Segundo dados do IBGE, divulgados em 17 de setembro, o número de brasileiros que enfrentam insegurança alimentar grave subiu 43,7% em cinco anos. Em 2018 havia no Brasil 10,3 milhões de pessoas nessa situação, contra 7,2 milhões em 2013. Conforme a pesquisa, entre a população de 207,1 milhões, 122,2 milhões eram moradores em domicílios com segurança alimentar, enquanto 84,9 milhões viviam com algum nível de insegurança alimentar. Deste último conjunto, 56 milhões estavam em domicílios com insegurança alimentar leve, 18,6 milhões, insegurança alimentar moderada, e 10,3 milhões de pessoas em domicílios com insegurança alimentar grave.
Na insegurança alimentar grave há falta drástica de alimentos também entre as crianças, ou seja, é uma situação onde toda a família está passando fome. Segundo o IBGE, nas zonas rurais, a insegurança alimentar grave é muito mais comum do que nas cidades. Quase metade das famílias do campo vivem com algum grau de insegurança alimentar, sendo que 7,1% apresenta insegurança grave. Nas cidades esse percentual é de 4,1%. Como até as pedras já sabiam, a esta altura, o Brasil voltou ao Mapa da Fome da ONU, no qual estão os países onde mais de 5% da população ingere menos calorias do que o recomendável. Já se sabia que, desde 2016, a desigualdade social tinha explodido no Brasil, como revelam todos os indicadores de distribuição de renda. O retorno do aumento da fome era uma questão de tempo.
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Os dados da pesquisa do IBGE são mais um grave indicador da piora das condições de vida da população. Dados divulgados também pelo IBGE mostram que há 12,8 milhões de pessoas desempregadas. Além dos quase 13 milhões de desempregados, 27 milhões que gostariam de trabalhar, mas foram considerados fora da força de trabalho em agosto, por não terem buscado ativamente uma ocupação. A grave piora recente dos indicadores conjunturais se soma à uma situação estruturalmente muito aguda. No Brasil, os 50% mais pobres em termos de renda têm apenas 10% da renda total, enquanto os 10% mais ricos têm mais de 50% do total. No que se refere à propriedade a situação é ainda pior: os 50% mais pobres detém 2% ou 3%, enquanto os 10% mais ricos detém entre 70% a 80% de tudo.
Quando surge uma notícia dessas, como a do aumento da fome, é curioso como técnicos, economistas, especialistas, ficam dando “dicas” e “conselhos” ao governo de como proceder para resolver os problemas. Mas os problemas não são técnicos, são de caráter eminentemente político. Não adianta ficar aconselhando Bolsonaro a aumentar o número de beneficiários do Bolsa Família ou sugerir que financie a agricultura familiar, porque a destruição de tais políticas é um Plano de Governo. Esses não são “equívocos” do governo, mas resultam de uma política de destruição deliberada. O golpe foi dado para isso: retirar direitos, entregar riquezas, aumentar a fome. É fundamental entender o quadro conjuntural colocado porque as ações encaminhadas dependem da correta compreensão dos problemas.
O que estamos assistindo no mundo todo, especialmente na América Latina, é uma decomposição dos regimes políticos, que anteriormente, ainda procuravam manter uma fachada de democracia. Onde antes havia uma democracia meia-boca, com baixo nível de participação popular e grande concentração de renda – caso do Brasil – assistimos agora a uma franca e rápida deterioração dos regimes. Ao invés de democracias limitadas, permanece apenas uma cobertura democrática, que esconde a verdadeira natureza dos regimes políticos.
A eleição presidencial brasileira de 2018 mostrou bem esse processo. Através de uma série de mecanismos jurídicos e políticos ilegais, que nada têm a ver com democracia, tiraram do páreo o cidadão que iria ganhar as eleições, numa operação diretamente coordenada pelo império americano, como inúmeras denúncias recentes revelam. Apesar do Brasil ser o maior pais envolvido nesses processos, não é um fenômeno brasileiro. Realizaram golpes no subcontinente inteiro. Com metodologias adaptadas à cada país, mas muito semelhantes: utilização da grande mídia, envolvimento do judiciário, das forças armadas, demais forças policiais, guerra de desinformação. E muito dinheiro envolvido. O que sabemos hoje (que já é de assustar) é somente a pontinha do iceberg, há muito o que ser revelado.
Um exemplo dentre muitos: logo após o golpe na Bolívia foi noticiado que o general que exigiu a renúncia do presidente Evo Morales, Williams Kaliman, recebeu um milhão de dólares do Encarregado de Negócios da Embaixada dos Estados Unidos em La Paz, Bruce Willianson. O general traidor ganhou também um visto de residência permanente nos EUA, onde foi se esconder. Convenhamos que um milhão de dólares foi um preço muito baixo, em troca da pátria e da própria alma. É bom prestarmos atenção no caso boliviano, porque, à exemplo do Brasil, lá a oposição está achando que resolve o problema exclusivamente através de eleições, mesmo sendo estas completamente controladas pelos golpistas.
Mas o golpe foi subcontinental, tendo começado com Honduras (2009), Paraguai (2012), Brasil (2016), Bolívia (2019). E também outros países, utilizando metodologias um pouco diferentes, inclusive em combinação com processos eleitorais farsescos. Ao contrário da maioria dos países onde houve golpe, no Brasil promoveram a farsa do impeachment em 2016 e, em 2018, tiveram que gerar um processo-farsa para impedir que o candidato favorito das eleições, participasse, pois poderia vencer o pleito, colocando o golpe na estaca zero. Bolsonaro, portanto, é cria de um golpe de Estado, mas também de uma fraude eleitoral. Ambos os processos contaram com a criminosa colaboração secreta de órgãos de inteligência norte-americanos, como agora está mais do que evidenciado.
O que se vê na América Latina como um todo são regimes políticos com aparência de legalidade, mas que reprimem as forças populares e nacionalistas. No caso do Brasil, já vivemos sob uma ditadura, cujos poucos espaços democráticos vão sendo gradativamente espremidos. O que temos no Brasil já é um arremedo de democracia. O aumento da fome e da pobreza, são uma face deste processo de golpe e de deterioração do regime político. O povo está sendo massacrado, estão desmontando o Estado, estão acabando com o que restou de direitos no país. Claramente a sociedade brasileira caminha para a direita, como mostram a matança de lideranças populares, a destruição sistemática de direitos sociais e sindicais, o aumento da fome e a proliferação de grupos fascistas cada vez mais agressivos.
Apesar do evidente avanço dos golpistas, eles não conseguiram viabilizar uma estabilidade política no país, o que seria crucial para a acomodação do golpe de 2016. Como, aliás, mostram os dados do IBGE, sobre a fome. Assim, permanece uma grande polarização no seio da sociedade. Essa instabilidade está relacionada, por sua vez, ao fato de que o governo não conseguiu apresentar uma solução para a crise econômica. Sintoma disso: entre janeiro e agosto deste ano, US$ 15,2 bilhões deixaram o Brasil, maior volume para o período desde 1982, quando o Banco Central começou a fazer a estatística. Além disso, os especuladores estrangeiros retiraram R$ 87,3 bilhões da Bolsa brasileira entre 1º de janeiro e 17 de setembro. Este valor, quase o dobro dos R$ 44,5 bilhões que “voaram” durante todo o ano passado, significa a maior fuga de capitais da série, que começou em 2008.
Alguns economistas (e congêneres) costumam cumprir, diligentemente, o papel de “bonecos de ventríloquo” dos bancos. Propõem como saída para a crise, a aceleração e o aprofundamento do programa de Paulo Guedes, que se limita a destruir direitos da população e entregar patrimônio público, quase de graça. Mas e quando o Brasil não tiver nada para entregar a preço de banana? E quando as reservas internacionais, deixadas pelos governos pré-golpe forem esgotadas? E quando não tiver mais nada para extrair da população trabalhadora, a não ser a sua própria pele?
Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que dá as cartas, de fato, em toda a América Latina), quer mais e precisa extrair mais do país. Toda a destruição de direitos, o enfraquecimento dos sindicatos, a entrega de patrimônio, o fatiamento da Petrobrás, o aumento da fome, tudo isso não significa uma saída que satisfaça os setores que financiaram e coordenaram o golpe no Brasil. Como já sabíamos ainda em 2015, o estrago está só no começo.
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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
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