Por Cintia Alves.
O conceito de audiência pública foi estuprado pelo Ministério da Saúde, sob o governo Bolsonaro, nesta terça-feira, 28.
Convocada para debater os termos de uma cartilha com orientações sobre como o aborto legal deve ser tratado nos serviços de saúde pelo Brasil, a audiência pública – que deveria ser aberta à sociedade e paritária na representação de ideias – foi completamente desequilibrada, gerando relatos de nojo, revolta e indignação entre alguns participantes.
A cartilha já havia provocado polêmica quando de sua divulgação, por afirmar que aborto legal não existe no Brasil e defender que as mulheres vítimas de estupro sejam investigadas após a interrupção da gravidez.
Na audiência de hoje, os participantes contrários ao aborto defenderam que os restos do feto sejam encaminhados para exame de DNA.
Sob o comando de um presidente que criminaliza o aborto como bandeira eleitoral, o Ministério da Saúde fez a audiência a toque de caixa, restringindo a participação de instituições que defendem o aborto legal – um direito da mulher desde a década de 1940.
Parlamentares conservadores como Bia Kicis, Eduardo Girão, Janaina Paschoal, além de médicos dissidentes que não apoiam o aborto nas situações previstas em lei, estavam entre os debatedores. Até mesmo a juíza Joana Zimmer, que impediu o aborto de uma menina de 11 anos estuprada em Santa Catarina, foi convidada – mas não compareceu.
PARTICIPANTE FICA INDIGNADA COM POLITIZAÇÃO DO TEMA
Representante da Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência, a socióloga Lia Zanotta Machado avaliou que o debate foi prejudicado pelas restrições às instituições que defendem o aborto legal. “Faltou muito mais para fazer um debate na sociedade sobre aborto legal”, disparou.
“Faltaram inúmeras instituições que são favoráveis à autonomia e proteção das mulheres. Elas não vieram. Houve pedido de adiamento. Não foi colocado como tal. Houve um debate restrito em termos de pessoas e suas expertises. (…) todas falaram em criminalizar toda e qualquer mulher que venha a abortar. Isso não foi escolhido certo, na medida pareada, com pessoas que representam expertise e instituições. Faltaram instituições que defendem os direitos das mulheres.”
A cientista social também ficou visivelmente indignada com a politização do tema. Em vez de debater os procedimentos de acolhimento às mulheres e meninas a partir do aborto já previsto em lei, a audiência se prestou a palanque de militantes ideológicos contrários ao aborto em qualquer situação.
“Essa cartilha é sobre aborto legal. Não dá para juntar uma ideia contra a legalização do aborto. É: o que é aborto legal, como as mulheres tem que ser acolhidas quando são estupradas. Temos que pensar nisso, a cartilha é pra isso. Não é o momento de discutir legalização do aborto. Isso é coisa séria. Tem código penal. Tem a parte médica, de acolhimento, a parte antropológica. Dizer que aborto clandestino não existe? Tem inúmeros estudos absolutamente importantes que mostram que o aborto clandestino é sim causa de morte materna e devemos cuida disso. Mas o que devemos pensar é rever na cartilha que aborto legal existe sim, e como acolhemos as mulheres que já foram estupradas e não podem sofrer um segundo trauma.”
“ENOJADA E REVOLTADA”
A deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL) interrompeu a audiência pública para fazer uma manifestação, mesmo sem ter sido convidada.
“As mulheres brasileiras ficam em pânico e enojadas. Eu fico revoltada e enojada que dinheiro público esteja sendo utilizado para promover um evento que prega misoginia, o ódio às mulheres e meninas brasileiras”, comentou.
Na visão da parlamentar, o governo Bolsonaro nada faz para “punir os estupradores. Aqui se promove investigações contra as estupradas. Quero saber porque esse governo não gasta sua energia e orçamento público para ir atrás dos estupradores”, provocou.
Sâmia afirmou ainda que seu mandato irá questionar na Justiça a cartilha do Ministério da Saúde. “Vamos à Justiça derrubar esse documento que faz caça às bruxas contra as meninas que são estupradas.”
Veja a lista de convidados:
- Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia – Febrasgo Prof. Dr. Osmar Ribeiro Colas
- Conselho Federal de Medicina – CFM Allan Cotrin do Nascimento e Gieselle Crosara Lettieri
- Academia Nacional de Medicina
- Sociedade Brasileira para progresso da ciência – Dra. Lia Zanotta Machado
- Fiocruz – Nísia Trindade Lima Indicação: Dr. José Paulo P. Júnior – IFF/FIOCRUZ
- Dra Lenise Garcia
- Dra Luciana Lopes
- Conselho Federal de Enfermagem
- Ivone Abolnik;
- Valerie Huber – Conselheira do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump
- Margareth Martins Portella – Conselheira do Cremerj
- Dr. Ubatan Loureiro Júnior
- MMDHF – Representante Angela Gandra – Secretária Nacional da Família / Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
- Conselho Federal de Psicologia – CFP Indicação: Alessandra Santos de Almeida
- Ana Muñoz dos Reis – Secretária Nacional de Políticas para as Mulheres / Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
- Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto e em Defesa da Vida – Coordenação: Dep. Chris Tonietto
- Senador Eduardo Girão
- Deputada Bia Kicis
- Deputada Janaina Paschoal
- DPU – Defensor Público Geral Federal – Daniel de Macedo Alves Pereira Indicação DPU: Dra. Daniela Corrêa Jacques Brauner – Coordenadora do Grupo de Trabalho Mulheres
- CNMP – Conselho Nacional do Ministério Público – Presidente: Antônio Augusto Brandão de Aras
- Ives Grandra Filho – Ministro TST
- Defensor público Danilo de Almeida Martins
- Juiza Joana Ribeiro – titular da comarca de Tijucas
- CONDEGE – Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais – Nalida Coelho Monte
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