Por Elaine Tavares.
O povo cubano, que resiste há quase 60 anos aos ataques sistemáticos dos Estados Unidos contra sua soberania e contra o seu direito de se organizar conforme os ditames estabelecidos por uma revolução vitoriosa, participará de grandes debates sobre as mudanças na Constituição. Porque em Cuba a democracia não é igual a democracia burguesa, na qual o povo só é chamado para votar de quatro anos. Lá, antes de votar qualquer grande tema nacional, as comunidades, os movimentos sociais, os grupos organizados, estudam e debatem profundamente as propostas.
Pois assim será com a Constituição. Primeiro, foi criado um grupo de trabalho na Assembleia Nacional para apresentar um anteprojeto. Esse documento já está pronto e agora será levado para o debate público. Nesse caso específico das reformas constitucionais o governo cubano decidiu abrir o debate também com os cubanos que vivem fora da ilha, para que eles possam conhecer o projeto e apresentar propostas, visto que a maioria dos que estão fora tem família na ilha e se interessa pelos destinos de Cuba. São mais de um milhão e quatrocentos mil cubanos que vivem em 120 países, nos cinco continentes, com maioria radicada nos Estados Unidos.
Essa é uma estratégia importante do governo cubano, uma vez que a dissidência raivosa que vivia em Miami foi praticamente desarticulada depois da morte de alguns dos anti-castristas mais velhos. A nova geração, como aponta o escritor Fernando Moraes, quer se reaproximar do país de seus pais e avós. E é uma geração que também tem conhecimento dos avanços sociais conseguidos em Cuba, avanços esses que são impensáveis nos países onde vivem. Tudo isso ajuda a construção de uma nova visão sobre a ilha. Agora, com a decisão de ouvir os exilados, Cuba busca justamente aproximar esses conterrâneos garatindo a eles e elas voz no processo da nova Constituição.
As discussões no campo popular se estenderão até o mês de novembro e cada cubano e cubana poderá apresentar sugetões que, ao final desse prazo, serão sistematizadas e discutidas na comissão da Assembleia Nacional, para então ser apresentado o projeto final que irá à votação direta e universal.
O texto do ante-projeto é composto por 224 artigos, 87 a mais do que o atual, e está dividido em 11 títulos, 24 capítulos e 16 sessões. As mudanças se referem a elementos da vida prática, que já estavam em andamento em Cuba, mas que ainda não tinham sido regularizados em lei tal como a possibilidade da propriedade privada, o casamento entre pessoas e a autonomia das provincias e dos municípios. São acertos e adequações aos novos tempos de uma Cuba que precisa se reinventar todos os dias por conta de viver sob impossibilidades causadas pelo bloqueio econômico dos Estados Unidos.
As mais barulhentas críticas da esquerda ao ante-projeto estão apontadas no preâmbulo da carta, do qual desaparecem propostas que eram muitos caras aos revolucionários que venceram a luta contra a ditadura e que redigiram com sangue a Constituição. E o grande espanto se dá pela mudança do ponto “Decididos”, que na velha carta diz assim:
“ a levar adiante a revolução triunfadora de Moncada e do Granma, da Sierra Maestra e de Girón encabeçada por Fidel Castro que, sustentada na mais estreita unidade de todas as forças revolucionarias e do povo, conquistou a plena independência nacional, estabeleceu o poder revolucionário, realizou as transformações democráticas, iniciou a construção do socialismo e, com o Partido Comunista à frente, a continua com o objetivo de edificar a sociedade comunista”.
Na nova proposta, o ponto, “Decidimos” diz assim:
“ a levar adiante a revolução triunfadora de Moncada e do Granma, da Sierra Maestra e de Girón encabeçada por Fidel Castro que, sustentada na mais estreita unidade de todas as forças revolucionarias e do povo, conquistou a plena independência nacional, estabeleceu o poder revolucionário, realizou as transformações democráticas e iniciou a construção do socialismo”.
Foi retirado assim, o objetivo de edificar a sociedade comunista.
Também no ponto “Conscientes”, o texto fazia referencia ao comunismo, afirmando que só o socialismo e o comunismo liberam os homens de toda a forma de exploração.
No novo texto, a palavra comunismo foi tirada.
No artigo primeiro, onde diz: Cuba é um estado socialista de trabalhadores, a redação ficou: “Cuba é um estado socialista de direito”.
Para os que já atiram suas pedras no governo cubano, a explicação para essa retirada da palavra comunismo pode estar ancorada outra vez nos dados da realidade, tal qual a reaproximação com os exilados de Miami, coisa até ontem considerada impensável.
Quando a Constituição foi escrita, em 1976, a probabilidade da construção do comunismo estava materialmente dada. Havia revolução na América Latina, na África, a União Soviética estava forte. Ainda que a batalha pudesse ser grande, a possibilidade de emergir uma sociedade comunista era algo factível. Hoje, a situação é radicalmente outra. Não há mais a União Soviética, a China caminha por caminhos totalmente singulares, não há revoluções na América Latina e nem na África. É um tempo novo. A conjuntura é totalmente outra.
Ricardo Alarcón, que já foi presidente da Assembleia Nacional, desde algum tempo vem dizendo e deixando claro que na atual conjuntura Cuba tem procurado – e a duras penas – garantir as conquistas da revolução, tais como educação de qualidade para todos, saúde universal, moradia e segurança. Isso é inegociável e é característico do socialismo. Mas, daí a avançar para o comunismo parece ser uma possibilidade muito remota nos tempos atuais.
É fato que manter na carta magna o horizonte do comunismo poderia ser – ainda que uma realidade não factível no momento – um sendero de esperanças, a aposta na utopia, apontando para esse momento tão esperado na luta dos trabalhadores. Mas, ao que parece, os cubanos preferem não viver de sonhos impossíveis. Eles são – e vem demonstrando isso há 60 anos – pessoas forjadas na dura realidade de sua revolução, avançando a cada obstáculo que lhes é colocado, apenas com as possibilidades que têm à mão.
Foi assim que enfrentaram as tentativas de invasão, o terrorismo, as tentativas de assassinato de Fidel, o estrangulamento durante o período especial quando tudo parecia perdido. Cada desafio era conhecido por todos e as formas de superar dadas pela própria população organizada.
Agora, Cuba caminha com novos obstáculos. A velha geração da revolução está desaparecendo. Pela primeira vez o presidente da nação é de uma geração que não lutou na “sierra”. Díaz-Canel estava nascendo quando os revolucionários entraram em Havana e há milhares de jovens cubanos com novas aspirações. A realidade vai impondo mudanças a essa plasticidade típica do povo dessa ilha do Caribe, capaz de superar situações inimagináveis, capaz das maiores façanhas, afinal, não é para qualquer um manter-se vivo e garantir vida digna a todo um povo, sendo constantemente atacado pelo maior império do planeta. Com as mínimas condições, nas mais adversas situações, os cubanos vêm garantindo um padrão e uma qualidade de vida que não tem parâmetros no globo.
Agora, arrancando no século XXI, sob a batuta dessas novas gerações forjadas na resistência, eles vão atravessar novas tormentas. É pena que não esteja ali, na Constituição, a proposta de um avanço para o comunismo, pois, afinal, ter esse “lá-na-frente” verbalizado é mais do que simbólico: é a indicação de um caminho. Mas, de qualquer forma essa utopia vive em cada mente e cada coração daqueles que, cotidianamente, garantem as importantes conquistas que vieram com a revolução generosa e socialista.
É certo que, para os comunistas, o comunismo não é uma palavra vazia, aprisionada num texto, mas sempre é necessário fazer ela andar, para que as pessoas se lembrem de que é possível. O comunismo é a força do comum, é um lugar concreto, no tempo e no espaço, ainda não construído, é fato. Mas, que virá, porque a humanidade precisa dele.
E assim, com todas as limitações ditadas pela realidade concreta, o novo projeto de Constituição já está caminhando pela ilha, de mão em mão, de conversa em conversa e caberá ao povo cubano decidir, como sempre, soberano.