“As polícias ainda estão orientadas por uma lógica de Estado de exceção”

maria-do-rosario-252x300Ex-secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, a deputada federal Maria do Rosário conversou com Fórum sobre a sua gestão e os problemas que envolvem o Congresso Nacional

Por Ivan Longo.

Em 1º de abril deste ano, Maria do Rosário Nunes deixou seu cargo na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que tem status de Ministério, para se dedicar a seu mandato como deputada federal pelo PT (RS), cargo que assumiu em 2002, tendo sido reeleita em 2006. Ideli Salvatti assumiu o seu lugar na Secretaria.

Gaúcha nascida em Veranópolis, Maria do Rosário é formada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sendo especialista em estudos sobre violência doméstica pelo Laboratório de Estudos da Criança da Universidade de São Paulo (Lacri/USP), além de ser mestre em educação e violência infantil também pela UFRGS.

Sua formação se reflete nas pautas que defende como deputada e nos temas que procurou abordar como secretária de Direitos Humanos. No Congresso Nacional, Rosário foi relatora da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investigou as redes de exploração sexual de crianças e adolescentes e foi presidente da Comissão Especial da Lei Nacional da Adoção. Na pasta de Direitos Humanos da Presidência, reestruturou o sistema de conselhos tutelares e viabilizou a criação e instalação da Comissão Nacional da Verdade.

Em mais de quarenta minutos de entrevista à Fórum, a deputada falou sobre avanços conservadores e fundamentalistas no Congresso Nacional, reforma e reestruturação das polícias, Lei da Anistia, políticas de drogas e avanços e desafios para o Brasil na sua área, os direitos humanos.

Revista Fórum – Qual avaliação a senhora faz frente à sua gestão na Secretaria de Direitos Humanos?

Maria do Rosário – Foi um período muito intenso de trabalho e o objetivo central deste período estava delineado em alguns objetivos específicos. Sob o ponto de vista mais geral, a ideia que levei para a pasta era a de trabalhar direitos humanos de uma forma a disseminar essa cultura, de falar mais de direitos humanos na sociedade brasileira. Isto é, fazer uma abordagem ampla da temática a partir de diferentes áreas e conseguir conscientizar a sociedade brasileira para o amplo contexto da defesa dos direitos humanos no país como uma questão da democracia, como um elemento de fortalecimento democrático do país. Este era o objetivo geral. Entre os objetivos específicos, tinha o seguimento a trabalhos que foram desenvolvidos no período do Paulo Vanucchi, do Nilmário Miranda e do próprio Paulo Sérgio Pinheiro. Esse engajamento de ações que o país fez particularmente no período do Nilmário e do Paulo.

Meu objetivo inicial era a Comissão Nacional da Verdade, o mecanismo de combate à tortura, a consolidação de uma política de direitos da criança e do adolescente, da pessoa com deficiência e da pessoa idosa. O fortalecimento da área de combate ao trabalho escravo e a questão LGBT também eram pontos importantes. Então, nessas áreas, vejo que a gente conseguiu avançar. Nós tínhamos objetivos e cumprimos essas metas nesses três anos e três meses em que estive à frente. As metas que avalio dentro do meu discurso de posse realmente puderam ser cumpridas, ainda que em direitos humanos sempre exista uma incompletude.

Fórum – Tem algum objetivo que gostria de ter cumprido e não conseguiu? Em que ainda falta avançar?

Rosário – Olha, ainda que eu avalie que nós trabalhamos e cumprimos as metas do período, considero que ainda temos que avançar em tudo quando falamos de direitos humanos. Por que termos cumprido um rol de metas não significa termos enfrentado a centralidade da violência que está presente na sociedade brasileira, com violações cotidianas aos direitos humanos, e agravadas em um último período por um discurso contra os direitos humanos, que vai formando uma cultura que condena e julga os defensores desta área. Mas há alguns aspectos que citaria como preponderantes desafios do atual período e do próximo. Por exemplo, a redução do número de homicídios no Brasil. Nós temos 50 mil pessoas mortas ao ano. O Brasil tem uma legião de pais, mães e familiares que perdem seus filhos – por que, no geral, são jovens que morrem – e que nunca mais essas famílias vão viver a alegria de uma convivência. Então, temos uma sociedade que está sofrendo terrivelmente pelos índices de homicídios. A violência policial é necessário enfrentar, a situação do sistema prisional no país também é muito grave. Acho que nós não caminhamos suficientemente nesse terreno no nosso país. Saímos de em torno de 90 mil presos em 1990 e hoje nos temos 550 mil pessoas presas. Não trabalhamos em nada a possibilidade real de ressocialização e melhoria das condições prisionais e cumprimento da legislação. Estamos muito atrasados na questão prisional. E ela amplifica a violência que já existe.

Uma outra área em que há uma violência muito grande, por fatores distintos e por que certa matriz conservadora tem dificultado o avanço desse segmento, é a área LGBT. O Brasil não tem nenhuma legislação que trate dos direitos da comunidade, das pessoas, a partir da diversidade sexual. Isso é um atraso. Isso demonstra que estamos muito atrasados quando falamos de direitos civis e direitos humanos de um modo geral, reconhecendo a diversidade e a orientação sexual. O país está muito atrasado.

Fórum – Quais seriam então, resumidamente, os principais avanços da pasta na sua gestão?

Rosário – Posso citar a Comissão Nacional da Verdade, que foi o mote pelo qual conseguimos que a sociedade brasileira debatesse amplamente o tema do período da ditadura e que está cada vez mais próxima de debater as instituições como elas se encontram na atualidade, sejam as universidades, as polícias, os presídios. Então, a Comissão Nacional da Verdade é um elemento desencadeador de um processo de participação e consciência da sociedade brasileira sobre a matriz autoritária que a constitui. Eu a destaco com bastante importância.

Destaco também a gente ter conquistado a legislação que trata sobre o combate à tortura, o Mecanismo e o Sistema Nacional de Combate à Tortura, que ficou pronto para ser implementado. Serão onze peritos que vão viajar o Brasil e entrar nas instituições sem autorização judicial prévia. Eles estão autorizados a fazer o mapeamento de situações de tortura em qualquer instituição fechada.

Fórum – Mas isso vai ser implementado ainda, certo?

Rosário – Isso. A lei foi aprovada e o decreto, estabelecido, lancei o edital, e agora a presidenta Dilma está escolhendo os membros do comitê nacional que vai escolher os peritos. Nós conseguimos também colocar o CDDPH (Conselho de Defesa da Pessoa Humana) e a Ouvidoria Nacional em muitos lugares do Brasil, atendendo à questão indígena, quilombola, violência urbana, desocupações urbanas. O Conselho de Direitos Humanos fez resoluções importantes contra o uso de armamentos de menor potencial de letalidade, apoiou jornalistas vítimas de violência no contexto das manifestações… Então eu destaco isso como áreas importantes.

Acredito que avançamos bastante na área da infância, criando uma cobertura de responsabilização maior do governo federal na formação e equipagem dos conselhos tutelares no Brasil. Foi a primeira vez que o governo federal fez isso. Nós equipamos mil e duzentos conselhos tutelares em 2013 e a intenção este ano é ter mais de mil novos equipados, com carros, computadores. Estamos interligando esses conselhos em rede e lançamos um programa importante que é o Viver Sem Limites, na área de direitos da pessoa com deficiência, que foi muito inspirado na vontade da presidente Dilma. Foi uma iniciativa dela própria, de reunir as pastas pra garantirmos direitos humanos das pessoas com deficiência no Brasil.

Fórum – Que análise você faz do avanço do fundamentalismo por meio das bancadas conservadoras, ruralista e religiosa, por exemplo, e também na sociedade?

Rosário – Olha, enxergo como um elemento gravíssimo do contexto político brasileiro atual. Por que a Constituição de 1988, formada a partir de um sentimento de necessidade democrática no Brasil, produziu elementos fundamentais, como o conceito de Estado laico e de igualdade de direitos entre homens e mulheres. Os fundamentos da Declaração Universal de Direitos Humanos foram incorporados ao Brasil e hoje temos uma Constituição Federal. O que estamos percebendo, no entanto, com o avanço desse tipo de discurso, é uma possibilidade da construção de retrocessos muito fortes para a sociedade brasileira. E em situações que desafiam a todos, pois retrocessos, no plano da cultura de direitos e do respeito à diversidade, podem comprometer a própria democracia no país, que foi o grande desafio pós ditadura militar.

Fórum – Falando em fundamentalismo, a senhora teve uma discussão pública com o deputado Jair Bolsonaro, em que foi agredida verbal e fisicamente. Depois disso, o parlamentar se envolveu em outras polêmicas de quebra de decoro. Por que o Congresso ainda não fez nada em relação ao deputado? Há algum tipo de cumplicidade com suas ideias?

Rosário – Penso que são vários fatores, mas há um elemento do Congresso que diz respeito não só a essa atitude, mas a outras que também se percebem. O Congresso é extremamente masculino e machista nos dias atuais. A composição feminina, tão minoritária, com compromissos mais transformadores a partir da condição feminina, compromete que o Congresso possa dizer, neste aspecto, que representa objetivamente a sociedade brasileira. Há uma distorção da representação parlamentar quando nós pensamos na sociedade brasileira, na participação das mulheres e na representação parlamentar das mulheres. Há uma certa proteção masculina em torno desse tipo de atitude. Em geral, contra mulheres, contra homossexuais. E o Congresso protege isso. Ele tem dado guarida a isso quando não responsabiliza suas atitudes [as de Bolsonaro].

Fórum – E de que maneira seria possível mudar isso dentro do Congresso para que esses valores não se reflitam ainda mais na sociedade?

Rosário – O Congresso tem grandes problemas e grandes virtudes. A maior virtude que o Parlamento tem é ser completamente permeável à pressão da sociedade. Então, quanto mais a sociedade, legitimamente, produzir sua crítica à própria estrutura de poder, ao Parlamento, e às estruturas de poder de uma forma geral, mais influência ela vai gerar. Quando se fala do Parlamento, é plenamente razoável pensar que ele só muda com dois processos: pelo próprio voto com eleição de bancadas diferenciadas – o que a ausência de uma reforma política tem comprometido ao longo do último período –, ou por outra via, uma pressão sobre os próprios parlamentares que lá se encontram. Não há núcleo parlamentar que não reconheça a força da sociedade na pressão quando se trata da relação com o Parlamento. Então é de fora para dentro que o Parlamento muda. Ele só muda de dentro para fora no processo eleitoral. Depois disso, só com a pressão da sociedade. Então, a sociedade tem ficar muito atenta, porque a qualidade da política tem a ver com a qualidade do Parlamento. Se as pessoas não estão satisfeitas com a política, se avaliam que na política há poucas pessoas que defendam causas, têm que agir sobre ele.

Fórum – Você citou o atraso do Brasil em relação às políticas para o público LGBT. Por que o governo ainda não abraçou, de fato, o PLC 122, que criminaliza a homofobia?

Rosário – No meu período de governo, fizemos o máximo para que ele fosse votado. Tivemos uma reunião importante do movimento LGBT com a presidenta Dilma, e ela foi claríssima da posição dela e do governo contra a violência. E o que o projeto de lei prevê é o enfrentamento à violência. Então, me senti totalmente autorizada e fiz isso, em nome do governo, busquei que a matéria fosse votada. Nós não conseguimos a votação porque, dentro do próprio Senado, houve uma mobilização de resistência. Lamentavelmente as pessoas, muitos parlamentares, têm medo de defender posições que acham justas pelo tipo de pressão também que há contra essas posições. Por isso que só envolvendo sociedade agendas como essas podem avançar.

Fórum – Qual será seu foco no retorno ao mandato como deputada? Pretende retomar pautas que historicamente têm levantado, como juventude, movimento LGBT, mulheres? Que projetos tem a intenção de encabeçar?

Rosário – Procuro ficar bastante atenta a projetos que tratam de posicionamentos conceituais, da cultura da política do país, justamente para poder contribuir no Parlamento a partir de uma perspectiva de direitos humanos, progressista, no contrato com a sociedade. Já comecei a trabalhar como interlocutora da bancada em um projeto que eu estava tocando como ministra: a aprovação do projeto de lei que cria o Conselho Nacional de Direitos Humanos. Tem 19 anos que o projeto tramita. Então, ontem [15], nós tivemos a aprovação da urgência, para ser votado na próxima semana. É um momento muito importante para o país aprovar um Conselho de Direitos Humanos mais próximo da proposta prevista pelas Nações Unidas, já que nós participamos do Sistema Internacional de Direitos Humanos.

Além disso, estou preparando um PL na área LGBT, estou fazendo estudos na área de Memória e Verdade, do enfrentamento da violência nas instituições policiais. E tem duas áreas às quais quero voltar, porque me sinto pessoalmente feliz, me dá uma leveza na militância política, que é justamente o enfrentamento à violência contra crianças e o enfrentamento da exploração sexual. Ainda de um modo especial, pois trabalhei como parlamentar na mudança do Código Penal, como relatora da CPI.

Fórum – Sabemos que você apoia a revisão da Lei da Anistia, que está sendo bastante discutida ultimamente. Qual a importância de debater essa pauta no momento e como você enxerga a posição do governo em relação a esse assunto? Acredita que o projeto vai avançar no Congresso?

Rosário – Acho que esse debate tem condições de avançar envolvendo a sociedade também. E esse movimento nós começamos quando trabalhamos e garantimos a aprovação da Comissão Nacional da Verdade, é uma continuidade. Não tenho informações se a Comissão da Verdade vai apontar esse caminho ao país. Mas acho que as instituições brasileiras devem estar bastante atentas aos compromissos internacionais também. Veja que a revisão da Lei da Anistia é uma recomendação expressa da sentença que o Brasil recebeu da Corte Interamericana no caso Araguaia. Agora, veja bem, separo muito bem as atribuições que tive como ministra das atribuições que tenho como parlamentar. Por que as atribuições do governo federal, do poder Executivo, são atribuições distintas às do parlamento. O protagonismo desse debate pertence ao Parlamento. Nunca procurei, portanto, como ministra, ocupar o espaço que era do Parlamento. Existem projetos de lei que tramitam por iniciativas da Luiza Erundina, do Randolfe Rodrigues e de outros parlamentares. Existem iniciativas parlamentares muito importantes e eu me somo a essas iniciativas. Acredito firmemente que isso é uma pauta política do Parlamento.

A aprovação da Lei da Anistia foi uma medida parlamentar, legislativa. A mudança no seu conceito deve trilhar dois possíveis caminhos, e um deles é o poder Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal, por que é um absurdo que os juízes da mais alta corte continuem avaliando que a tortura cometida no período da ditadura militar deva ser considerada um crime político. Por outro lado, se não for pelo STF, que seja pela via da legislação. Porque nós não estamos diante de uma cláusula pétrea, de uma matéria constitucional. Estamos diante de uma lei, portanto pode ser modificada. Acredito firmemente que o Parlamento deva cumprir isso. E acredito também que a presidenta Dilma está cumprindo seu papel. Ela não trata isso como um elemento que deva ser capitaneado pelo Executivo, mas jamais obstruiu qualquer debate sobre esse tema. O que ela estabelece é que é um tema da sociedade brasileira, como a própria Comissão da Verdade em que foi envolvida a sociedade brasileira, envolvidas centenas de milhares de pessoas se mobilizando, artistas, intelectuais, os próprios meios de comunicação, a imprensa. Nós conquistamos o apoio da sociedade. E esse é um caminho.

Fórum – Acontecimentos recentes, como as ondas de manifestações desde junho do ano passado, fizeram reacender debates acerca da violência e abusos policiais. Movimentos mais antigos, como as Mães de Maio e outros que surgiram há pouco tempo como o “Por que o senhor atirou em mim?” têm se articulado em debates sobre a desmilitarização das polícias. Qual sua opinião a respeito dessa pauta?

Rosário – Considero que as polícias no Brasil não passaram pela reforma democrática que tinham que ter passado. As polícias ainda estão orientadas ainda por uma lógica de Estado de exceção. Elas são patrimonialistas, autoritárias, seja na sua estrutura interna, seja com a sociedade, por conta de preconceitos de classe, preconceitos étnicos, preconceitos de todo tipo que potencializam a violência a um grau ainda maior. Continuam sendo os jovens, os adolescentes, os negros tidos como em situação irregular. Eles são não apenas revistados, bem como atacados. Tenho uma crítica contundente em relação ao processo pelo qual estamos avançando no armamento, distribuindo mais armas, oferecendo mais condições de ataque, sem pensar que a polícia se volta contra a população, isso ainda sem se investir em inteligência policial e perícia. Os inquéritos continuam sendo instrumentos arcaicos. Há uma não resolução de investigações e um depoimento continua sendo a base principal da busca de informações. Portanto, a tortura e a violência permanecem como métodos correntes.

Tenho uma posição absolutamente crítica. Nós não fizemos a reforma democrática nem no período pós-88, nem mesmo hoje, em plena democracia.

Fórum – E a senhora acredita que um dos caminhos dessa reforma policial envolve a desmilitarização?

Rosário – Penso que o debate sobre carreiras policiais unificadas e desmilitarização deva ser levado adiante. Eu não citaria desmilitarização como um único aspecto, como única solução objetiva e imediata. Temo, inclusive, que se o debate for “desmilitarização: sim ou não”, tenhamos uma boa palavra de ordem, mas a não solução dos problemas de fundo que as polícias têm. Porque há graves problemas na Polícia Civil também, há abusos de autoridade na Polícia Civil. Devemos enfrentar esse tema junto com a sociedade. Chamando a sociedade, as próprias polícias. Quanto mais conseguirmos melhorar as polícias, mais vamos libertar os próprios policiais, que têm dignidade na sua atuação, de conviverem nesses ambientes perversos e marcados por chantagens e violência.

Fórum – Então há, de fato, uma necessidade de reforma das polícias….

Rosário – Há uma necessidade. Não no âmbito de reduzir à lógica da “desmilitarização: sim ou não”, mas isso está envolvido dentro dessa reforma.

Fórum – E o que a senhora pensa à respeito dessa Lei Antiterrorismo? Há necessidade dessa lei? Há terrorismo no Brasil?

Rosário – Acho que não há terrorismo no Brasil. Penso que determinados grupos organizados romperam o principal direito da manifestação, que é o direito da palavra, quando partiram para táticas que abrem mão da palavra e utilizam a violência nas manifestações. Não sou favorável a nenhum tipo de violência nas manifestações. Não há causa que justifique a violência – os direitos humanos são, em essência, a defesa da palavra, e a não violência. Agora, não acho que isso possa ser associado à ideia de terrorismo. A violência em manifestações deve ser enfrentada inclusive com a polícia treinada para atitudes de dissuasão da violência por parte dos manifestantes, e não uma polícia que revide com mais violência. Em São Paulo, inclusive, foi o estopim. Naqueles primeiros momentos, em junho de 2013, naquela sua atividade violenta, a polícia moveu o crescimento das manifestações.

Fórum – Então a implementação de uma lei antiterror seria desnecessária?

Rosário – Não diria que é necessário ou desnecessário. Há um entendimento por parte do Ministério da Justiça da importância dessa lei , porque muitos países que vivenciaram manifestações violentas adotaram legislações no sentido de estabelecer regras mais claras para esse contexto. Não contesto o Ministério da Justiça quanto a isso. Nem seria o meu papel, ainda que integrante do governo. Mas acho que essa lei não deve trabalhar a partir da ótica do terrorismo. Ela deve ser enxuta, regrar e não diminuir em nada o direito a manifestação. Apenas separar o que é manifestação de ato violento e regrar também a atitude das forças de Estado no contexto dessas manifestações, para que elas não hajam com violência.

Fórum – Outra questão em pauta, que ganhou repercussão principalmente depois do episódio em que a jornalista Rachel Sheherazade os apoia, é a questão dos justiceiros, cidadãos que abrem mão do Estado e procuram punir com as próprias mãos. Como coibir esse tipo de acontecimento e de mentalidade? Faltam políticas públicas nesse sentido?

Rosário – A sustentação de opiniões que geram violência devem mover responsabilidade, por que utilizam os espaços públicos para emitir suas opiniões. Seja um parlamentar que incita o ódio racial ou o ódio LGBT, seja um apresentador. Quem quer que exerça esse tipo de influência que incita violência deve ser responsabilizado pela ocorrência dessas violências. Isso se confunde muito com a liberdade de comunicação. É complicado.

Fórum – E em relação às pessoas que cometem esses atos de violência? Esse tipo de mentalidade é um reflexo de uma polícia repressora?

Rosário – Acho que as pessoas que fazem isso gostariam de uma polícia ainda mais violenta. Elas exigem e sustentam uma polícia que não cumpre a lei. Claro, sempre contra o outro. Jamais contra alguém de sua família ou alguém de seu ciclo de amizade. Contra o outro, o outro que é pobre, que é da favela, que é negro, que está caminhando num lugar que não lhe pertence, por que aquele bairro não é o seu. Contra aquele que é considerado estranho, diferente. Elas sustentam, na verdade, a menor humanidade nessa outra pessoa. Isso demonstra um outro lado da necessidade da polícia. Nesses casos, é muito importante reforçarmos o quanto a polícia não pode deixar que essas pessoas que se apresentam fazendo justiça fiquem impunes, livres de um inquérito e da responsabilização criminal, dependendo da extensão do seu dano que causaram.

Nós, ao falarmos da polícia como militantes, como defensores de direitos humanos, não podemos negar que, quando a polícia age com adequação para enfrentar com impunidade esses crimes de ódio, ela contribui para demonstrar que eles não podem ser banalizados.

Fórum – A senhora citou os trabalhos da pasta de direitos humanos em relação à questão do trabalho escravo. Quando assumiu a pasta, se comprometeu com um projeto de desapropriação e destinação à reforma agrária de terras onde for flagrado trabalho escravo. O que foi feito nesse sentido? O projeto avançou?

Rosário – Esse projeto tramita há quase 15 anos no Congresso Nacional. Durante o nosso período, conseguimos aprová-lo na Câmara. No Senado ele se encontra como matéria no plenário, para votação, já com parecer das comissões. Lamentavelmente há quem queira, quem esteja trabalhando para impedir essa votação. Nós não conquistamos essa votação até pela força da bancada ruralista.

Por outro lado, a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo completou 10 anos. O Brasil tem uma série de instrumentos para enfrentar o trabalho escravo. Tem a Lista Suja, cujos integrantes não recebem verbas governamentais e não têm possibilidade de disputar recursos. Temos muitos mecanismos. Mais de 40 mil pessoas foram libertadas em 10 ou 12 anos. Essa PEC é o que nós precisamos para enterrar o trabalho escravo de uma vez por todas. Ela precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional.

Fórum – E há expectativas de que ela seja aprovada?

Rosário – Sim! Há uma mobilização constante, há uma vontade da presidente Dilma, um diálogo que foi estabelecido. E realmente acredito que nós avançamos por um acordo. Nós tínhamos a palavra do presidente do Senado de que essa votação aconteceria até em uma data simbólica para nós, em 20 de novembro, dia de homenagem a Zumbi dos Palmares. Isso não se concretizou, mas a mobilização da sociedade é também importante para garantir que esse projeto coloque um ponto final no trabalho escravo no Brasil.

Fórum – Aproveitando que você volta agora para o seu mandato no Congresso, uma pauta que está sendo bem discutida entre os parlamentares é a da regulamentação da maconha. Qual sua opinião em relação ao tema?

Rosário – Bom, esse debate está colocado no mundo inteiro e foi colocado no Brasil também a partir da decisão uruguaia. Eu não pretendo emitir uma posição fora do contexto da ação governamental. Acredito apenas que nós devamos estar, nesse primeiro momento, muito atentos à não criminalização do usuário, que permanece acontecendo. Afinal, a criminalização do usuário tem servido também como forma de aumentar o número de pessoas que estão cumprindo penas indevidamente. Isso fere direitos.

A situação precisa ser analisada no contexto da existência de outras drogas e do adoecimento de uma parcela muito significativa da população, particularmente, pelo crack nas periferias. O Brasil deve fazer parte desse debate com perspectivas de olhar cada vez menos como crime e cada vez mais como saúde e como respeito e resgate de indivíduos que estão em uma condição de abuso de drogas destruidoras. Não quero emitir uma posição mais definitiva porque é um tema novo no atual período, mas um tema do qual teremos que nos aproximar, com certeza.

Fórum – De uma maneira geral, então, a senhora acredita que deve haver uma mudança na política de drogas em relação à forma como ela se dá hoje?

Rosário – O trabalho que gerenciamos no governo em relação ao crack está baseado em três áreas: na saúde, na educação e na segurança pública. Quando se associa a figura do traficante com a do usuário, perdemos a interlocução com boa parcela da sociedade, criminalizamos indevidamente e não prevenimos o acesso a drogas que são danosas ao desenvolvimento e à pessoa humana. Acho que precisamos avançar ainda mais nesse terreno. Mas já houve uma preocupação governamental importante de não misturar usuários com traficantes.

Fonte: Revista Fórum.

Foto: Wikimedia Commons.

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