As inspiradoras mulheres muçulmanas e o desconhecimento dos brasileiros sobre elas

Médica muçulmana, defensora dos direitos das mulheres, Alla Murabit Foto: Mrwa1976/Wikipedia

Por Lucia Helena Issa.

Dos depoimentos que ouvi de minhas amigas refugiadas, das cenas de americanos abandonando um país e concluindo a destruição da nação que invadiram para “salvar”, às palavras de ódio ao Islã proferidas nas redes sociais pelos ignorantes, sobre uma religião que tem hoje mais de um bilhão e seiscentos milhões de seguidores pacíficos, tudo isso suscitou em mim uma imensa tristeza e muita vergonha.

Tristeza por constatar mais uma vez o imenso desconhecimento e a imensa ignorância dos brasileiros e ocidentais em geral em relação à história do mundo em que vivem, à história do islamismo, do cristianismo, do judaísmo, como religiões monoteístas irmãs, e em relação à história de um dos maiores homens que já passaram pela Terra, o Profeta Muhammad.

Acreditar que o Profeta ou o Alcorão proíbem mulheres de estudar, frequentar a universidade, trabalhar, buscar conhecimento ou votar por exemplo, acreditar que a interpretação wahhabita e extrema do islamismo representa de fato um bilhão de muçulmanos é desconhecer completamente a história de uma imensa parte do mundo e de uma religião, cujos cientistas e médicos deram à Europa os objetos e as descobertas científicas mais fantásticas da época. É desconhecer que o próprio Profeta foi o primeiro líder e governante do mundo a lutar contra o assassinato de bebês do sexo feminino, meninas que eram mortas aos milhares tanto no Oriente Médio quanto na Europa, quando uma família com pouco conhecimento desejava um menino e não queria criar uma menina que nascia sem que eles a desejassem. Na cristã Europa muitas dessas meninas eram entregues à Roda dos Rejeitados, ou mortas pelo pai, e na Península Arábica, muitas eram enterradas vivas.

O Profeta foi o primeiro líder político e religioso que proibiu o feminicídio infantil, afirmando que a vida das meninas era tão sagrada quanto a dos meninos. Não há uma linha sequer no Alcorão também que proíba a mulher de trabalhar ou de estudar. A busca pelo conhecimento é uma das colunas vertebrais da religião e foi distorcida também por muçulmanos extremistas de países como Paquistão, Arábia Saudita e Afeganistão.

Há mais de 1400 anos, o Profeta também foi o primeiro líder do mundo a questionar leis milenares do patriarcado (sim, o patriarcado não é uma característica apenas de países muçulmanos, mas do mundo todo, do Japão ao Brasil, da Índia à Itália), foi o primeiro líder político a afirmar que as mulheres tinham direito à herança de seus pais tanto quanto seus irmãos do sexo masculino. Na Europa cristã, isso só foi possível no século XVIII, pois durante toda a Idade Média, apenas os filhos do sexo masculino tinham direito às terras da família.

Das seis personalidades históricas mais significativas e mais importantes para os muçulmanos, quatro são mulheres: Cadija, a primeira esposa, Aisha, considerada a “mãe dos fiéis”, uma das mulheres mais determinadas e corajosas da História, Fátima, filha do Profeta, além de Maria, mãe de Jesus e citada mais de 600 vezes no Alcorão.

Todas elas mudaram a história do mundo de várias formas e são amadas e respeitadas por mais de um bilhão de homens muçulmanos do mundo.

Uma dessas mulheres muçulmanas fascinantes e que mudaram o mundo, Aisha tem sido retratada nas redes por milhares de islamofóbicos como uma “coitadinha“ que se casou ainda menina com um Profeta muito “malvado”.

Aisha de fato se casou aos nove anos, o que é muito triste, assim como Maria também se casou com José aos 11 anos, como era comum na época. Mas lendo a biografia de Aisha, descobri que a palavra “coitadinha” jamais poderia defini-la nessa história.

Ela tinha uma inteligência verbal inata, falava e escrevia com imenso talento, tornou-se uma das maiores teólogas do islamismo, dedicou-se a falar em público sobre os direitos das mulheres e sobre o fato de que homens e mulheres tinham equidade dentro da religião, dava aulas de história para as meninas, era procurada pelos habitantes da região por seus conhecimentos de medicina. Ela liderou centenas de caravanas de peregrinas mulheres até Meca, nunca se contentou com o papel de uma simples esposa do Profeta, gostava de debater com ele, apontava erros e sugeria mudanças de comportamento e de como se vestir.  Aisha também fundou uma escola para meninas na cidade sagrada de Meca. Viveu muito e só faleceu no ano 678, aos 65 anos, o que era uma longa e profícua vida para a época.

Desde então, milhões de meninas muçulmanas recebem seu nome ao nascer e todos os muçulmanos a reverenciam como a “Mãe dos que Creem”.

Cadija, a primeira esposa do Profeta, era uma grande comerciante de Meca e era proprietária de dezenas de caravanas que cruzavam a península vendendo centenas de produtos, quando ouviu falar de um homem que tinha a reputação de ser muito honesto, conciliador e dedicado ao que fazia. Ela o conheceu e pediu-lhe para assumir uma de suas caravanas, e os dois acabaram se apaixonando e se casando. Era o terceiro casamento de Cadija. Era um casamento monogâmico em uma época em que a maioria dos homens tinha várias esposas, pois a região toda era muito polígama.

Cadija tinha imensa influência sobre o Profeta, era respeitada e imensamente amada por ele e foi a primeira mulher a ouvir as Revelações feitas pelo Anjo Gabriel ao Profeta, tornando-se ela a primeira mulher muçulmana da História. Usou todo o seu conhecimento e prestígio para apoiar o marido e o Islã até o fim de seus dias. Morreria apenas no ano de 619, chamado por todos os muçulmanos de o Ano da Tristeza.

O que tem acontecido hoje em países como a Arábia Saudita ou o Afeganistão, com a restrição de direitos para as mulheres, jamais foi algo defendido pelo Profeta, é uma questão muito mais tribal, de interpretações extremistas, como o wahabismo, do que realmente uma questão islâmica.

Há poucos anos, dando uma palestra sobre o que testemunhei na Palestina, a convite do Centro Islãmico Iman Hussein, aqui no Rio de Janeiro, ouvi do muçulmano carioca Carlos Meneses, diretor do Centro: ”Em uma época em que a mulher era contada junto com o gado, e as meninas eram enterradas vivas, foi o Profeta Muhammad quem proibiu essas práticas”

“Eles tentam usar a religião para justificar algumas coisas e há um grande movimento de governos de, cada vez mais, tentar apagar o papel da mulher na História”, me disse Carlos.

Quando penso também nas mulheres muçulmanas que me inspiram hoje, penso, por exemplo, na Alaa Murabit, uma médica muçulmana que tem dado palestras e feito projetos no mundo inteiro para mostrar que os direitos das mulheres à educação e às suas escolhas são sagrados no Alcorão e devem ser respeitados.

Em 2017 eu assisti uma palestra dela intitulada “O que minha religião realmente diz sobre as mulheres”, e descobri que Alaa tem feito uma imensa diferença na vidas das  mulheres líbias e do Oriente Médio em geral. Por seu trabalho contra a intolerância religiosa e como médica durante a Guerra Civil e invasão da Líbia pelos EUA, ela já recebeu o James Joyce Award no Canadá, o Prêmio Marisa Belisario na Itália, o prêmio Women Inspiring Change em Harvard e muitos outros.

Uma das coisas que mais surpreendem os ocidentais é a determinação e força de Alaa, uma mulher que sempre se apresenta com seu hijab muçulmano nos cabelos.

Os ocidentais estão obcecados pelo véu muçulmano, e o hijab, que usei tantas vezes na Palestina, também se tornou um alvo de ódio e preconceito eurocêntrico. E o que é pior, muitos dos que o odeiam não conhecem sequer a diferença entre um hijab e uma burca, mas se consideram pós-graduados em Islã, em vestimentas islâmicas e em Oriente Médio, claro.

O hijab cobre apenas os cabelos deixando o rosto livre, e é algo que também faz historicamente parte das religiões judaica e cristã. Ou seja, é o mesmo véu usado por Maria, mãe de Jesus.

Sim, o véu que alguns extremistas cristãos, seguidores de Olavo de Carvalho, já chamaram “véu terrorista” é o véu de Maria, o véu usado por mulheres das três religiões monoteístas nascidas no Oriente Médio, o véu usado até hoje pelas judias ortodoxas que vi em Jerusalém, e o mesmo véu usado pelas cristãs na Europa durante séculos, e por milhares de cristãs brasileiras até poucos anos atrás, como minha avó materna, que só ia a missa com um véu de renda sobre os cabelos.

O véu islâmico tem exatamente o mesmo conceito do véu usado por freiras católicas no Brasil, o mesmo conceito de cobrir a cabeça por respeito a Deus que nos observa de um lugar muito mais alto. Vi um lindo véu, idêntico ao hijab, sendo usado também pelas cristãs na Rússia, Grécia, e Sérvia, para rezarem nas igrejas cristãs ortodoxas, e também coloquei o meu para rezar nas lindas igrejas ortodoxas de Belgrado e de Moscou.

A burca é algo completamente diferente. Nascida no Afeganistão, ela já era usada ali antes mesmo da chegada do islamismo ao país, há mais de 1000 anos. Cobrindo todo o corpo e todo o rosto, deixando apenas uma pequena treliça para os olhos, mas a burca jamais representou as realidades específicas de milhões de mulheres muçulmanas do mundo.

Em minhas seis estadias no Oriente Médio, conhecendo da Palestina à Síria, ao Líbano, Egito, Marrocos, jamais vi uma mulher de burca. Ter como alvo do seu ódio um véu nos cabelos de uma mulher, e acreditar que usar um biquíni, sair sozinha e ser assediada no metrô e nas ruas como nós somos, é o Nirvana da libertação da mulher é não conhecer absolutamente nada sobre a mulher, sobre o feminismo e sobre a realidade ocidental no que se refere às desigualdades de gênero e aos estupros nos EUA e no Brasil.

Um homem que acredita nisso jamais se relacionou de verdade com uma mulher, não tem ideia de que a América Latina, por exemplo, é um dos lugares mais violentos do mundo para uma mulher, de que somos assediadas, desrespeitadas e muitas de nós violentadas todos os dias, ou de que, nas Olímpiadas de 2021 as equipes femininas europeias de vôlei foram multadas por lutarem contra a erotização da mulher no esporte e por decidirem usar shorts um pouco mais longos durante as compe

Os ataques virtuais e muitas vezes físicos aos muçulmanos, e sobretudo às mulheres muçulmanas no Brasil, voltou a crescer nos últimos dias, com a retomada do Afeganistão pelo Talibã.

Por trabalhar escrevendo e dando voz aos refugiados e por minhas palestras contra a intolerância religiosa, tenho recebido vídeos e relatos de agressões a mulheres muçulmanas que suscitaram em mim uma imensa vergonha.

A grande hipocrisia é que os mesmos brasileiros de extrema-direita que apoiam as guerras e invasões genocidas dos EUA no Oriente Médio e que dizem que essas guerras são para “libertar as mulheres muçulmanas e levar a democracia”, não ficam indignados com o assassinato de milhões de mulheres e crianças pelos EUA,  e são os mesmos brasileiros que elegeram um sujeito que já disse que “não empregaria uma mulher com seu dinheiro porque a mulher engravida”.

Os brasileiros que mais alimentam a islamofobia nas redes e que dizem apoiar as guerras para “salvar as mulheres muçulmanas da opressão” são os mesmos que praticam a opressão em solo brasileiro, assediam mulheres no exterior como fez o médico Victor Sorrentino, são condenados pelo espancamento de suas mulheres, e celebram abertamente o assassinato de mulheres como Marielle Franco e da líder das trabalhadoras rurais Margarida Alves.

São os que ignoram vergonhosamente tudo sobre essa religião ou sobre mulheres muçulmanas que lideram empresas, que são médicas, cientistas, professoras e jornalistas em vários países muçumanos.

A governadora da região de Ramallah, na Palestina, região que inclui mais de 70 localidades e a capital, por exemplo, é uma mulher e é respeitada por milhares de homens muçulmanos. Eu entrevistei a governadora Layla Ghanam em minha última estadia, e durante a entrevista, conversamos sobre o apartheid, crianças palestinas mortas por Israel, as mães palestinas que perderam seus filhos nos bombardeios em Gaza e sobre o bonito feminismo islâmico que vem se fortalecendo na Palestina, como uma luta interligada a todas as outras lutas pela independência da Palestina.

Em várias estadias no Oriente Médio, na Palestina, Líbano, Síria, Egito e em outros países, entrevistei mulheres muçulmanas com véu e sem véu, e todas elas me explicaram que o véu é uma escolha da mulher e jamais foi obrigatório segundo o Alcorão.

Ter como alvo do seu ódio e de seu fascismo um véu nos cabelos de uma mulher, e acreditar que usar um biquíni, sair sozinha e ser assediada no metrô e nas ruas como nós somos, é o Nirvana da libertação da mulher é não conhecer absolutamente nada sobre a mulher, sobre o feminismo e sobre a realidade ocidental no que se refere às desigualdades de gênero e aos estupros nos EUA e no Brasil.

Enquanto apontamos nosso ódio e nosso fascismo xenofóbico para os muçulmanos, o registro de assédios e de violência sexual no Brasil continua crescendo assustadoramente.

Enquanto apontamos os dedos para os muçulmanos e os chamamos de ”terroristas e estupradores”, o Brasil registrou 66 mil vítimas de estupro apenas em 2018, o maior índice desde que o estudo começou a ser feito em 2007.

A maioria das vítimas (53,8%) são meninas de até 13 anos. Segundo as secretarias de Segurança Pública de todos os estados e do Distrito Federal, quatro meninas até essa idade são estupradas por hora no Brasil. Ocorrem em média 180 estupros por dia no Brasil e o perfil do agressor é, muitas vezes, o de uma pessoa muito próxima da vítima, como um tio, um padrasto, um professor. Enquanto afirmamos que apenas o muçulmano é o opressor de mulheres, e que o homem cristão é um exemplo de empatia e respeito pelas mulheres, o Brasil tem se transformado em um paraíso judicial para estupradores, e, tristemente, transformou-se no quarto país do mundo em número de casamentos infantis.

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