Por Marco Vasques, para Desacato.info.
O esgoto bolsonarista não possui limites. O esgoto bolsonarista é um oceano de lama no qual, para toda nossa infelicidade, muitas das pessoas que amamos estão imersas. Um fenômeno a ser estudado, quando tudo isso for apenas história, é tentar entender como familiares que embalaram nossas infâncias, parentes que amamos, amigos com quem trocamos tantas confidências e colegas a quem confiamos abraços e sorrisos ternos conseguiram se banhar nesse lamaçal sem perceber todo o fedor exalado.
Como puderam suportar tanta grosseria e se aninhar no colo de ações bárbaras? Por que toda essa gente, tão próxima de nossas vidas, se reconheceu nas falas grosseiras e estúpidas que desbotam a condição humana? Quais dispositivos levaram essas pessoas a defender um político que despreza a mulher, ojeriza a diferença e escarra ódio por todos os lados? Como puderam crer na cloroquina? Como aceitaram, sem se indagar, tomar um comprimido feito para matar piolhos e pulgas? Qual motivo levou toda essa gente a crer na palavra de um insano e ignorar a fala de pessoas que passaram anos estudando, pesquisando e trabalhando para tornar nossa passagem por aqui menos dolorosa e mais suportável? O que levou um grupo de pessoas a defender a tese de que a terra é plana? Sob quais dados passaram a acreditar numa ameaça comunista? Por que perseguiram os artistas, as mulheres e a comunidade LGBTQIA+?
A propagação de que nas universidades só tem baderneiros e arruaceiros pode ser facilmente desfeita por eles, que têm netos, filhos e sobrinhos, por exemplo, que vivem profissionalmente e sustentam suas vidas porque foram às universidades em busca de uma profissão. É incompreensível que essas pessoas que precisam de médicos, professores, advogados, enfermeiros, engenheiros, farmacêuticos, agentes de saúde, enfim, que precisam de toda sorte de conhecimento para melhor viver, não façam o mínimo de exercício crítico para averiguar os fatos, os fatos reais. E creiam, eles existem. A verdade é que a verdade precisa ser reestabelecida como verdade.
Não é possível que, com o avanço da vacinação e com a consequente queda de mortes, essas pessoas não façam um esforço para entender que a vacina é segura e o melhor caminho para extirpar de um vez por todas esta pandemia de nossas vidas. A cidade de São Paulo, por exemplo, que possui uma das maiores concentrações de humanos por metro quadrado, já registrou mais de um dia sem morte após a escalada da vacinação. Por que então ainda assim esta gente que vive ao nosso lado e respira nosso ambientes sociais ainda desconfia da eficácia da vacina? Que raios de mosca entorpeceu essa gente?
Talvez as perguntas mais desafiadoras sejam: como conseguir dizer aos nosso familiares e às pessoas que amamos que eles estão nos matando? Como dizer a eles que estão ajudando a sufocar nossos sonhos? Que, avalizando o discurso insano do engodo que chamam de mito, eles também são responsáveis por sermos perseguidos e odiados? Tenho a impressão de que a pergunta mais aterradora, radical, cruel e triste seja a seguinte: o que fazer para despoluir o coração das pessoas que amamos e que ainda apoiam as calamidades que escoam no esgoto bolsonarista?
Venho refletindo muito nos últimos tempos sobre fatos aterradores que aconteceram no esgoto bolsonarista. Um deles foi a circulação de uma foto comparando as mulheres de direita com as de esquerda. Antes de me aprofundar, é preciso dizer que é fato que a misoginia, no Brasil, está escrachada. Somos um dos países que mais mata e agride mulheres. Tiramos uma mulher do poder com um golpe torpe, tramado por homens que não suportam a ideia de uma insurreição feminina.
Em setembro, circulou pelas redes sociais uma foto com quatro mulheres, todas brancas, de olhos claros, maquiadas, cabelos compridos e loiros e peles recheadas de hidratantes. Elas estavam vestidas com camisas da seleção brasileira de futebol, calças coladas ao corpo e, as quatro, seguravam a bandeira do Brasil. Isso durante um evento bolsonarista na Avenida Beira Mar. Tirando o equívoco político e a ignorância das garotas, nada se destacaria, não fosse a frase que circulou junto à fotografia, que dizia assim: “a diferença entre a mulher direita e a mulher de esquerda é que as da foto têm peso compatível com a altura, são cheirosas e amam o Brasil.”
Já se deduz, pela legenda, que é possível que as moças nem saibam que suas imagens estejam sendo usadas por homens escrotos no submundo das notícias falsas e dos pensamentos distorcidos da fossa bolsonarista. Calma, não acabou. Para piorar, os asininos entenderam por bem montar ao lado da foto das, segundo eles, beldades, uma foto com mulheres de esquerda em uma manifestação de rua. E, claro, os repugnantes usaram fotos de mulheres com muitas tatuagens, piercings, axilas cabeludas, roupas rasgadas, cabelos curtos, mulheres acima do peso e mulheres muito magras, com dizeres horríveis sobre as escolhas dessas mulheres.
Eles, os alimentadores do esgoto bolsonarista, estão tão por fora, mas tão distante da realidade, que atribuem carga negativa ao fato de uma mulher optar por usar determinada roupa e fazer do seu corpo aquilo que melhor desejar. A pergunta que poderia ser feita é esta: afinal, em qual mundo vivem essas figuras? Primeiro que nem toda mulher de direita obedece àquele padrão da foto que, segundo eles, é o recomendado como modelo de beleza; segundo, porque nem toda mulher de direita é, necessariamente, uma bolsonarista.
Há muitas belezas nas mulheres. Contudo, quero ressaltar aqui as belezas, assim, no plural, das mulheres de esquerda. Conheço e convivo com muitas delas. Por isso, quero debruçar meu olhar sobre essas mulheres que tanto assustam esses homens ancorados em valores que aprisionam suas companheiras, filhas e netas.
A primeira beleza da mulher de esquerda não pode ser apreciada à primeira olhada, não pode ser medida pela diagramação física imposta por um mercado que coopta e exige uma aparência não real. E sabem que beleza é essa? O desejo e a luta por liberdade. A liberdade desejada pela mulher de esquerda causa muito medo em homens costurados pelo preconceito e pela misoginia, porque ela, a liberdade, incide sobre vários aspectos da vida. Liberdade sexual, econômica e política representam os primeiros passos para se alcançar outra beleza muito presente na mulher de esquerda, que é a reivindicação por igualdade em todos os aspectos de nossa vida social. As mulheres de esquerda lutam constantemente por redimensionar os privilégios masculinos e pela igualdade, o que atormenta a maioria dos homens com os corações necrosados, porque são incapazes de entender a dimensão dessa beleza. A luta da mulher de esquerda é uma luta por um mundo melhor, para ela, e, consequentemente, para todos. E nesse sentido, é preciso ser muito desprovido de razão para não perceber que uma sociedade constituída por mulheres libertas e que gozam de igualdade será uma sociedade muito melhor, para todos!
Ah, outra beleza das mulheres de esquerda é que elas tomam seu corpo em suas mãos. E, uma vez que desejam ter prazer e usar o corpo da maneira que melhor lhes aprouver, elas provocam um medo tenebroso, um medo horripilante nos machos, que, por séculos, usaram e usam o corpo de suas mulheres como um objeto à sua disposição.
O compromisso que a mulher de esquerda tem com as minorias, isto é, com a luta das comunidades indígenas, dos quilombolas, da comunidade LGBTQIA+, dos desprovidos de moradia, alimento e emprego, o combate ao racismo estrutural, enfim, esse compromisso que a mulher de esquerda encampa com movimentos sociais de todos os matizes, faz com que ela se vista de inúmeras belezas.
E por que não falar da beleza física da mulher de esquerda? Prefiro não entrar nesse terreno, pois a indústria da beleza é um assunto espinhoso e merece outro texto, pois a elas é imposto um modelo de beleza para se vender bundas artificiais, peitos postiços, lábios, silicones, cosméticos, cremes, remédios e próteses de toda ordem. Saber alcançar a beleza exige sensibilidade para captar a luz de uma mulher, de uma criança e de um homem. O curioso é que todos sabemos da transitoriedade da chamada beleza física, mas, quase sempre, continuamos a depositar nela valor que ultrapassa outras formas de beleza. As mulheres de esquerda lutam por seus desejos, por suas realizações pessoais, mas, também, via de regra, pensam coletivamente. Entendem-se como comunidade. Não há nada mais importante e belo, num contexto de pandemia e com a soma de mais de 600 mil mortos, que se recuperar o sentido comum.
Aliás, vêm chegando aí as festas de final de ano e os encontros familiares. Assim, muitos de nós teremos que conviver com amigos, familiares e colegas que navegam no esgoto bolsonarista. Será possível tocar o coração dessa gente? É claro que não podemos e nem devemos nos sentir culpados por não conseguirmos tocar a sensibilidade dessa gente que se solidariza com o horror. Ainda mais por serem muitas as questões que eles repetem feito papagaios. Quer dizer, essa gente não se dispõe a pesquisar nada, engolem e ruminam as informações as mais disparatadas sem sequer duvidar. Nesse aspecto, nunca fez tanto sentido pensar em René Descartes, aquele filósofo que colocou a dúvida no centro da filosofia. Na verdade, muito antes de Descartes, lá na Grécia Antiga, Pirro já apontou para a importância da dúvida ao fundar o ceticismo. A indigência intelectual impera, mas não apenas, porque a sensibilidade desse povo também se esvai para algum canto que não conseguimos acessar.
A depreciação da arte; a campanha contra as universidade públicas e o funcionalismo público; o desmatamento desenfreado para produzir soja, um produto que exportamos para alimentar gado; a crescente ameaça dos povos originários; o recrudescimento de ataques racistas; a escalada de um revisionismo da história que afirma absurdos, como, por exemplo, que o nazismo foi um movimento político de esquerda; reformas mal discutidas e que retiram direitos trabalhistas adquiridos a duras lutas; a facilitação do acesso às armas com o discurso mentiroso de que isso gerará proteção e segurança; a solicitação de intervenção militar; o pedido de fechamento das instituições fiscalizadoras do executivo e legislativo; o elogio a torturadores e assassinos; o corte constante de verbas na saúde e na educação; o abandono total de política públicas que visem proteger os que mais precisam; a economia em frangalhos; a escalada galopante da fome e da inflação, enfim, nada, nada disso é capaz de colocar dúvidas na razão e na sensibilidade dessa gente. É uma lástima que eles estejam apegados a uma ideia equivocada de ameaça comunista e de que a esquerda destruiu o país e inventou a corrupção. É lamentável!
Sim, a esquerda cometeu erros, o mensalão existiu e ninguém está negando isso. Acontece que o mensalão continua a existir, em proporção ainda maior. Basta ver o montante de recurso do chamado orçamento secreto, a distribuição de cargos e ministérios para proteger familiares e toda sorte de denúncias. Nem o fato de todos os filhos de coiso serem, todos, políticos, a classe supostamente mais odiada por essa gente, é capaz de gerar dúvidas sobre tudo que escoa no esgoto bolsonarista. A beleza, a grande beleza, para citar o nome de um grande filme, da mulher de esquerda, é que ela aposta na dúvida, pensa e age com razão e sensibilidade. Por fim, se você, tal quais as mulheres de esquerda, deseja um mundo melhor, para você, para seus filhos, para seus netos, para os habitantes de suas ruas, para os moradores do seu bairro, para os membros de sua cidade e para todo o país, então você precisa amar o mundo com a força e a beleza das mulheres de esquerda.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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