveis. A apreciação da obra se veria sem dúvida enriquecida voltando a ela várias vezes, como sucede com alguns dos filmes magistrais da história do cinema, porque é uma obra cheia de símbolos cabalísticos, esotéricos y maçônicos, que embora não contribuam para decifrar códigos, constroem a atmosfera do desconhecido, do que está por descobrir.

Imediatamente depois da primeira projeção, quando o próprio diretor via por primeira vez o filme completamente terminado, eu lhe perguntei sobre a gênese do filme, qual tinha sido a imagem originária da qual partiu todo o projeto: “Não é um sonho meu, são imagens coletivas de todos os bolivianos, de todos os andinos”. Em seu processo de criação, me disse, foram sendo incorporados elementos simbólicos de muitos grandes criadores de nossa identidade cultural, tanto aqueles que se remontam a momentos prévios da nossa existência como país (Guamán Poma de Ayala), como os contemporâneos (Jaime Sáenz, Raúl Lara, Humberto Jaimes Zuna, Antonio Eguino, René Bascopé, Víctor Hugo Viscarra, entre outros).

“Já perdi o rastro de onde saiu tudo isso. Creio que a motivação era sair do acostumado com outro tipo de herói. Não havia uma só imagem dominante, Queria uma história mítica, não apenas dramaturgicamente correta. É um filme complexo, tudo o que está nela por alguma razão será”.

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