Por Rogério Tomaz Jr.*
A oposição conservadora ao governo de Alberto Fernández na Argentina vem passando, especialmente a partir da quarentena do coronavírus, por um processo de radicalização orientada para os rumos da extrema-direita. Os sinais da “bolsonarização” do macrismo – setor vinculado ao ex-presidente Maurício Macri – e de parte da sociedade em geral são cada vez mais evidentes e desavergonhados.
Lideranças, militantes e meios de comunicação que não aceitam o projeto político vencedor das eleições de outubro estão seguindo à risca os conceitos de Gene Sharp, o teórico da “guerra híbrida” e dos “golpes suaves” apoiados pelos Estados Unidos nas últimas décadas. O ambiente só não é pior por causa da pandemia, que tem limitado as manifestações de rua. Contudo, a situação, apesar de tensa, não preocupa muito o governo, que tem boas condições de conter o ânimo golpista da oposição (confira mais detalhes sobre isso no final do texto) e está avançando no programa apresentado nas eleições e vitorioso nas urnas.
“La piba” de Macri
Para além do neoliberal Maurício Macri, corrupto notório e desastre completo como presidente em todas as áreas, a responsável por esse movimento se chama Patricia Bullrich. Ex-guerrilheira montonera e ex-militante peronista, ex-apoiadora de Carlos Menem, deu início a uma guinada à direita partir dos anos 1990 e, ao que parece, continua ainda hoje nessa longa marcha em direção ao autoritarismo ultraconservador.
A ex-ministra de Segurança do governo entre 2015 e 2019, é a presidenta nacional do PRO (Proposta Republicana), criado por Macri em 2005. Patricia, conhecida pelo apelido “La piba”, é descendente de uma família que participou ativamente do genocídio de povos indígenas levado a cabo pelo governo argentino no final do século XIX, no episódio conhecido na história como “Conquista do Deserto”.
Ela é sempre a primeira a jogar gasolina nas fogueiras criadas em qualquer disputa contra o governo de Alberto e Cristina. O poder que acumulou a partir do controle do aparato de repressão e de espionagem – contra adversários e até contra aliados – a colocou como principal nome do grupo de goza da confiança irrestrita de Macri.
Radicais mais radicalizados
Mas não é apenas o macrismo que está nessa empreitada. O histórico partido antiperonista por excelência é a União Cívica Radical, de onde saíram os fracassados ex-presidentes Raúl Alfonsín e Fernando de la Rúa. Supostamente socialdemocrata e filiada à Internacional Socialista, a UCR, que ajudou a eleger Macri em 2015 e continua com ele na aliança de oposição “Juntos por el Cambio” (“Juntos pela mudança”), também vem se inclinando cada vez mais à direita nas propostas e nos métodos políticos.
O deputado Alfredo Cornejo, presidente nacional da UCR, ex-governador de Mendoza, ilustra essa “radicalização dos radicais”. No final de junho, Cornejo chocou o país ao defender a separação de Mendoza do resto da Argentina. A ideia do “MendoExit” – alusão provinciana ao “Brexit” – emergiu na Internet entre alguns poucos militantes de direita após a acachapante derrota de Macri nas primárias de 2019.
Jamais um líder de peso da Argentina, de qualquer espectro político, havia defendido a quebra da unidade territorial do país. A provocação de Cornejo – que não esconde as pretensões de ser o candidato da oposição na eleição de 2023 – é apenas mais um sinal dos tempos atuais, com líderes conservadores abraçando as estratégias populistas e as técnicas de comunicação da extrema-direita global, que tem em Steve Bannon o rosto mais famoso.
Oportunismo
Em julho, quando um ex-secretário de Cristina Kirchner apareceu morto, Bullrich e Cornejo assinaram nota oficial da Juntos por El Cambio na qual tentaram vincular o crime ao governo, dizendo que o episódio tinha “extrema gravidade institucional”. As investigações, conduzidas por autoridades locais e federais, demonstraram que Fabián Gutiérrez foi vítima de uma armação planejada por sua amante. O que começou como extorsão acabou em assassinato, executado por amigos da amante.
A nota açodada gerou uma crise no PRO e na aliança oposicionista. Tudo indica, entretanto, que a postura beligerante acabou prevalecendo na disputa interna. O tom mais duro contra a gestão de Alberto Fernández, adotada recentemente também pelo outrora moderado prefeito de Buenos Aires – Horácio Rodríguez Larreta, outro nome apontado como presidenciável – é tida como prova de que a “bolsonarização” é um caminho sem volta.
A isso se somam o endurecimento das críticas – inclusive de Macri, que vinha se mantendo em silêncio para não chamar a atenção para os seus próprios escândalos – e até a ampliação do negacionismo contra as medidas de enfrentamento ao coronavírus implementadas pelo governo nacional.
Ataque à democracia
Nesse contexto, policiais civis da província de Buenos Aires sentiram-se à vontade para fazer um cerco à residência oficial do presidente da República, a Quinta de Olivos. O motim ocorreu no dia 9 de setembro e foi prontamente apoiado por muitos porta-vozes da Juntos por el Cambio, enquanto a base do governo classificou o episódio como um ataque à democracia e às instituições.
A bancada de deputados da UCR na Câmara chegou a dizer, no Twitter, que as reivindicações dos agentes armados deveriam ser atendidas imediatamente. A publicação pegou tão mal que foi logo apagada. Após o ímpeto golpista inicial, que repercutiu muito mal, mas levou centenas de militantes da oposição a se juntarem à rebelião os policiais, a oposição aderiu à defesa da democracia e das instituições e condenou o ato.
A temperatura, porém, não baixou. Quatro dias depois, na marcha do chamado #13S, um manifestante antiquarentena de Mendoza saiu às ruas com uma camisa celebrando o golpe militar de 1976. O ex-militar Carlos Alberto Noriega, 66 anos, exibia orgulhoso a blusa, que trazia a inscrição “24 de março de 1976: Dia de Glória”. A foto percorreu o mundo.
Hostilidades, ameaças e agressões a jornalistas estão ocorrendo em praticamente todos os atos da oposição. Em julho, um jovem em Neuquén, província bastante conservadora na Patagônia, exibia sem qualquer constrangimento um cartaz [foto abaixo] em que pregava o assassinato de políticos e jornalistas como estratégia para transformar a Argentina em potência. Uma versão similar do cartaz foi vista num adesivo de carro em Buenos Aires.
No último protesto na capital contra o governo e a quarentena, uma argentina anunciava numa van que ia embora do país para morar no Brasil “com Bolsonaro”. A própria família Bolsonaro, aliás, não passa uma semana sem dizer que a Argentina está no caminho de se tornar uma “nova Venezuela”.
A bolsonarização do macrismo, a oposição de extrema-direita na Argentina liderada por um notório corrupto que negociou até com narcotraficantes do Cartel de Cali, na Colômbia, e quebrou o país em 2 anos de mandato. https://t.co/tewMo1mlJr
— Rogério Tomaz Jr. (@rogeriotomazjr) September 20, 2020
Esse é o clima político da Argentina atual, muito parecido com o que a direita e a extrema-direita criaram a partir de 2013 no Brasil. Apesar disso, do outro lado está um governo que tem maioria na população e no Parlamento.
Na sociedade, a unidade das forças populares – somando o peronismo, organizado, disciplinado e capilarizado, e a barulhenta e corajosa esquerda não peronista – é bem maior do que a direita. Além disso, contam com meios de comunicação que, embora não possam competir contra o oligopólio formado pelos grupos Clarín, La Nación e outros, alcançam todo o país e são ágeis para desmascarar as falácias e contradições oposicionistas.
E, claro, os “hermanos” aprenderam bastante com a experiência brasileira dos anos recentes.
De qualquer modo, vale prestar muita atenção na Argentina. Quem sabe desta vez serão eles que nos ensinarão algo para a eleição de 2022.
*Rogério Tomaz Júnior é jornalista brasileiro, residente em Mendoza, onde faz mestrado em Estudos Latinoamericanos na Universidade Nacional de Cuyo. Mantém um canal no Youtube (www.youtube.com/rogeriotomazjr) no qual fala de política da América Latina e outros assuntos. No Twitter: @rogeriotomazjr