Por Marcio Ortiz Meinberg.
As “delações premiadas”, cujo nome técnico é “colaboração premiada”, é um meio de obtenção de prova introduzido no Brasil pela primeira vez com a Lei de Crimes Hediondos (art. 7º, da Lei nº 8.072/90), mas que adotou seus contornos atuais pela Lei de Combate às Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/13). Trata-se do benefício judicial (perdão, redução de pena privativa de liberdade em até 2/3 ou sua substituição por pena restritiva de direitos) que é concedido ao criminoso que colabore efetiva e voluntariamente com as investigações.
No mundo afora, a “delação premiada” ganhou muito destaque a partir dos anos 70, quando foi aplicada na Itália para combater o terrorismo, a máfia e a corrupção. Além disso, a Inglaterra e diversos estados norte-americanos adotam este instituto desde o século XVIII. Atualmente a “colaboração premiada” está presente nos ordenamentos jurídicos dos mais diversos países, da Índia à Dinamarca, da República Centro Africana à Colômbia.
A lógica da “delação premiada” é que existem crimes cuja gravidade ou natureza merece um combate mais efetivo e rápido, de modo que a “colaboração” de um dos criminosos seria essencial para isso. Em abstrato, o raciocínio é correto, afinal o benefício de desmontar uma rede criminosa (com a prisão de seus chefes) é um bem muito maior à sociedade do que a longa prisão de um único de seus integrantes (preservando a liberdade dos chefes e mantendo integra a organização criminosa).
Em filmes policiais americanos a “delação” é um enredo muito comum: um mafioso menor (por ex., um pistoleiro pé-de-chinelo) é preso e o FBI oferece liberdade (em geral pelo “programa de proteção às testemunhas”) se ele entregar os crimes do chefe da máfia e depuser contra ele em um tribunal.
O exemplo da aplicação correta da “delação premiada” é o caso de Alberto Youssef. Este criminoso era o “doleiro” responsável por lavar dinheiro da corrupção de diversas empresas e políticos. A mera prisão de Youssef (merecida, é claro) causaria pouco prejuízo aos beneficiários de seus serviços, pois as empresas e políticos corruptos facilmente conseguiriam substituir suas atividades pelas de outro doleiro. Por outro lado, a revelações da delação de Youssef permitiram que a Polícia Federal identificasse os demais participantes do crime (incluindo crimes que ninguém nem sabia que tinham sido cometidos) e, a partir dai, puderam processar os chefes do esquema criminoso.
O problema da “delação premiada” foi sua utilização pelo Ministério Público Federal na Operação Lava-Jato. Os procuradores federais distorceram a finalidade do instituto e passaram a utilizá-lo para garantir a liberdade dos chefes da organização criminosa.
Explicamos: as delações dos doleiros, bem como as provas conseguidas pela Polícia Federal no início da Lava à Jato foram mais do que suficientes para prender e condenar os principais artífices do esquema de corrupção na Lava à Jato, ou seja, os diretores da Petrobrás e as empreiteiras. Porém, no momento em que ocorreram as prisões dos donos e executivos das empreiteiras (com base em provas materiais já identificadas previamente pela Polícia Federal), o Ministério Público passou a promover uma nova rodada de delações. O resultado destas delações todos nós já conhecemos, em nada contribuíram para evidenciar o esquema (que já havia sido plenamente identificado pela Polícia Federal nas primeiras ações), porém identificaram outro núcleo participante do crime (os políticos). Oras, naturalmente que os políticos corruptos devem ser presos, mas o problema é que tais prisões não deveriam ocorrer em detrimento das penas dos chefes da quadrilha (empreiteiros).
Para evidenciar a inversão de prioridades cometida pelos procuradores da Lava a Jato, basta trocar o tipo criminal: é como se o Ministério Público tivesse oferecido delação premiada para os chefes do tráfico de drogas, para que eles entregassem os policiais corruptos que facilitam o esquema, de modo que os policiais corruptos teriam longas penas, enquanto os chefes do tráfico em poucos anos estariam em liberdade.
Não estamos aqui defendendo a impunidade de políticos corruptos (que devem ser julgados conforme a lei, garantido seu direito à ampla defesa, e punidos se assim for comprovada sua ação criminosa) e nem o “punitivismo” (a situação da segurança pública no Brasil comprova que o encarceramento em massa não é a solução para o problema da criminalidade), mas apenas queremos demonstrar que o discurso da Lava à Jato não é coerente com os resultados práticos dela. E o pior, a incoerência entre discurso e prática é resultado de uma ação deliberada dos procuradores da força-tarefa.
Moral da história, a Lava a Jato apenas segue a tradição do sistema judiciário brasileiro em ser duro com os pobres e suave com os ricos. Certamente alguém discordaria dessa afirmação, pois alguns dos empreiteiros chegaram a passar até dois anos presos. Na verdade, o tempo de prisão desses empreiteiros apenas comprova a injustiça, pois o tempo em que estes passaram atrás das grades é equivalente a pena inicial para o crime de “furto qualificado” (art. 155, § 4º, do Código Penal). Sendo assim, um brasileiro pobre que arrombar um cadeado para subtrair um objeto sem uso de violência ficará preso o mesmo tempo do que os empreiteiros bilionários que comandaram o maior esquema de corrupção do mundo. E qual o resultado da colaboração dos empreiteiros? Entregar alguns políticos, que provavelmente serão substituídos por outros na próxima eleição. Enquanto isso, os empreiteiros continuam livres para reorganizar seus esquemas criminosos. E tudo isso sob os aplausos de Sérgio Moro, Dalton Dallagnol e companhia.
Se a Lava a Jato fosse um filme americano, o enredo estaria invertido, com os chefes da máfia fazendo, eles mesmos, acordos de “delação premiada” para entregar seus subordinados e garantir sua liberdade e fortuna. Certamente não seria um sucesso de bilheteria…