Artistas negros contam como seus trabalhos são também ferramentas de cura

 

Acervo de Lucas Finonho 

Por Fernanda Rosário e Nadine Nascimento.

“Ruínas não são como um fim, são como reinício”, diz a música ‘Ruínas’ da cantora Aureah Lima em letras que inspiraram o artista visual Lucas Finonho em seu próprio processo criativo.

Morador de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e estudante de Artes Visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Lucas, de 21 anos, encontrou na arte um processo de elaboração de seus próprios sentimentos.

O estudante conta que o gosto pelas artes visuais surgiu desde pequeno por meio de desenhos na infância e do teatro na adolescência, mas foi durante a pandemia que a pintura em tela entra na vida do artista, que viu ali, primeiramente, uma forma também de ganhar dinheiro por meio de encomendas. Na série de pinturas em tela intitulada ‘Ruínas’, iniciada em setembro de 2021, Lucas tem o seu primeiro projeto em que questões emocionais e psicológicas, como ansiedade e depressão, são trabalhadas.

“Não foi intencional falar de ansiedade ou de depressão. Eu estava tendo bastante encomenda e, nesse espaço de tempo, também estava muito atribulado emocionalmente”, relata o pintor, que diante do cenário pandêmico, se viu na necessidade de realizar um projeto que fosse para ele próprio e em que pudesse se ver e se reconhecer.

“Depois de eu fazer essa série ‘Ruínas’, em que eu ainda estou fazendo, eu consigo me ver de fora dos meus sentimentos. Eu vejo, de fora, todo o meu sofrimento e os meus momentos bons. É algo que, antes de eu pintar, estava muito aflorado dentro de mim e causava imensas crises”, explica.

Na tela ‘Instância’, em específico, o artista conta que, quando terminou de pintar e chegou ao resultado final, sentiu que descarregou um peso de si. “Saiu de mim essa carga e agora está nessa tela. Esse sentimento está ali, não está mais dentro de mim. Isso é muito real pra mim e faz muito efeito”, destaca.

O artista Lucas Finonho e sua pintura em tela 'Instância', da série Ruínas.
Lucas Finonho e a pintura ‘Instância’ | Crédito: Acervo do artista

É um pouco disso que também relata a Débora Garcia, que é cantora, poetisa, além de idealizadora e artista do Sarau das Pretas. Durante a graduação em Serviço Social na Universidade Estadual Paulista (Unesp), a escrita aparece na vida da artista da zona leste de São Paulo como uma forma de colocar no papel tudo que sentia.

De acordo com Débora, a desigualdade presenciada no campus universitário em que estudava era escancarada. Esse fato associado à vivência de cursar Serviço Social fez com que a artista tivesse um olhar mais apurado e delicado para as questões sociais ao redor que a impactavam e incomodavam.

“Uma outra questão que me chamou muito atenção foi o fato de nós termos pouquíssimos alunos negros no campus todo e, ainda assim, a nossa presença incomodava muito. Tudo isso foi causando questões em mim, psicológicas, além de estar longe da família e de não ter grana. Como eu não podia preocupar minha família com essas questões que eu estava passando lá, comecei a escrever”, relata.

Alguns anos mais adiante, a cantora e poetisa também começou a fazer parte do movimento de saraus, teve a oportunidade de ter referências negras na literatura e a identificar o que escrevia também como literatura.

“Nos momentos mais difíceis da minha vida, o ato de poder escrever me salvou. Me salvou de desistir do plano que eu tinha pra minha vida e de me reconhecer também, porque quando você escreve uma coisa e futuramente você lê o que você escreveu é um exercício terapêutico muito importante. Então, a literatura e a escrita tem esse poder terapêutico muito forte, que é o registro do seu tempo de certa forma”, relata Débora, que também trabalha há 14 anos na área de assistência social.

Além de todo o alívio físico e emocional que a arte pode trazer, ela também existe como forma de denúncia. “Escrever também é uma forma de denunciar as condições concretas da população que a gente atende, que eu mesma enquanto uma mulher negra e periférica vivencio”, complementa.

Artista Débora Garcia.
Débora Garcia, idealizadora e artista do Sarau das Pretas | Crédito: Acervo pessoal

A arte é terapêutica

A arte inclusive é utilizada como abordagem terapêutica, como na arteterapia. De acordo com Cintia Jeronimo, arteterapeuta de abordagem junguiana, esse tipo de processo terapêutico viabiliza o acesso ao inconsciente a partir das expressões criativas.

“Ela permite que o indivíduo se expresse criativamente. Ele vai usar ali qualquer recurso expressivo que possibilite o acesso à sua psique e ao seu inconsciente, que então vai mandar imagens e todo o trabalho terapêutico vai ser feito desta forma”, explica Cintia.

A arteterapeuta explica que, assim, a arte viabiliza a recuperação e a melhora dos estados emocionais e em desequilíbrio pela expressão das emoções, o que pode vir em forma não só da pintura ou desenho, mas também da arte, dança, música, filmes e outras manifestações culturais.

“A arte é terapêutica, mas ela só vai ser arteterapia se ela for acompanhada por uma fundamentação teórica, porque aí o profissional tem embasamento teórico e a fundamentação que vai dar sustentação, inclusive nas questões psíquicas por conta do estudo da psicologia”, ressalta.

A médica Nise da Silveira (1905-1999), expoente da luta antimanicomial, revolucionou os tratamentos psiquiátricos ao se posicionar contra os métodos agressivos que eram aplicados até então nos cuidados da saúde mental e psicológica. Ela acreditava que a arte podia ser aliada ao tratamento dos pacientes, com a obtenção de resultados positivos em sua recuperação ao conseguirem expressar seus sentimentos. Alguns alunos chegaram a ser reconhecidos por sua qualidade estética também.

“O paciente vai externalizar ali algo que muitas vezes não sabe dar o nome, não sabe nomear aquele sentimento e, então, ele expressa na arte. Tudo que pode estar gerando uma tensão emocional, a partir do momento que é externalizado e expressado, dá origem à uma espécie de despressurização daquela tensão”, ressalta a arteterapeuta Cintia Jeronimo.

É o que afirma também Lucas dos Prazeres, percussionista, bailarino, cantor e compositor pernambucano. “A minha arte é suporte para eu me manter no centro. É suporte para eu me manter em pé em todas as situações. Todas as minhas questões, sejam elas de cunho emocional ou psicológico, não tenho como dissociar da minha criação e da minha busca artística, porque eu procuro me renovar”, destaca.

“A cada disco, a cada espetáculo, a cada tema que a gente vai se aprofundando, a gente acaba escolhendo temas de conflitos nossos, pelo menos comigo é assim. Eu escolho temas dos meus conflitos, porque eu estou pesquisando a mim mesmo o tempo inteiro”, afirma o artista, que completa 35 anos de carreira neste ano com uma bagagem de muitos espetáculos e participações em bandas de cantores, como Elba Ramalho e Alceu Valença.

A arte está na vida do percussionista e bailarino desde muito pequeno. Lucas dos Prazeres nasceu em uma família de artistas: os pais dançaram no Balé Popular em Pernambuco e a mãe fez apresentações até o sétimo mês de sua gestação.

“Eu costumo dizer que eu já estava em cena antes de nascer. Com sete meses de gestação e como feto, já recebia muito das emoções que a mãe sentia em cena e da vibração da plateia. Eu me encanto em estar em cena e eu acho que é muito por causa disso, porque eu fui gerado em cena praticamente”, conta o artista, que depois seguiu uma trajetória de arte também aliada à educação, participando do primeiro método étnico-racial do currículo escolar de Pernambuco, criado por sua família e que alinha aprendizagem pela prática cultural.

“A minha arte é o meu consultório terapêutico e continuará sendo. Ela está muito mais para eu me cuidar, para eu me entender enquanto ser humano, para a minha evolução pessoal do que para o mercado do entretenimento”, complementa Lucas dos Prazeres.

Lucas dos Prazeres.
Multiartista Lucas dos Prazeres | Crédito: Ivan Alecrim/ Instituto Candela

Benefícios para a saúde física e mental

A capacidade da arte ser fundamental na vida de muitas pessoas para a melhora das questões emocionais e qualidade de vida não é um assunto desconhecido. Muitos estudos já revelaram o papel das artes em processos terapêuticos e na elaboração de questões como ansiedade e depressão.

Um estudo populacional na Noruega, chamado HUNT, junto à uma investigação da Universidade de Umea, na Suécia, explorou as relações entre a participação em atividades culturais e a satisfação com a vida e percepções de saúde, ansiedade e depressão das pessoas.

A investigação apontou que o número de participantes mais satisfeitos com a própria vida e que apresentaram uma melhor saúde física e mental estavam atrelados aos que participavam mais frequentemente de diferentes atividades culturais, sejam criativas (como pintar, dançar, entre outros) ou receptivas (visitar um museu, um teatro, entre outras).

Há também artigos da pesquisadora Hilary Bungay, da Universidade de Anglia Ruskin, em Cambridge, que apontam a correlação entre a união de atividades artísticas às prescrições médicas como forma de beneficiar a saúde física e mental, auxiliando em aspectos de autoestima, autoconfiança e conexões sociais também.

Em relação à série ‘Ruínas’, Lucas Finonho destaca que, provavelmente, será um projeto constante. “Você estar e se ver em ruínas, não quer dizer que acabou, só que vai começar. São 21 anos de cargas que estão aqui dentro e que vão ser liberadas aos poucos, então eu acho que essa série nunca vai acabar”, destaca o artista, que também vende seus trabalhos nas redes sociais.

Fonte: Alma Preta Jornalismo

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