Por Gilliam Mellane Ur Rehman, para Desacato.info.*
Nos últimos anos, o mundo vive um fenômeno de ascensão da extrema direita fascista em vários países do globo. Não podemos caracterizar esse fenômeno com iguais mecanismos e formas de se manifestar, nos lugares em que se estabeleceu. Ele assume características particulares em cada lugar e cria um “inimigo” na sociedade onde passa a conduzir e, no geral, faz das minorias, esse inimigo. Assim podemos analisar, por exemplo, a perseguição acentuada a muçulmanos nos últimos tempos, na Europa e Estados Unidos. Essa perseguição pode ser fruto dessa fantasiosa criação de um mal que necessita ser combatido pela representação política direitista conservadora, nacionalista e autoritária, que executa as ações fascistas em suas gestões. Facilmente, a xenofobia, o racismo, o preconceito de gênero e fundamentalismos de toda sorte, são pontos comuns observados nesses governos. A esquerda, comunismo, movimento feminista, minorias religiosas, movimentos de luta por terra, movimentos sociais em geral, tornam-se inimigos que precisam ser extirpados daquela sociedade.
A lógica dos governos fascistas consiste na criação de males no imaginário social, e o governo é o restaurador da moralidade, da fé, da família tradicional.
O discurso inflamado, carregado de resgates morais, o apelo ao tradicionalismo social, à uma sociedade ordeira, torna-se simpático tanto para a elite quanto para as massas, e esse “acolhimento político” pode ser pensado sob uma ideia de populismo de direita, como muitos cientistas políticos fazem.
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Considerando que populismo é um movimento de apoio político às massas, contra a elite, pensar em um “populismo de direita” é esvaziar e descredenciar esse posicionamento político e algo longe de uma ressignificação. Essa análise é totalmente concernente quando conhecemos o que foi o período varguista no Brasil, o peronismo na Argentina, ou o cardenismo mexicano e outros.
Mas qual seria a explicação para a ascensão da extrema direita, não só na América Latina, senão em vários outros países europeus? E quando pensamos nessa ascensão, ela não diz respeito apenas a essa forma de governo, mas é toda uma estrutura de partidos com uma ampliada base eleitoral que direciona a dinâmica política vigente.
Como pensar em determinantes para contextos tão diferentes, considerando que é um fenômeno mundial? Tentarei de forma muito humilde, levantar algumas possibilidades, observando, sobretudo, o fascismo que vivencio e que já furou a bolha da esfera político-partidária e já se impregna nas relações sociais.
Vamos voltar à criação dos inimigos sociais. O capitalismo ele não só degenera a relação do indivíduo com as questões econômicas, o que se deve projetar acerca de uma acumulação saudável, ao longo da vida – se é que isso existe – de como lidar com as relações de poder dentro do trabalho; com as hierarquizações; de como o indivíduo se conecta com estratos sociais a partir da acumulação de bens e etc, mas degenera a mente individual e consequentemente coletiva.
Discutirei uma análise psicológica, fundamental para entendermos as razões que adoecem a sociedade, mas acredito que esse processo patológico é visível a todos, o que me permite fazer essa reflexão e avançarmos em nossas considerações. Ocorre que, a tentativa por transformar as diferenças humanas, em uma cultura homogeneizada, reflete em um medo potencializado nos indivíduos, o que conduz a reações violentas para manter as coisas em uma ordem que consideram a forma correta de nação: um nacionalismo deformado, onde não cabem manifestações de classes, religiões diferentes da maioria, etnias fora dos “padrões” desta ou daquela nação, comportamentos sexuais libertários, orientações sexuais fora do escopo heteronormativo, feminismos organizados. Penso que as análises psicológicas, são mais válidas nesse contexto, do que as análises de viés econômico, tendo em vista que, muitos países que atravessam essa fase, não se encontram em cenário de crise econômica tal qual o Brasil, por exemplo.
Pensando no Brasil, é necessário dialogar com os dois pontos, psicológico e econômico, pois a crise de 2008 não nos chega tão suave como profetizou o nosso querido Lula. Penso ser bem mais perigoso, crises que chegam devagar porque vão minando pouco a pouco a economia e, ao mesmo tempo, falseando o quadro e dificultando as margens de ação. Sem nos alongarmos aos desdobramentos da crise, a mesma foi uma grande escada para que o espaço se tornasse o palco ideal das desordens sociais e o terreno fértil para que ideias conservadoras ganhassem popularidade. Neste cenário do medíocre Jair Bolsonaro, a esquerda perdida não consegue alinhar-se na recuperação da credibilidade para derrubar um candidato raso, grotesco, mas com um aparato fascista indiscutível.
O discurso central do fenômeno bolsonarista gira em torno do grito contra a corrupção, desvio político recorrente no Brasil, mas sabiamente evidenciado pela direita, nos governos esquerdistas. A partir da conquista da indignação popular por meio do apelativo discurso anticorrupção e fomento do ódio pela esquerda e as demais conexões atribuídas a ela, como o comunismo, os movimentos sociais, o feminismo, fica fácil contaminar uma sociedade com um duplo padrão moral, com as ideias de racismo, homofobia e fundamentalismos religiosos.
Bolsonaro montou um discurso anticomunista sem nenhuma base de experiência real que o país tenha vivenciado à luz de um sistema comunista. Usou e abusou da ignorância política brasileira e demonizou o Partido dos Trabalhadores – hoje muito mais alinhado a um centro do que à esquerda raiz – e movimentou uma parcela considerável do país a hostilizar partidos e movimentos alinhados aos setores esquerdistas. Claramente instrumentalizado – pois é notório que o presidente não é capacitado para nenhum tipo de projeto político por si só – mostrou um plano econômico ferrenhamente neoliberal, privatizador e totalmente escancarado a investimentos estrangeiros, o que o torna um gestor perfeito para representar os interesses das classes dominantes. Em contrapartida, soube – ou lhe foi orientado ser identificado com a fanfarrice do homem rude – facilmente encontrado entre as massas, criando uma zona de identificação.
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O apelo à repressão policial militar o tornou agradável aos mais pobres, já cansados da violência dupla que sofrem das facções criminosas e das corporações institucionais, entendendo que estarem sob o chicote do Estado, é mais seguro do que o fuzil do traficante, numa espécie de sublimação que, fazendo-os julgarem-se “pessoas de bem”, também fez com que se vissem partícipes do projeto político elitista, via agenda conservadora, do bolsonarismo.
Ademais, também tornou a liberdade feminina, uma afronta ao comportamento estabelecido pelas denominações religiosas e, portanto, um apelativo para que sejamos “belas, recatadas e do lar”. Sua associação com os setores mais reacionários do cristianismo, seja ele católico ou evangélico, visa não apenas o restabelecimento de uma pseudomoralidade, a desumanização do comportamento sexual; a perseguição a indivíduos de orientação sexual diferente; a perseguição às demais religiões; as perseguições étnicas; as teorias negacionistas de nosso manchado passado histórico; o desrespeito à cultura e à ciência – mas penso ser um projeto muito mais perverso e parte de um processo também imperialista. A colonização não mais territorial apenas, mas ideológica.
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Gilliam Mellane Moreira Ur Rehman* é formada em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), pós-graduada em Sociologia das Interpretações do Maranhão, estudante de Fotojornalismo na faculdade Cruzeiro do Sul, Presidente do Instituto de Estudos e Solidariedade para Palestina Razan al Najjar -MA, ativista muçulmana, feminista, membro da juventude Árabe Palestina Sanaúd, membro da coordenação nacional dos Comitês Islâmicos de Solidariedade.
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